21.12.06

A Gaveta

A Gaveta

Por Paulo Heuser

Uma gaveta fechada à chave me intrigava, desde 2001. Quando mudei de endereço, uma escrivaninha mudou-se comigo. Das três gavetas, uma foi chaveada. E chegou da mesma forma, chaveada. Havia algo importante no interior dela, de outra forma não estaria chaveada. Finalmente chegados ao novo endereço, nos encontramos sentados em meio a muitas caixas de papelão, todas iguais. Havia uma relação que descrevia detalhadamente o conteúdo de cada uma das caixas, todas numeradas.

O primeiro desafio foi encontrar a relação. Em qual caixa estaria? Estava na bolsa. O segundo desafio foi encontrar o cachorro, indexado com a letra P de poodle, ao invés da letra C de cachorro. Estaria na caixa 37, junto com a guia, o prato de comida, o pote de água e as pulgas. Onde estaria a caixa 37? Um longo e lamurioso ganido a denunciou. O terceiro desafio foi para o cachorro - encontrar-se em meio àquelas caixas formando um imenso labirinto. Para o cachorro, o horizonte passou a ser o topo das caixas.

Chegada a hora da escrivaninha, verifiquei se tudo estava intacto, nas gavetas. Foi então que constatei que a gaveta superior estava chaveada. Onde estariam as chaves? Após nova consulta na relação, nada. Havia chaves na caixa 13, mas nada explicitava o tipo de chave. Custei a encontrar a caixa 13 porque eu estava sentado sobre ela. Realmente havia uma caixa de sapatos cheia de chaves no interior da 13. Tentei todas na gaveta, sem sucesso. As chaves daquela gaveta deveriam estar em outro local. Fiquei tranqüilo, pois elas apareceriam à medida que tudo fosse desencaixotado. Algum tempo depois, quando abri a última caixa, esperei encontrar as chaves. Cheguei ao fundo da caixa, sem encontrá-las.

O que poderia haver dentro daquela gaveta? Não senti falta de nada específico. Se bem que, após uma mudança, não sentimos falta de algo. Sentimos falta de tudo. Encontrei até o meu descaroçador de melancias preferido, há muito desaparecido. Ele estava numa caixa identificada com A3, código que utilizei na mudança anterior, em 1983. Aparentemente, a caixa A3 sobrevivera, hermeticamente fechada, por 18 anos. Onde, só Deus sabe. A transportadora foi a mesma, em ambas as mudanças. Teriam guardado a A3 para devolvê-la na mudança seguinte?

Abrir a gaveta misteriosa não era uma prioridade, já que nada faltava, aparentemente. Aparentemente não tranqüiliza muito, apenas um pouco, o suficiente para não arrombá-la. O que haveria ali dentro? Comecei a me lembrar dos filmes nos quais alguém deixa uma vovó assassina trancada em um quarto ou no sótão. Deveria ter chamado um chaveiro para resolver logo a questão. Mas, fiz aquilo que às vezes fazemos com as nossas gavetas interiores. As fechamos e não olhamos mais lá dentro. Estão lá, trancadas. Nos esquecemos do seu conteúdo. Até que uma mudança de leiaute aposentou a escrivaninha. Hora de mandá-la ser útil em outro local. Não poderia me livrar da escrivaninha daquele jeito. Não com aquela gaveta chaveada. Imagine se houvesse algo comprometedor naquela gaveta. Minha foto, dançando qualquer coisa pocotó, por exemplo. Não, aquela escrivaninha não poderia sair sem que se soubesse o que havia ali dentro.

Num raro rompante de inteligência, descobri que poderia soltar o tampo da mesa, dando acesso à gaveta. Por que não pensei nisso antes? Como nas nossas gavetas interiores, há mais de uma forma de abri-las, mesmo não estando de posse das chaves. Não sei por que não a abri antes. Fiquei tanto tempo imaginando o que havia lá dentro, que cheguei a temer que fosse algo perigoso. Bastou o auxílio de uma chave de fenda para que o mistério fosse em fim revelado. Assim, a escrivaninha pôde ir em paz, finalmente. E eu pude dormir tranqüilo, novamente.

O que havia na gaveta? Nada, literalmente.

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