16.10.06

Quatro e Dezoito

Quatro e Dezoito

Por Paulo Heuser

Acordo às 4h18. Sempre às 4h18. Dentre as formas mais cruéis de tortura está a privação do sono. Já tentei dormir mais cedo. Não dá. Deito, rolo de um lado a outro da cama, olhando para o frio brilho do visor do despertador. Acabo dormindo tarde e acordando às 4h18. Pontualmente às 4h18.

Ainda na tentativa de provocar o sono, tentei ler a Dama das Camélias, de Dumas Filho. Apesar de reler a mesma página, durante mais de uma hora, o sono não veio. Passei aos clássicos de coleção-de-jornal. Nada, apenas a frustração de ter a certeza de acordar às 4h18.

O que pode ser mais torturante do que isto? O corpo amanhece dolorido. A mente ressente-se da falta de mais 1h42 de sono. Acordava às seis horas, plenamente disposto. Às 4h18 ainda estou um caco. Tento dormir novamente, mas a raiva e a perplexidade não o permitem.

Ontem tentava avançar até a terceira página do Dama das Camélias, quando algo me chamou a atenção na tv, que deixara ligada. Um fabuloso filme francês de ação intimista, com certeza. Ao som de um monólogo interminável recheado com sons que levam a biquinhos nos beiços, seguiam-se cenas incríveis de tinteiros, papéis, canetas e de um mata-borrão (ninguém sabe o que é?). Cada objeto era enfocado por cinco minutos, enquanto os biquinhos nos beiços se sucediam. Aleluia! Dormi no mata-borrão, portanto não sei dizer se apareceu mais alguma cena tórrida e emocionante como aquela. Faltou um abridor de cartas?

Só descobri que havia dormido mais cedo quando fui acordado pela passagem do caminhão de coleta de lixo. Aquele verdadeiro prodígio sonoro sempre comprime o lixo sob a minha janela. Aquilo faz tanto barulho que quase consegue abafar os gritos dos sujeitos que alimentam o monstro com mais sacos pretos. Eles comunicam-se entre si, e com o monstro, através de berros semelhantes aos emitidos pelos vaqueanos conduzindo manadas. Pronto, logo no dia em que consigo dormir um pouco mais cedo, esta droga de caminhão me acorda à meia-noite e meia. Tento fingir que ele não está lá. Em vão. Acabo levantando e indo ao banheiro. Por que ali não há tanto barulho? Olhando no espelho, percebo as olheiras decorrentes do sono interrompido. Tenho de conseguir uma cópia do filme francês, cujo título não sei. Será que funcionará novamente? Haverá algo além do mata-borrão?

Exatamente às 4h18 acordo novamente. Começo a entender o que o pessoal enfrenta quando vai à Escandinávia, no verão, e fica acordado durante dias a fio. Ainda bem que este suplício terá um fim.

Quando a primavera der lugar ao verão, esse maldito sabiá deixará de cantar às 4h18. Epa, lembrei-me de algo. O horário de verão ainda não começou! Às 3h18?

E-mail: prheuser@gmail.com