28.9.06

Belugas e Moscas

Das Crônicas Raimundianas VIII – Belugas e Moscas

Por Paulo Heuser

Olhando pela janela do escritório, Raimundo viu os coloridinhos verificando os tíquetes de estacionamento nos carros parados na rua. Eram todos terceirizados, da empresa EstuporPark. Terceirizaram o meio-fio, coisa que não deixava de ser surpreendente. Se contassem essa para os vizinhos na empoeirada rua que Raimundo morara na infância, estourariam de tanto rir. Coisa de louco. Estranho mundo este.

Raimundo deixou o prédio do escritório e dirigiu-se para casa. No sinal da Av. Pimenteiro, com a Pintinho Bocadessaúva, foi cercado por três vendedores de frutas, dois agentes de um plano odontológico, que se propunham a fazer uma revisão gratuita até o sinal abrir, quatro corretores de imóveis, um agente de segurança privada, que queria cobrar 10 reais para protegê-lo contra assaltos, até o sinal abrir, e, finalmente, um ladrão que queria assaltá-lo no instante que o sinal abrisse. Onze pessoas, sem contar as sete criancinhas agenciadas pelo décimo segundo provedor de serviços, este sentado à sombra de uma árvore próxima. Doze adultos e sete crianças. Para atacar somente um carro. Era desperdício humano em demasia.

Nove sinais, 108 adultos e 63 criancinhas depois, Raimundo conseguiu entrar na sua rua, cuidando para não cair nem no primeiro buraco, aquele onde enfiaram uma cadeira, nem no segundo, aberto em algum mês do ano passado, onde alguém enfiou um vaso sanitário, com tampa e tudo. Os papeleiros ignoravam aquele dispositivo, talvez em respeito à obra de arte resultante, principalmente quando a tampa ficava levantada.

Raimundo convocara uma reunião do Conselho da Cotra para a manhã seguinte. Lá receberam o relato da irmã do Zé Tongo. Ela voltara do CotraGulag, o spa temático da Ilha Solovetskiye, região de Arkhangelsk no Mar Branco, norte da Rússia. Haviam escolhido aquele local por diversas razões. Havia como ocupá-lo imediatamente, pois lá permaneciam as instalações do famigerado Arquipélago Gulag, os ITL - Ispravitelno Trudovye Lagerya – campos de trabalho corretivo. O que a OGPU – Polícia Secreta bolchevique – queria corrigir? Czaristas em geral. A correção se dava através do trabalho forçado. Os “corrigidos” cavaram o Canal do Mar Branco (1928-1932), ligando Leningrado ao Mar Branco.

Durante a II Grande Guerra, Stalin manteve ali todo mundo que necessitava ser “reeducado”. Mais ou menos dois milhões de pessoas foram “corrigidas”. No pós-guerra, o chefe da polícia de Stalin, Laurenti Béria, mandou para lá a maior parte dos sabotadores do regime, assim classificados os cientistas e pesquisadores. O mais notório foi Alexander Soljenitsin, indicado ao Nobel de 1970 e autor de vários livros que denunciavam os horrores vividos sob o regime de Josef Salin.

Amenidades à parte, as antigas instalações físicas ainda estavam lá. Outra razão para a escolha daquelas ilhas foi o impacto psicológico. Altos executivos necessitam altos desafios e a sobrevivência no CotraGulag seria um alto desafio, com certeza. Nas visões de algumas empresas, de Béria e de Adolf Eichmann (1906-1962), oficial das SS nazistas, o trabalho liberta. Portanto, forçando-os ao trabalho, libertando-os estarão (dito pelo Mestre Yoda). A frase Arbeit Macht Frei - o trabalho liberta -, está até hoje sobre o portão de entrada no campo de Auschwitz I. Novamente o Gulag veria a chegada de uma elite, desta vez voluntariamente. Ninguém era forçado a “reeducar-se” no CotraGulag. Mas, uma vez lá dentro, trabalhariam de acordo com as regras. Bem como nas empresas, uma vez lá dentro, deixariam a pele de cordeiro do lado de fora.

A viagem até o arquipélago era por si só uma história a ser contada aos netos. O vôo de Moscou até Arkhangelsk, a bordo dos Uruboflot AK47, ficava gravado na memória de todos. O vôo seguinte, de Arkhangelsk até Kreml, na ilha maior, Solovetskiye Ostrova, era realizado com os passageiros sedados (e sentados), por questões de segurança. Nos primeiros vôos regulares alguns passageiros tentaram seqüestrar o avião para voltar. O sedativo aplacava o pavor do vôo. Há executivos que têm medo de voar. O Graliov KY69 causava verdadeiro pavor. A tripulação composta de dois pilotos, dois engenheiros de bordo, oito mecânicos, oito cossacos, um padre ortodoxo e as seis mais experientes comissárias de bordo aposentadas da Aeroflot, entornava algumas garrafas de vodka enquanto fazia o Plano de Vôo. Este consistia em olhar fixamente para a rota, o horizonte, no solo e não na carta aérea. As cartas de nada adiantavam, sem uma bússola funcionando. A que não estava quebrada, girava lentamente. E constantemente, mesmo quando voando em linha reta.

A irmã do Zé treinou formandos em Educação Física, Engenharia de Minas e Artes Cênicas encontrados pela Confraria. Quando formados, foram imediatamente para a região de Arkhangelsk, recebendo treinamento prático orientado pela irmã do Zé. Deixaram para trás as roupas colantes que Raimundo tanto apreciava, nas moças, bem entendido. Vestiram grossos abrigos e enfrentaram aquele vento cortante da primavera. Desistiram de abrir o spa no inverno. Os executivos norte-americanos e japoneses não sobreviviam. Perdiam o cliente e o pagamento. Mas, como o CotraGulag era um negócio, e não uma fonte de paz eterna, resolveram abrir somente na primavera, fechando no início do outono.

O tom de pele bronzeada obtido pela irmã do Zé no CotraVida se fora, substituído pelo branco do semi-ártico, literalmente. Mesmo vestindo sete camadas de grossas roupas, a irmã do Zé Tongo e as funcionárias, apelidadas de gulaguetes, foram assediadas sexualmente pelos clientes do CotraGulag. Também pudera, havia apenas homens entre os clientes, ao contrário do CotraVida, recheado com belas mulheres. A irmã do Zé tinha uma teoria própria sobre a ausência de mulheres entre os clientes nipo-americanos. Não que não houvesse altas executivas nos EUA. Elas apenas não seriam tão burras quanto os homens, para se meter naquela imensidão gelada. Além do mais, as unhas caíam com o congelamento dos dedos. Não sabia o que era pior, pagar por aquilo ou pagar e, ainda por cima, gostar daquilo.

A atividade mais excitante do programa era o plantio e a colheita de batatas na tundra. Era realmente comovente ver aquele pessoal tentando abrir buracos no solo congelado, orientado pelos engenheiros de minas. Um altíssimo executivo de uma mineradora americana tentou comprar dinamite no mercado negro. Impedido, chorava, feito criança, enquanto batia a picareta no gelo.

A frustração devido ao cancelamento da atividade de juntar folhas de outono, pela ausência de folhas, foi compensada pela criatividade da irmã do Zé, inventando um esporte apelidado iceass, algo como bunda congelada. Era singelo, mas supria a necessidade de competição entre os altos executivos congelados. Bastava correr o máximo possível desde o topo da maior elevação do local – com três metros de altitude –, descendo a ladeira de bunda. As marcas foram melhorando ao longo do verão, devido ao condicionamento físico decorrente da colheita de batatas. Ou melhor, do regime de mineração das batatas. O pessoal acordava cedo, comia a ração de batatas com café, feito de cascas de batatas torradas, e já corria para a elevação, chamada O Pico. A pesca era livre, apenas um pouco dificultada pela falta de barcos, que poderiam ser utilizados como veículos de fuga. O pessoal teve de improvisar um pouco com as iscas, pois os peixes refugavam as batatas.

Emocionante mesmo era a mineração da batata após o verão. Colheita não era o termo correto, pois não se colhe batatas utilizando picaretas. Todos iam às lágrimas assistindo àquela cena. Tentaram fotografá-la, mas não foi possível. As baterias das câmeras digitais dos japoneses arriaram. Um saudosista tentou utilizar uma câmera reflex que teve o prisma emperrado pelo gelo. A solução para registrar o evento foi apelar para um executivo japonês que desenhava muito bem. O quadro ficou pendurado numa estalagtite do alojamento. Os clientes sentiam-se úteis, pois as batatas colhidas nesta temporada serviriam de alimento para a próxima turma, cuja subsistência dependeria deles.

O que animava mesmo os garimpeiros de batatas era o Sol. Aquele magnífico sol de verão, raso sobre o horizonte, mas sempre presente. E que horizonte, nada para perturbá-lo, nem uma árvore, nada. O Sol não esquentava muito o corpo, mas a alma ficava aquecida e iluminada. A irmã do Zé Tongo distribuía folhetos de propaganda da CotraVida aos ricos executivos infelizes. Todos, sem exceção, reservavam uma temporada.

A vodka era de longe a bebida preferida no CotraGulag. Além de causar amnésia, era a única que não congelava na temperatura ambiente. A irmã do Zé sabia que não conseguiria controlar aquela turba sem a vodka, que estava abafando eventuais tentativas de motim. Ela sabia que não poderiam continuar servindo apenas as batatas da temporada anterior. Após uma pesquisa no mercado mais próximo - 500 km em direção ao sudoeste, no continente - optaram pela única opção disponível em estoque: repolho.

O repolho era muito abundante na Rússia. Havia até uma festa comemorativa anual, com a feira temática, a Fenapolho, onde eram apresentados mais de 30 pratos feitos exclusivamente de repolhos. O cheiro dominante na festa era insuportável para os não iniciados. Os clientes adoraram a novidade no cardápio. Os japoneses prepararam sushis de repolho com peixe. Para os vegetarianos, sushi de repolho recheado com batatas.

Um grupo de executivos, que se aventurou até o norte da ilha, conheceu dois pescadores envergando esfarrapados uniformes russos. Um japonês que falava russo serviu como intérprete. Descobriram que os dois foram operadores de um silo desativado de mísseis nucleares, instalado na ilha vizinha, Tserkov Anzerskaya. Viviam da pesca e de um estoque monstruoso de enlatados, ignorado pelos soldados que desativaram o silo. Viviam lá dentro.

Quando os russos souberam que havia vodka na CotraGulag, imploraram de joelhos por uma garrafa. Um norte-americano sugeriu a troca de 100 latas de alimentos por cada garrafa de vodka. Os pescadores russos toparam na hora e foram buscar a preciosa carga. Dois dias depois se encontraram, clientes e pescadores, para o escambo. Quinhentas latas de comida por cinco garrafas de vodka. Após um brinde, cada grupo seguiu seu caminho.

O grupo de clientes levou cinco dias para arrastar a carga até o spa. Saiam cedo pela manhã e retornavam à noite. Levavam uma ração de peixe, repolho e batatas para manter as forças. Somente abririam as primeiras latas durante uma festa que haviam planejado. O que conteriam as misteriosas latas? Um executivo japonês temia que fosse lixo radioativo. Não deveria ser, pois além de não haver caveiras ou outros símbolos de perigo, o apagado rótulo deixava ver uma gravura do sorridente camarada Stalin. Os caracteres em cirílico estavam muito apagados.

Na noite clara do quinto dia, exaustos, mas realizados, os heróicos clientes sentaram-se ao redor do fogo, cada um com sua lata. Estas vinham com aquelas borboletas que dispensavam o uso de abridores. Como que movidos por um ritual, engataram suas borboletas e giraram-nas com firmeza, todas ao mesmo tempo. Após um silvo agudo, saiu um jato de líquido de cada lata, seguido do pior cheiro que já haviam ousado sonhar. Até as belugas fugiram da ilha naquela noite clara de verão. A fuga dos mamíferos foi seguida pela invasão das moscas. Ninguém imaginava moscas naquele frio. Ninguém imaginara também que dois loucos russos guardassem latas de chucrute vencido há mais de 40 anos.

Como o japonês teria adivinhado? Acabaram enterrando o restante das latas no depósito de lixo nuclear. Agora o Stalin dos rótulos das latas ostentava um sorriso azulado. Os mais exaltados queriam vingar-se dos pescadores. Acabaram deixando por isto mesmo. Atribuíram o ato à loucura decorrente de viver naquele lugar. Após se livrarem do lixo com risco biológico, jantaram em silêncio a ração de batatas. Batatas com repolho fresco não eram tão ruins assim.

Os finlandeses não entenderam aquela repentina invasão de belugas e o sumiço das moscas.

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