18.11.06

Das Mentiras

Das Mentiras

Por Paulo Heuser

Abri uma embalagem de refil de lâminas de barbear. Refil – não há um não-anglicismo que substitua esta palavra? O Aurélio traduz como “que substitui o que se gastou”. Pois bem, abri uma embalagem do que substitui as lâminas de barbear que se gastaram e... Espere! Embalagem - um galicismo! Invólucro, então, por que não? Latinismo pode, não pode? Veio tudo de lá mesmo. Finalmente, abrindo um invólucro do que ... que se gastaram, descobri que havia apenas duas lâminas num cassete (de novo não!), digo, estojo para cinco. Certo, não posso me queixar, havia um pequeno aviso, realmente pequeno, “contém duas lâminas”. Portanto, não é uma mentira. Antes, uma pequena, põe pequena nisso, verdade. Os homens de marketing, digo, mercadologia,... Aberto longo parêntese.

Indo à mercadologia, no Aurélio, tropecei na maromba. Sim, na maromba se tropeça. Pelas outras palavras se passa, por algumas, ao largo. Pela maromba não se passa, ela evoca algo tão intenso que nos faz tropeçar. Enchemos a boca para dizer maromba. Esta não deveria aparecer em nenhum início de frase, apenas no final, no grande final – olhe a tentação. O que os funâmbulos e arlequins utilizam para se equilibrar, sobre a maroma, é a maromba. Com ô bem tônico, tão tônico como o ô do próprio tônico. Arabismo fantástico a maromba.

Eis que chega a hora de fechar parêntese, após tão longo interregno, que cruza parágrafos. Fechado, continua a mentira – Os homens de mercadologia são mentirosos por formação e por ciência. Nos levam a comprar aquilo de que não precisamos. E colocam apenas duas lâminas no espaço para cinco. Qualquer dia, lhe venderão latas de cerveja com dois quintos de 355 ml. O homem social é um mentiroso. Se não o fosse, tornar-se-ia insuportável. Os eufemismos e as mentiras fazem parte das relações sociais. Os excessivamente sinceros são chatos, e machucam as pessoas das suas relações. Ao plenamente sincero falta a empatia. O empático se força ao uso dos eufemismos e das verdades fracionadas. Sim, genericamente fracionadas, pois não há apenas as meias verdades, há também os terços, quartos, oitavos e infinitésimos da verdade. O empático fraciona a verdade com arte e maestria, próprias daquele que consegue se colocar no lugar do outro. É o bom mentiroso? Nem sempre. Há o lado negro da empatia, exercido pelos mercadologistas (marketeiros?), pelos políticos e pelos profissionais que defendem o indefensável. Os primeiros e os terceiros estudam a arte da engambelação. Os segundos engambelam o útero e nascem engambelando a todos que se seguem. Narcisistas, se não patológicos, andam pelas fronteiras da normalidade. É um dom que lhes foi concedido. Dizer se exercem o lado branco, ou o lado negro, da empatia é uma questão de identificação do lado no qual nos encontramos, ou que nos ausentamos, politicamente. O fato é que os aceitamos, institucionalmente. Como também aceitamos a prostituição, suprema arte da mentira do orgasmo improvável.

Se um dia me entrevistarem, para um daqueles retratos de perfil pessoal, e me perguntarem sobre a minha palavra preferida, da língua portuguesa, responderei com um arabismo: maromba. Sem engambelação, pois da maromba – a vara – me valho diariamente para andar sobre a maroma – a corda bamba.

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