31.10.06

Creusa e o Sabiá

Creusa e o Sabiá
Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 09/11/2006:

Por Paulo Heuser

A futura mamãe sabiá coloca seus ovos no ninho, construído de acordo com o projeto contido na memória biológica, transferido de geração para geração.

Creusa dorme sob uma marquise, em cama improvisada com pedaços de caixas de papelão. Descobre estar grávida. Enquanto puder continuar se prostituindo, tudo bem. Depois, o futuro dirá. Depois é amanhã, distante do hoje.

O casal sabiá constrói seu ninho no interior de um orelhão, em São Paulo. Local abrigado do vento e da chuva, sabiamente escolhido.

Creusa reconstrói sua cama diariamente. Na semana passada conseguiu um colchão velho. Durou apenas duas noites. Foi levado enquanto fazia ponto na segunda esquina.

Um pássaro preto coloca mais cinco ovos no ninho, em algum momento de distração da mamãe sabiá.

Creusa perde parte da freguesia à medida que a barriga fica mais evidente. Descobre que há clientes com um gosto estranho. Perguntam se continuará por ali nos próximos meses.

A fêmea do sabiá choca todos os ovos, inclusive os do pássaro preto, sem distinção nem discriminação. O pessoal do bairro chama a companhia telefônica e um órgão de proteção ambiental.

Creusa começa a enfrentar dificuldades na sua profissão. Seus clientes nunca foram muito fiéis, mas agora sumiram de vez. Arrancam o carro quando notam a barriga mal-disfarçada sob a jaqueta de imitação de couro.

Uma bióloga analisa o problema que o casal sabiá criou ao instalar seu ninho no interior do único orelhão da rua. Conclui que o ninho não pode ser removido, sob pena da perda da ninhada dos sabiás e parasitas. Faz-se necessário interditar o orelhão, até 30 dias após o nascimento da prole sabiá.

Assistentes sociais tentam levar Creusa até um albergue. Ela recusa, perderá os dois últimos fregueses, estes assíduos, muito assíduos. Ela tem medo do jeito que a olham, mas pagam bem.

A companhia telefônica instala um novo orelhão próximo daquele onde está o ninho dos sabiás. Constrói uma cerca de tela ao redor do orelhão-maternidade para proteger o ninho, dos curiosos.

O condomínio do prédio onde Creusa dorme, sob a marquise, coloca uma grade de ferro para impedir que os moradores de rua se instalem ali. Creusa procura nova casa.

Esta historia não tem realmente um fim. Está sempre se repetindo. Bom para o bicho.

E-mail: prheuser@gmail.com