O Happy Hour da Erothildes
O Happy Hour da Erothildes
Por Paulo Heuser
Sexta-feira, 18 horas, chegamos ao bar tão antigo quanto a república. Happy hour de três amigos de décadas, reunindo-se para falar sobre festas que já se foram e sobre uma que ainda não foi. Sentamos à única mesa ainda disponível na área externa. Três chopes sobre a mesa deram a senha para o início da conversa solta.
Por Paulo Heuser
Sexta-feira, 18 horas, chegamos ao bar tão antigo quanto a república. Happy hour de três amigos de décadas, reunindo-se para falar sobre festas que já se foram e sobre uma que ainda não foi. Sentamos à única mesa ainda disponível na área externa. Três chopes sobre a mesa deram a senha para o início da conversa solta.
Não a notei de imediato. Foi somente no segundo chope que notei alguém oscilando na mesa ao lado. Oscilação lenta, como a de um pêndulo de carrilhão. Já não havia mais como não notar a Erothildes. Não sei o seu nome verdadeiro, mas não poderia chamá-la de mulher oscilante da mesa ao lado. Erothildes estava perfeito, lhe caia bem. Mulher na casa dos 60, magra, muito empertigada, Erothildes poderia até chamar-se Erotildes, mas a atitude empertigada pedia por um agá, e levou um. Erothildes estava só, bebendo chope com gelo. Seus olhos perscrutavam a área do bar, por detrás dos óculos estilo gatinha, feito feixes de radar. Nada lhes escapava, inclusive a nossa presença.
Comecei a ficar com medo quando percebi que a Erothildes reduziu o escopo da área perscrutada à nossa mesa. Posicionou sua cadeira de forma a focar toda a sua atenção sobre nós. O garçom trazia mais chope e mais gelo. Associei a oscilação da Erothildes ao número de bolachas de chope que havia sobre a sua mesa. O álcool provocara alguma disfunção no labirinto, como se ela estivesse sentada sobre um tombadilho imaginário em dia de marolas.
O medo aumentou quando Erothildes oscilou com amplitude maior para o lado esquerdo, terminando com um cotovelo sobre a sua mesa, o outro sobre a nossa. Foi aí que falou pela primeira vez:
- xomar! – apenas uma palavra, fora de qualquer contexto. O álcool não afetara apenas o labirinto. A fala também estava comprometida.
Fingimos não notar e continuamos o papo. Resignada, removeu o cotovelo do canto, mantendo, porém, o radar focado na nossa mesa. Não tardou nova intervenção na nossa conversa:
- goxto do novo!
Alívio imediato, eu era o mais velho dos três.
- devem xomar para não xubtrair!
Novo chope e mais um copo com gelo. Erothildes agarrou o garçom pelo colarinho. O homem conseguiu desvencilhar-se, com a prática adquirida por quem trabalha num bar com mais de cem anos. O medo voltou, pois ela parecia querer trocar as palavras pela ação. Alguém de nós contava um causo ocorrido na Europa quando ela interveio novamente, sem parar de oscilar:
- xou uma mulher mais do que viaxada!
Alheia à nossa indiferença, ela continuou colocando as pedras de gelo no copo de chope. O garçom servia sua mesa, mantendo o corpo bem afastado. Era novo, portanto corria mais perigo. Em uma das idas de Erothildes ao toalete, suponho, notei que estava sentada sobre um envelope pardo, desses para se carregar documentos. O que conteria? Os planos de invasão da nossa mesa, com certeza.
- devem xomar para não xubtrair! – ouviu-se ao longe. Ela voltava.
Quando o garçom trouxe as contas das mesas ainda ocupadas, prenúncio do fechamento do bar, Erothildes levantou-se, ainda oscilando, e sentenciou:
- vou deixá-lox com exax coixinhax de voxêx, poix xou uma mulher muito viaxada!
Só então eu percebi que Erothildes formava todas as frases com um número primo de palavras.
E-mail: prheuser@gmail.com
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