31.10.06

O Voto do Rengo

O Voto do Rengo

Por Paulo Heuser

Quis o destino que eu ganhasse uma tala de gesso na perna, às vésperas do segundo turno das Eleições 2006. Gesso só tem graça em busto de deusa grega, rodapé de teto e na perna dos outros. Recebi ordens médicas para não pisar de maneira nenhuma com o pé direito. Votaria com o pé esquerdo então? Seria uma mensagem do destino, mancomunado com o médico?

Seria minha primeira abstenção nas não sei quantas eleições. Coisa cômoda, não é? Passar um domingo tranqüilo, sem tapete de santinhos nem velhinhas indutoras nas esquinas. Tantas coisas a fazer. Dar um passeio de cadeira de rodas na Redenção, servindo de poste de pipi para todos lulus presentes. Poderia furar a fila da galeteria da moda, às 13 horas e assistir ao filme na primeira fila do cinema. São privilégios dos temporariamente (espero eu) inabilitados fisicamente. Há também o outro lado da moeda. Começando pelo banheiro. E terminando nele também. O banho num pé só é um espetáculo a ser filmado. Aquele filme plástico que se utiliza na cozinha foi inventado para o banho do entalado, que não deve ser confundido com o empalado. Enrola-se toda a perna com aquilo e cobre-se tudo com um saco de lixo de 100 litros, vedando com fita de fraldas, preferencialmente aquelas com desenhos de bichinhos. Fica mais bonitinho.
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Vedado o pacote, resta entrar no box do banheiro, de muletas e pulando sobre o degrau. Esta é a melhor parte. Depois é só relaxar, segurando cada muleta com uma das mãos, enquanto passa sabonete e xampu com as outras, as mesmas que abrem e fecham torneiras e pegam a toalha. Secar-se é muito fácil, desde que haja muito vento, preferencialmente quente.

Não me dei por vencido no domingo. Esqueci todos os maravilhosos programas e decidi votar. Não seria uma mísera perna o que limitaria de forma tão truculenta o pleno exercício da cidadania. Além do que, esse pessoal está habilitado a lidar com esses problemas, não são marinheiros de primeira viagem. Mas eu era, pelo menos com uma perna.

O carro me deixou em frente à porta do colégio onde está minha seção eleitoral. Enquanto descia consegui ouvir a buzinaria dos que estavam atrás, certamente imaginando o que aquele sujeito queria ali, de muletas. Atrapalhar o trânsito, com certeza. Tudo pela democracia. Vamos em frente. Surpresa! Havia rampas de acesso para cadeirantes, que podiam ser utilizadas pelos muletantes como eu. Plec, plec, fui subindo a rampa em direção à democracia. A dor crescia à medida que avançava, mas não há democracia sem sacrifício. Dei uma parada para gemer melhor, escorado na parede. Pessoas passavam olhando curiosas. Mais duas caminhadas e duas paradas e enxergo a placa da minha seção. Nessas alturas a dor era tanta que eu já estava achando o voto indireto mais simpático.

Dei sorte, apenas duas pessoas na fila, uma senhora que fez questão de dar o lugar, ao me ver, e um sujeito com cara de coronel das SS que me olhou de cima a baixo enquanto pensava consigo mesmo: “o que esse defeito ambulante quer aqui?”. Lá dentro foi tudo mais simples, utilizando a terceira mão para entregar o título, assinar e apertar os botões da democracia. Feito o trim-trim e recolhidos os documentos, restou voltar. Dos eventos da volta, uma repetição de paradas e gemidos, apenas um merece destaque. Eu posso jurar que aquela mulher que subia a rampa caminhando alegremente, e me pediu para lhe dar lugar, pensava: “Sai da frente, rengo!” Foi nesse momento que eu gritei: viva a ditadura!

E-mail: prheuser@gmail.com