2.11.06

Liminariana

Liminariana

Por Paulo Heuser

Estélio Natário embarcou para Liminariana, democracia emergente desde o Século XIX. Algo fazia o nível d’água subir continuamente, pois a emersão nunca ocorria, possibilitando a reclassificação como potência imersa fortemente lastreada. A também emergente Fármacos Alternativos o contratara para vender protótipos de medicamentos a Liminariana.

A nova industria não conseguia colocar sem primeiro produto no mercado, fruto de três meses de pesquisas, devido à falta de cobaias animais e humanas. A legislação dos países já emergidos exigia uma série de salvaguardas que nenhum laboratório com apenas um funcionário, e sem laboratório propriamente dito, poderia oferecer. Fármacos Alternativos era uma empresa surgida do sonho de um monge transvenusiano neoquântico, Charly Atão, completamente desconhecido nos meios científicos, graças à não-publicação de trabalhos. A publicação de trabalhos científicos é condenada pelo transvenusianismo neoquântico.

Assim como Einstein procurou a teoria do tudo, sem encontrá-la, Charly procurou o fármaco universal, finalmente encontrado, pelo menos no seu Gedanken Experiment – experimento de pensamento –, infinitamente mais barato do que aqueles de laboratório. Três meses de meditação foram suficientes para a Gestalt medicinal de Charly: o miraculoso Exkrement II. A primeira versão, concebida após 47 dias de meditação, não dera certo, pelo menos em pensamento. Meditando sobre as crenças das mais diversas culturas, inclusive da sua particular, Charly percebeu que a cura dos males deveria vir de dentro, não apenas espiritualmente, materialmente em essência, em nome do equilíbrio universal. Se o corpo gerara a moléstia, dele sairia também a cura, desde que ajudado pelo espírito. Os iguais curam-se pelos iguais, como diz a homeopatia. Charly apenas acrescentara uma variante da igualdade, sutilmente desigual. Pode parecer confuso, mas é filosofia transvenusiana neoquântica pura.

Charly logo percebeu que o Exkrement II deveria ser produzido a partir dos fluidos e não-tão-fluidos dos pacientes, acrescidos da parte espiritual, contida em cravos-da-índia transmutados para cravos-de-vênus, a partir da meditação. Charly é detentor da patente do processo de transmutação dos cravos-da-índia. O processo de transmutação é bastante lento, pois Charly não consegue transmutar mais do que um grama por dia. E pode trabalhar apenas nas quartas-feiras, por motivos religiosos. Isto pode explicar o custo de US$ 700 por comprimido, a dose diária. Discriminado pelo FDA – órgão do governo norte-americano que regulamenta os medicamentos –, Charly apelou para Estélio, famoso consultor de negócios heterodoxos.

Logo que desembarcou em Liminária, capital da emergente nação, Estélio procurou seu mercado nos hospitais públicos. Lá ele encontrou enfermos sem esperança, abandonados pela saúde e pelo estado. Após convencê-los de que a cura para seus males estava no Exkrement II, foi só esperar. Liminariana apresentava um sistema jurídico original, com celeridade cautelar e morosidade meritória. Somando-se a isto a quantidade de advogados e doentes desassistidos, foi inevitável a proliferação das liminares para custeio pelo estado dos tratamentos com Exkrement II. E as liminares eram o produto nacional de Liminariana, duravam muito mais do que as de outros países.

Charly está meditando às quintas-feiras, único dia permitido pela religião. Procura o Exkrement III, para o caso de o mérito das ações ser julgado antes de 10 anos. Provavelmente levará saliva e salsinha na composição.

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