28.10.06

A Carta

A Carta

Por Paulo Heuser

Faz mais de um ano que cruzo pela senhora que segura o olho. Ela sempre está sentada no mesmo lugar, na mesma avenida, cedo pela manhã. Falta apenas quando chove. O Minuano encanado não a espanta. Refiro-me a ela como “a senhora que segura o olho” porque é exatamente o que ela faz: segura o olho, um olho azul. Quando solta a pálpebra o olho se fecha. Como o outro, já fechado, cuja cor ignoro, pois nunca o vi aberto. Não há como disfarçar a curiosidade. Aprendi desde pequeno que não devemos encarar ostensivamente as deficiências alheias. Tento disfarçar, não sei se consigo.

Enquanto segura uma pálpebra aberta, com o polegar de uma das mãos, escreve com a mão restante. Concentrada, murmura algo enquanto escreve em folhas de papel A4 branco, utilizando canetas esferográficas azuis. Outro dia contei quatro delas na mão que segurava a pálpebra. Fico tentado a lhe perguntar sobre o que escreve. Seria um livro? Um livro sobre a bizarra experiência de enxergar o mundo apenas quando abre manualmente uma das persianas naturais?

Aprendemos cedo que na cidade grande cada um cuida da sua vida e segue seu caminho. Por outro lado, como seguí-lo ignorando cenas como essa? Por que senta ali, junto à fachada cega de um prédio comercial? Não está vestida nem age como indigente. Estará esperando alguém que a deixa ali para buscá-la depois? Vindo de onde, indo para onde?

Talvez seja outra daquelas pessoas que não vêm nem vão, apenas estão. Estão apenas fazendo parte do cenário de fundo, na nossa passagem. Se vão quando o cenário se vai. Normalmente são figurantes, as pessoas mais comuns na nossa vida. Cruzamos com elas diariamente, sabendo o que são, sem saber quem são. Como o jornaleiro, o chaveiro e a multidão de moribundos sociais. Não têm nomes, apenas apelidos, colecionados ao longo dos anos. Essa senhora pertence ao grupo dos figurantes surreais. Não tem apelido, é apenas a senhora que segura o olho.

Em algum dia da semana passada, passando a seu lado, consegui espichar o olho e descobri que escrevia cartas. Havia três ou quatro esparramadas pelo chão, outra redigia cuidadosamente. Cartas manuscritas com estrutura formal, começando pelo local e a data, em caligrafia caprichada, letras grandes e arredondadas. Não olhei muito, pois poderia estar violando a correspondência alheia, apesar de estar morrendo de curiosidade. Já pensei em esperar que o vento leve uma daquelas cartas esparramadas pelo chão, assim que eu possa juntá-las longe dali. Não poderia, no entanto. Seria uma invasão de privacidade inaceitável. Nada ali me diz respeito. Não posso interferir no cenário.

E se uma dessas cartas for endereçada a mim, respondendo às perguntas há muito guardadas?

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