3.11.06

A Geladeira da República

A Geladeira da República

Por Paulo Heuser

Havia locais onde era melhor não olhar dentro. Uso o passado porque as repúblicas estão desaparecendo. Com elas, suas geladeiras. Cabe explicar o que é, ou era, uma república. Nos tempos em que as universidades concentravam-se em poucas cidades do Estado, a maioria dos alunos era oriunda de outras cidades. Alugavam apartamentos nos bairros próximos às universidades, morando em grupos para reduzir custos. As repúblicas próximas às universidades públicas eram as mais pitorescas. Habitados por estudantes menos favorecidos economicamente, esses apartamentos eram mobiliados com coisas dos brechós e eletrodomésticos velhos mandados pelos parentes.

O local mais misterioso das repúblicas era a geladeira, monstruoso e ruidoso elefante branco. Abri-las exigia um certo cuidado. Havia grande risco de choque elétrico e de que a porta caísse sobre o pé. Superados estes eventuais obstáculos, havia o perigo biológico. A única certeza a respeito do conteúdo das geladeiras era a natureza quimicamente orgânica. O resto era pura especulação. E probabilística. Cada morador era responsável pelos seus compostos orgânicos ali depositados, às vezes por tempo excessivo.

A abertura da porta trazia odores estranhos. Após os finais de semana prolongados, ou feriadões, o cheiro estranho dava lugar ao fedor propriamente dito, principalmente pelos restos de leite vencido. Mas era após as férias que a abertura da geladeira se tornava uma aventura inesquecível. Alguém sempre se lembrava de desligar a geladeira, mas nem sempre todos se lembravam de retirar o que havia lá dentro. O resultado era algo próximo da aventura retratada pelo filme Jumanji (1995). Por vezes nem era necessário abrir a porta, após as férias. O volume dos seres vivos que proliferavam lá dentro acabava excedendo o da geladeira, abrindo a porta. Restos de arroz ou macarrão produziam quantidades enormes de fungos, dignas de dar inveja a Alexander Fleming, descobridor da penicilina. Quando os restos eram de origem animal, no entanto, geralmente era necessária a substituição completa da geladeira. É inacreditável o que um mísero resto de salame conseguia produzir. Pobres vizinhos!

A expressão varrer a sujeira sob o tapete deve ter se originado nas repúblicas. O que os olhos não vêem o coração não sente. Original não? O tapete adquiria alguns centímetros em altura até a faxina semestral.

Varrem-se também outras coisas para baixo dos tapetes de outros tipos de repúblicas. Estes são levantados apenas quando alguém perde algo realmente grande, como um Boeing 737 e seus ocupantes.

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