17.10.06

Howard Carter e Eu

Howard Carter e Eu

Por Paulo Heuser

Quem não quis ser algo estranho, quando crescesse, que jogue a primeira pedra. Alguns amigos da infância sonhavam ser astronautas. Outros seriam caubóis do velho oeste. Havia quem quisesse tornar-se Zorro, Mandrake, legionário romano e até Sansão e Dalila. Sim, os dois ao mesmo tempo. Após assistir ao filme, julgava ser este o nome do personagem bíblico. Corria pela rua, gritando: - Sou o Sansão e Dalila!

Era uma época de sonhos e conflitos. Alguém me presenteara com um kit de PM – capacete, cassetete, algemas, coldre e pistola. Ah, eu ia me esquecendo do apito e do distintivo dourado. Alguns invejosos da rua começaram a chamar aquilo de “Penico Médio”. Quando a gozação se generalizou, fui obrigado a manter a ordem, utilizando o cassetete. Já estava de capacete mesmo. Brinquedos instrutivos aqueles.

Na biblioteca de casa havia um livro intitulado Deuses, Túmulos e Sábios (1949), de C.W. Ceram (1915-1972). Este livro me levou a escolher a profissão de arqueólogo, quando crescesse. Talvez foi esta a razão pela qual aceitei o convite feito por um amigo, tempos depois, na juventude, para auxiliar nas pesquisas de campo realizadas pelo professor responsável pelo museu do colégio. Sentia-me um novo Howard Carter – arqueólogo inglês - antes da descoberta da tumba do rei Tutankhamon. Eu não escavaria o Vale dos Reis, no Egito, é verdade. Escavaria uma roça em Candelária, RS, a procura de artefatos indígenas. Mas, até Carter deve ter iniciado em alguma lavoura no Egito.

Chegado o grande dia, creio que era um sábado, lá estávamos nós, embarcando num grande carro americano antigo, ao estilo dos táxis de Cuba. Tomamos a proa de Candelária, através de uma poeirenta e esburacada estrada. Fazia um calor senegalês. Para tentar melhorar um pouco a temperatura dentro da poderosa banheira, da década de 50 eu suponho, abri a ventarola, espécie de janelinha dianteira, comum nos carros da época. O grito: - Nããããoooo! – chegou tarde demais. O vidro da ventarola caiu e estilhaçou-se na estrada. Poderiam ter colado um aviso para não abrir. O resto da viagem transcorreu sem mais surpresas, pelo menos a parte rodoviária. O pó invadiu o carro todo, mas a temperatura ficou mais suportável.

Chegando nas proximidades da localidade alvo da emocionante expedição arqueológica, descobrimos que a última parte seria coberta a pé, carregando pás, bacias, peneiras e outros apetrechos. Após uns dois quilômetros havia uma pinguela sobre um córrego, feita com tronco de árvore, facilmente vencida. Mais algumas centenas de metros e chegamos a uma lavoura de milho, bem crescido. O proprietário das terras encontrara artefatos, como cacos de potes e pontas de flechas, ao arar o solo. Iniciamos os trabalhos exatamente no que parecia ser o centro da lavoura. Digo parecia ser porque não se enxergava nada além de uma sucessão de pés de milho mais altos do que nós.

Em meio aos pés de milho o calor era sufocante, tórrido, pois não corria vento. A saliva deu lugar à substância pastosa que grudava na boca. Os lábios ressecaram. Quando o sol estava a pino veio a boa nova. O professor-em-chefe trouxera cantis com água. Ficaram ao sol, mas melhor água quente do que nenhuma. Só que não era exatamente água. Era xarope de groselha, muito açucarado e muito pouco diluído, quase tão pastoso quanto a substância que sucedera a saliva. O orgulho no olhar do professor era tão visível quanto o nosso olhar de desespero. Havia de suportar a sede, pois Howard Carter cavara no deserto. Junto com o xarope vieram os sanduíches, ou melhor, mistos quentes, após a longa exposição ao sol. Não conseguíamos engoli-los, a substância pastosa não permitia. Resignados, voltamos ao trabalho, que consistia em cavar e peneirar a terra em locais demarcados e fotografados. Vez por outra se encontrava algo mais sólido, que era levado ao professor.

Aí pelas 14 horas bateu o desespero nos caçadores das tralhas perdidas. Até a substância pastosa se fora. A língua procurava desesperadamente por algo molhado. O colega que peneirava um pouco adiante sentou ao meu lado e me confidenciou que ouvia som de água corrente. Cochichou apenas, a voz não saía mais. Guiados pelo maravilhoso som, encontramos um córrego, logo após o milho, à sombra de algumas árvores. O tifo que se danasse! Mergulhamos inteiros naquela maravilha, bebendo a água sem medo.

Voltando à peneira, comecei a rever meus conceitos sobre arqueologia. No meio da tarde ouvimos gritos de júbilo vindos do local onde o professor deveria estar. Encontrara uma fogueira indígena! Via-se apenas terra, muita terra. Certamente não tínhamos o treinamento necessário para reconhecer uma fogueira indígena. Também não sonhávamos em levá-la ao museu. Não apenas a terra da superfície, pois acabamos cavando ao redor e levando um torrão enorme, decorado com um pé de milho, feito bolo de aniversário silvícola. Como carregar aquela monstruosidade? Encontraram uma tábua junto à casa do agricultor, após uma pequena expedição. Próximo do ocaso, nós voltamos alquebrados e queimados do sol, carregando as tralhas da vinda e o nosso novo troféu, o torrão. O professor distribuía ordens, como um Lorde Carnarvon – o financiador das expedições de Howard Carter – moderno, enquanto se deliciava com os últimos goles do xaropento capilé. As centenas de metros da ida agora se pareciam com centenas de quilômetros. O peso nos ombros, de séculos de cultura indígena, se fazia sentir.
Não chovera, mas o córrego se transformara em algo parecido com um rio. E a pinguela sumira. Alguém devia ter aberto uma taipa em alguma represa, situada córrego acima. Levamos algum tempo para encontrar um local semelhante a um passo-de-rio para a travessia. Carregando o torrão. O destino deste, cientificamente classificado como fogueira indígena, foi selado pela pedra coberta com limo, sobre a qual eu pisei. Quando consegui me levantar, ainda vi o resto de pé de milho afundando como um periscópio.

Voltamos em silêncio ao táxi cubano e tomamos a proa de casa, carregando apenas as tralhas. Em meio à poeira que entrava pela ventarola quebrada, decidi que não queria mais ser um novo Howard Carter. E juro ter visto uma lágrima escorrendo no rosto do emudecido Lorde Carnarvon, enquanto guiava o táxi cubano.

E-mail: prheuser@gmail.com

1 Comments:

At quarta-feira, 18 outubro, 2006, Blogger José Elesbán said...

Muito bom. O que foi feito dos artefatos encontrados? Estão em algum museu em Santa Cruz? E houve outras expedições, ou esta foi traumática, de forma a abortar futuras?

 

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