6.12.06

A Salvação de Ícaro

Das Crônicas Raimundianas X – A Salvação de Ícaro

Por Paulo Heuser

Meu amigo Raimundo fez uma pequena viagem a negócios. Pequena na distância, longa no tempo. Gastou três dias da sua vida, para participar de uma reunião do Sindaplers - Sindicato dos Atravessadores de Passageiros nos Leitos de Rios Secos, em Chattanooga, Tennessee. Eesstta cidadee apreeseenntta eevideennttee gageeira alfabééttica. O grande problema foi a conexão no Aeroporto Internacional de Nova Garanhuns, de onde divergiam, e para onde convergiam, 87 por cento dos vôos nacionais e 100 por cento dos internacionais. Raimundo saiu com oito horas e meia de atraso de Brasília e pousou com 19 horas de atraso em Nova Garanhuns. Uma viagem que leva três horas, normalmente, levou 22 horas. Raimundo gastou 22 horas lendo Saramago – o sem travessão – e comendo barras de cereais. Raimundo está lendo O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), desde 1984. É o livro com melhor preço-desempenho que Raimundo já comprou. Planeja terminar de lê-lo aí por 2014, se não esquecer novamente o início, como das outras 17 vezes em que chegou próximo do fim.

As manchetes dos últimos, penúltimos e antepenúltimos dias, ainda durante o I Reinado de Luiz XIII, não falavam de outra coisa, senão dos atrasos dos vôos. A AnaCaos – Agência Nacional da Aviação Caótica – afirmava que tudo estava normal, bem como o governo. O que existiria, segundo as informações oficiais, seria um efêmero descasamento de variáveis integradas em referenciais espacialmente coordenados, nada havendo com que se preocupar, portanto. Na pior das hipóteses, estaria sendo agregada uma certa aleatoriedade às trajetórias das aeronaves. Nada demais, nada de menos, para quem ficava no chão, dando entrevistas.

A volta de Chattanooga, Tennessee, fora outro pesadelo com Saramago. O atraso era tanto que as famílias se dirigiam em bloco aos aeroportos, para as despedidas dos viajantes. Uma viagem a São Paulo, coisa de hora e meia nos tempos em que outras estrelas atravessavam os céus, agora levava cônjuges, filhos, pais, e demais familiares às despedidas. Voltou também o antigo farnel de viagem, dos tempos da Maria-fumaça. As galinhas na farofa foram ressuscitadas, junto com as garrafas térmicas de café preto. Bota-fora de viagem de um dia tornou-se lugar comum, terminando com a recomendação: “escreva quando chegar!”.

As primeiras semanas da crise foram as piores, graças aos vícios de comportamento dos passageiros, que insistiam em cobrar celeridade nos serviços. Raimundo vira cenas terríveis nos tumultuados aeroportos. Nunca sonhara em ver uma religiosa ensandecida nocautear três seguranças do aeroporto, utilizando seu ícone religioso como arma. Coisa digna do fim dos dias. Nostradamus estava cada vez mais atual. Conforme suas profecias, quando o último homem que presenciara a Batalha dos Jegues morresse atingido por um coco, o caos se instalaria nos céus cor de anil, rasgados pela frase de esperança: “Ordem no Regresso, Ou Não!”. A correspondência urgente passou a utilizar a via terrestre, para evitar atrasos. As cartas estavam chegando meses após o retorno dos viajantes.

Quem faturou alto com o caos foi o setor de serviços dos aeroportos. Passada a confusão inicial, transformaram as lojas de lanches rápidos em churrascarias, com opção de quentinhas para viagem. Viagem pelo saguão dos aeroportos. O Rodízio de Brigadeiro e o Controlador Tropeiro fizeram grande sucesso. Grande sacada foi a tele-entrega de quentinhas a bordo dos aviões parados, cheios de passageiros. Após umas seis horas de espera, dentro do avião, a comida terminava, gerando reclamações. A tele-entrega preencheu perfeitamente este novo nicho de mercado.

A Satã, empresa de serviços aeroportuários, passou a alugar vagas em beliches, separados por biombos, nos saguões dos aeroportos. Havia acomodações econômicas, turísticas, executivas, de primeira e superior – na parte superior do beliche. Estes últimos tinham direito à tv. Os monitores que informavam as chegadas e partidas dos vôos, no tempo em que estes chegavam e partiam, foram transformados em tvs que exibiam filmes como A Longa Jornada, História Sem Fim, O Pouso da Fênix e Vou de Táxi. Aqueles quadros de escalas de vôos, que já não serviam para nada, senão semear mais confusão, logo se transformaram em painéis de jogos de víspora.

Uma coisa é certa, passada a grande confusão, um certo romantismo tomou conta das viagens aéreas. Os aeroportos começaram a se parecer com os portos marítimos de outrora. As chegadas e partidas dos aviões eram anunciadas nas páginas dos jornais de grande circulação, e na Hora do Brasil. Os colunistas sociais se acotovelavam com os fotógrafos, para registrar partidas e chegadas dos famosos. O anúncio de uma provável partida para Paris levava hordas de colunistas sociais aos saguões de embarque. As cestas de delicatessen substituíram as antigas nécessaires de bordo. Nas horas de espera pela decolagem, os colunáveis davam entrevistas a bordo, enquanto aplacavam o tédio com caviar beluga, foie gras e garrafas de Krug Grande Cuvée. Após algumas horas, com o anúncio da desatracação, digo, da decolagem, jornalistas e serviçais eram convidados a voltar ao cais, digo, portão de embarque.

As empresas tiveram de se adaptar à nova realidade no cenário dos transportes. As tele-reuniões viraram moda. Os serviços de courier através de motociclistas que se revezavam ao longo das estradas proliferaram. O mais famoso era o Expresso Pônei. O turismo ficou um tanto abalado, até que alguém teve a idéia de criar os cruzeiros a bordo de ônibus.

A classificação de espaço aéreo hostil, atribuída pela Ong Urubus Sem Fronteiras, levou as companhias aéreas a arrendar terras no Paraguai para instalação de um grande aeroporto internacional, ligado às capitais do País através de ônibus. Um esquema muito bem organizado, com check in nas estações rodoviárias das capitais e despacho automático das bagagens. São Paulo passou a contar com os terminais de embarque nos terminais rodoviários do Tietê, Jabaquara, Guarulhos e Congonhas. Assim foi possível a retomada do tráfego aéreo internacional, mesmo que fora do País. Os vôos demoravam mais, pois era necessário desviar do espaço aéreo nacional. Outra idéia que tomou força foi a instalação de uma plataforma, em águas internacionais, para transformá-la em aeroporto, ligado à costa por meio de ferry boats. Chegou a se pensar na utilização de aerobarcos, idéia logo abandonada devido ao prefixo aero, que lembrava vôos.

O mais estranho nessa história toda, é que ninguém até hoje conseguiu entender bem o que aconteceu. Inicialmente se atribuiu a confusão à armadilha pelicana, coisa da oposição, que tentava melar o II Reinado de Luiz XIII. Passada a recoroação, as suspeitas se voltaram contra os controladores do caos. Estes acusaram a AnaCaos, que, por sua vez, acusou os céus. Os céus acusaram... sei lá... me perdi. O fato é que os aviões deixaram de voar, os controladores deixaram de controlar e os passageiros deixaram de passar.

Pelo menos conseguiram baixar drasticamente o número de acidentes aéreos, pela inexistência de vôos. E a vida de Ícaro foi poupada. Sem decolar, como poderia cair?

E-mail: prheuser@gmail.com