27.11.06

As Orelhas

As Orelhas

Por Paulo Heuser

Dizer que o ser humano é imperfeito, é chover no molhado. Vivemos além do prazo de garantia. Os ortopedistas não estão dando conta dos bicos de papagaio, hérnias de disco, e inúmeros outros problemas estruturais que o nosso corpo começa a apresentar quando ultrapassamos o tempo de duração projetado inicialmente. Ortopedistas são os mecânicos que tentam consertar mecanismos sem peças de reposição.

Recentemente, sofri um problema no pé e procurei o socorro de um ortopedista. Após receber estacionamento privilegiado, cadeira de rodas, empáticas atendentes sorridentes, formulários de todos os tamanhos, formatos e cores – nessa hora assinamos tudo sem ler –, encontrei o tão aguardado ortopedista. Considero desagradável quando alguém fala comigo sem me olhar nos olhos. O médico não cometeu tal indelicadeza, mas exagerou na educação. Eu esperava que ele olhasse um pouco para o meu pé inchado, um pouquinho que fosse. Educadamente, olhou apenas para os meus olhos, com toda atenção do mundo, enquanto me mandava para o setor de radiologia.

Lá, após a escada – sempre há uma escada –, uma sorridente e atenciosa técnica em radiologia me aguardava, para me bombardear com raios X, enquanto criava as posições mais criativas para se permanecer durante um minuto, até o clic que traz o alívio. Quem projeta os equipamentos radiológicos deveria levar em conta as articulações dos seres humanos, que apresentam certas limitações de movimentos, principalmente quando as articulações estão comprometidas. Após alguns movimentos de contorcionismo, e ginástica rítmica desportiva sem música, vem a recomendação fatídica: “fique completamente imóvel!”. Barbada, se a dor não fosse tanta. Segurei a tremedeira que se anunciava, graças ao medo de que o processo viesse a se repetir. Fiquei imaginado as notas dos jurados: “Originalidade – 9,3; Dificuldade: 10,0; Execução – 8,9”.
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Após a tortura, voltei ao médico, que desviou os olhos dos meus pelo tempo suficiente para encarar a radiografia. Sem passar pelo pé abandonado, ele voltou a me encarar fixamente enquanto dava a sentença. Poderiam ter uma pessoa apenas para olhar o pé e comentar: “Nossa, que pé mais inchado! Está doendo muito?”. Daria conforto psicológico.

Pés à parte, as orelhas incomodam. Ou porque são de abano, ou porque atrapalham os fones de ouvido. É impressionante o número de pessoas que usa fones de ouvido, seja no trabalho, seja na rua. Há fones com design mais arrojado, prateados, que emprestam um visual Jornada nas Estrelas aos usuários, notadamente aos que estão completamente calvos. Alguns são, a maioria está. Virou moda raspar a cabeça. As orelhas incomodam porque não são padronizadas, dificultando o projeto dos fones.

A evolução darwiniana trará algumas modificações, tardias para nós, como as juntas universais, no lugar das limitadas articulações. Os cabelos desaparecerão de vez, já que raspam os poucos que lhes restam. Os cabeleireiros poderão se transformar em grafiteiros de calvas. As orelhas deverão dar lugar aos acopladores acústicos padronizados pelo IEEE. Os ortopedistas terão olhos com movimentos independentes, um olhando para os olhos do paciente, outro podendo olhar para o pé.

E-mail: prheuser@gmail.com