3.10.06

O Võo Solo do Alfredo

O Vôo Solo do Alfredo

Por Paulo Heuser

Cada vez que acontece uma tragédia envolvendo aviões, lembro-me do Alfredo. Foi um colega de brevê no Aeroclube Santa Cruz, em 1973. Voávamos, naquela época, nos Neiva 56-C – Paulistinha –, fantásticos amontoados de canos e lonas com um motor na frente. Havia também um Fairchild PT-19, fabricado em 1936, asas de compensado, o PP-HQN, de cabine aberta. Neste se usava capacete de couro e óculos de aviador.

Dotados apenas de instrumentos básicos para vôo, sem rádio, contávamos com a lentidão dos aviões e a cumplicidade do Dono dos Céus para a nossa segurança. Na verdade, havia também o Helio, presidente do aeroclube e maníaco por segurança, sempre correndo atrás de um mecânico cujo nome não me recordo, apelidado “Vicsa”, graças ao macacão de trabalho ostentando uma propaganda de anéis para motores. Vicsa me deu recomendações muito úteis quanto aos instrumentos de bordo (interior do monte de canos):

- Guri, se a pressão do óleo cair, fica de olho na temperatura. Se ela não subir, dá uma pancada com o dedo no vidro do manômetro para ver se não é pane de instrumento.

Esta recomendação, apesar de tecnicamente compreensível, não aumentava muito a confiança nos instrumentos. Até hoje dou pancadas nos instrumentos analógicos, seja do que for. Vá lá, nos digitais também.

O primeiro vôo solo era um evento muito emocionante. E curto. O aluno decolava, fazia o tráfego, contornando o aeroclube, e pousava novamente. O segundo vôo solo, em outro dia, com o aluno refeito da emoção do primeiro, era um passeio de tempo determinado pela duração do tanque de gasolina inferior, pouco menos de duas horas. A sensação de olhar para trás e ver o assento do instrutor vazio era indescritível. O Alfredo nunca se esquecerá.

Alfredo decolou com o PP-GTN, um Paulistinha, e bandeou-se para algum lugar em direção a Rio Pardo, onde não havia muitos pontos de referência, pela paisagem monótona. À medida que o vôo transcorria, ele perdeu completamente a referência de localização, contando apenas com a bússola e o Sol, o que não ajudou muito, principalmente quando este começou baixar em direção ao horizonte. Alfredo viu-se na situação de saber exatamente onde estava o Norte, mas não sabia onde as cidades se localizavam. Foi um precursor do Comandante Garcez.

Quando Alfredo sentiu que o vôo solo não terminaria bem, devido à falta de gasolina, se deu ao luxo que um comandante de Paulistinha pode se dar, mas um comandante de Boeing não pode. Procurou uma lavoura plana e pousou, próximo a uma casa de agricultores. Tomando o cuidado de deixar o motor – cujo arranque era manual – ligado, correu até a casa e indagou à apavorada agricultora sobre as direções de Santa Cruz e Rio Pardo. Com as coordenadas informadas pelo pré-GPS agrícola (a mulher), decolou novamente, deixando para trás uma lavoura destruída. Encontrando Rio Pardo, bastou seguir a estrada até Santa Cruz.

Eu estava sentado em frente ao bar do aeroclube, conversando com o instrutor – o Beck –, quando o Alfredo pousou, no entardecer de um domingo. Beck não era de muitas palavras. Quando o Alfredo desceu do Paulistinha e veio na nossa direção, com um ar de triunfo borrado, Beck lhe perguntou sobre o vôo, sem tirar os olhos do heróico PP-GTN:

- Andou visitando uma roça?

Alfredo fora pego com a boca na botija, ou melhor, com a mandioca na bequilha.

N.A. – Bequilha é a roda menor do avião, localizada atrás, no caso do Paulistinha.

E-mail: prheuser@gmail.com