9.1.07

Das Crônicas Raimundianas XIII - A Vida de André

Das Crônicas Raimundianas XIII - A Vida de André

Por Paulo Heuser

Raimundo não sabia que o nome dele era André. Tampouco sabia que ele existia. Nada sabia também da sua história. Até que foi tomar um sorvete, na Rua Reverendo Feridas, lugar chique, enquanto esperava pelo Japa. Comprou um daqueles sorvetes de pistache e frutas vermelhas, que quase não levam açúcar. Coisa deliciosa. Só não queria saber como faziam o de pistache. Imaginou que deveria ser feito a partir de um flan de abacate, sem sabor, misturado com essência de pistache.

Sentado à mesa da rua, no final de tarde, Raimundo viu aquele sujeito, não exatamente maltrapilho, mais para muito usado. Roupas simples e surradas, mas sem furos. Estava sentado no meio-fio, à distância de um carro, mais ou menos. O que chamava mesmo a atenção era o olhar do vivente. Olhava em todas as direções, como se estivesse esperando algo importante acontecer. Resmungava algo, ininteligível, por detrás da longa barba semigrisalha. Parecia-se com mais um daqueles pitorescos personagens da vida real, dos quais nada sabemos, nem queremos, na verdade. O resmungo assumia ares de discurso, quando levantava o queixo e o dedo indicador da mão direita em riste. Raimundo estava passando da bola de frutas vermelhas, que acabara, para a de pistache, no fundo do copinho, quando ouvi o grito:

- Você! Aqui?

Era o sujeito do discurso. E, o pior, olhava na direção de Raimundo. Ou melhor, na direção deles, pois deveria estar olhando para alguém sentado atrás mais adiante. Virou-se para olhar o provável interlocutor e... ninguém. Seria com Raimundo? Ele detestava pagar mico, portanto ficou na sua, enterrado na bola de pistache. Foi inútil, o homem continuou gritando:

- Não se lembra de mim? Sou o André!

Raimundo conhecera alguns Andrés na vida, mas aquele não era um deles, com certeza. Antes que pudesse reagir, o sujeito estava sentado na cadeira do outro lado da mesa.

- Qual é, não se lembra mais dos tempos de colégio? Você mudou, mas ainda consigo reconhecê-lo de longe.

Raimundo começou a rebobinar as memórias, em alta velocidade, tentando descobrir onde esse tal de André se encaixava. Após duas passadas completas, em ambas as direções, nada encontrou. No Colégio do Barão? Não, não. No Colégio dos Farrapos? Menos ainda. Ele falou em colégio. Não seria na universidade, portanto. Desistiu e voltou para a última colherada do pistache. Verde estava ele, com aquela situação desagradável. O sujeito sorria aquele sorriso de quem encontra alguém, há muito perdido. Ele continuou a preleção:

- Rapaz, por onde você andou? Nunca mais o vi.
– Nem eu - pensou Raimundo.

Quando alguém começava a lhe falar, que não reconhecia num primeiro momento, procurava sondar a sua identidade através daquela conversa genérica e atemporal, que se pode utilizar para falar com o açougueiro e com o Papa. Lá pelas tantas, o elo perdido se restaurava. Ou, pelo menos, ele não passava por tão antipático. O sujeito já não lhe parecia tão estranho e repulsivo. Começou a achá-lo familiar, até.

- Que tempos aqueles, hein? – o homem continuou sorrindo, enquanto abanava a cabeça, como que aprovando, os olhos perdidos, prescrutando algum lugar no passado.

- Você continua lá.... no... – Raimundo jogou verde, mais verde do que o sorvete. E colheu verde também:

- Tá louco? Eu não poderia continuar lá! Em lugar nenhum, por sinal. Você se lembra do que houve, não lembra? – agora lhe encarava firme, impossibilitando qualquer fuga.

- Ahã... – como ele sairia dessa?

- Bom, foi um prazer revê-lo, mas chegou minha hora, tenho de andar. – mentiu.

- Você sabe que eu enlouqueci, não sabe? – André fingiu ignorar a tentativa de fuga.
Nesta última colocação, Raimundo acreditou piamente. André – ele já o chamava pelo nome! – tinha cara de quem merecia conhecer Freud e Lacan, profissionalmente. Então, Raimundo começou a ficar com medo, realmente. Estava sentado junto a um louco declarado e pegajoso. Olhou para os lados, na esperança de que mais alguém sentasse por ali para ser reconhecido pelo ex-colega André. Ninguém à vista. Desolado, ficou ouvindo a estranha conversa do André.

- Você lembra como eu era, no Primário? – o cara era velho mesmo, pensou, estudaram juntos, hipoteticamente, no Primário.

- Eu era um riquinho da classe média burguesa e imperialista – continuou André - Ganhava presentes de Natal, coisa típica dos decadentes dominantes. E era feliz, muito feliz. Lembra da nossa casa, branca, com um grande gramado na frente? Casa linda aquela, ocupada apenas pela nossa família, numa atitude arrogante das elites direitistas decrépitos.

Raimundo imaginou que o homem era parente do Mao Tse-Tung, aliás, do Péssimo Tse-Tung, pelo visto.

- Eu caí na real quando entrei no grêmio estudantil do Primário, e conheci o Ernesto “Ho Chi Minh”. Ele estava tão envolvido com a atividade sindical estudantil primária que não conseguia passar no Admissão, exame para ingresso no Ginasial. E se passasse, o que faria lá? A especialidade dele era o Primário, um sindicalista estudantil definitivamente primário. Aprendi as primeiras noções de concentração de renda com o Ho – diminutivo revolucionário do apelido dele -. Ho sabia das coisas. Ensinou-me a não levar mais o lanche para o recreio. Logo descobri que o lanche era coisa da maioria opressora privilegiada. Recém ingressado nas minorias oprimidas do colégio particular, passei a da dar meu lanche ao Ho, enquanto pedia pedaços dos lanches dos outros, numa primária atitude popular de distribuição de renda. Passei a me vestir com o designer do Ho. Larguei as calças justas, e as camisas Volta ao Mundo, e passei a usar a primeira túnica estilo Mão, da cidade. As meninas decadentes, microssocialites, faziam chacota, apelidando-me Andréia “Jiang Qing” (mulher do Mao Tse-Tung). Maldade decadente, por causa da túnica. Lembre-se de que era um tempo em que não se podia sair à rua com uma raquete de tênis, sem ser chamado de Maria Ester Bueno. – ele parecia muito longe, no tempo e no espaço.

Antes que Raimundo pudesse dizer outro animador e encorajador “Ahãm”, ele continuou:

- Meu pai era arenista, rotariano, leonino e membro honorário da TFP – Tradição, Família e Propriedade. Um ultradireitista que dirigia um Aero Willys Itamaraty e sonhava em abrir uma franquia tupiniquim da KKK – Ku Klux Klan. Já era sócio honorário e fundador da NRA (National Rifle Association) Brazil, versão local, onde atiravam com espingardas de pressão. Quando cheguei em casa, vestindo aquela túnica, trazendo o Ho a tiracolo, mamãe desmaiou e papai enfartou. Tentaram me dar doses extras de sucrilhos e me obrigaram a ler pelo menos um volume de Seleções, por dia. Ho me salvou. Comia os sucrilhos, com leite e banana, e levava as Seleções para casa, me poupando dessa lavagem cerebral imperialista. Nessa época tive meu primeiro contato com a célula mirim do Partido Comunista Colegial Proscrito, o PCC-P. Fui o primeiro, e único militante da Frente Popular Sierra Maestra, núcleo de guerrilha suburbana de ataque às plantações de cana nos quintais das DSTCT – Decadentes Senhoras que Tomavam Chá à Tarde. Minha missão era incendiar os canaviais das imperialistas, gerando o caos econômico doméstico e a convulsão social estratificada, na classe média. O Ho apenas orientava, à distância, pois era muito visado. Apesar da militância revolucionária primária, acabei ingressando no Ginasial.

Sem notar, Raimundo acabou pedindo outro copinho de sorvete, desta vez para o André. Evitou o pistache, coisa de italiano facista, e mandou carregar nas frutas vermelhas, em respeito ao passado do homem. Ele comia, encantado com a cor, e falava ao mesmo tempo:

- No Ginasial a coisa ficou séria, conheci o Fernando “Che”, militante das VRPG – Vanguardas Revolucionárias Populares Ginasianas -, filiadas a CUT (corte, em inglês). Ali aprendi as técnicas de guerrilha urbana estudantil. Errava propositadamente o nome dos alunos, nas carteiras de estudante, e colava fotos de procurados, pela justiça, recortadas dos jornais, no lugar das fotos dos oriundos das famílias da classe média decadente. Todos, menos o Che. Ele precisava permanecer oculto, para o bem do movimento. Na carteira de estudante do Che, colei uma foto do Alain Delon, para ajudá-lo com as meninas imperialistas, que passavam as tardes comendo (ou tomando?) Gilda e ouvindo os gemidos orgásmicos de Jane Birkin em Je t’aime moi non plus. O supremo ato terrorista que pratiquei, naquela época, foi a detonação da bomba de gás sulfídrico (flato engarrafado) na sessão inaugural do filme Romeu e Julieta, cheia de freiras. Houve outros episódios, como a queima de todos os exemplares do Pequeno Príncipe, da biblioteca do colégio. A revolução estava no meu sangue, circulava pelas minhas veias. Passava as tardes colocando propagandas de modess, recortadas de revistas velhas, nas caixas de correio das decadentes DSTCT. Algumas tiveram ânsia de vômito, por causa das violentas fotografias. Vingança do proletariado, que exigia a continuidade dos paninhos higiênicos.

- Cheguei então ao Científico, antro que reunia a nata da elite imperialista decadente da classe média, que pretendia estudar Engenharia e Medicina. Nessa época ampliamos a ação do movimento, com as VaRePoS – Vanguardas Revolucionárias Populares Secundaristas, filiadas a UNE – União dos Nacional dos Estigmatizados. Foi aí que a coisa ficou pesada. Começamos a acompanhar as notícias veladas dos atentados e seqüestros promovidos pelos camaradas do centro do País. Assistimos ao Laranja Mecânica, com cortes e bolinha preta acompanhando as partes pudicas dos personagens, nas cenas de nudez.

A eloqüência de André cativou Raimundo, que já o considerava um íntimo.

- Sonhávamos com a Brigada Prestes. Cada cassação dos políticos de esquerda nos enchia de mártires e heróis. Passei a vestir macacão jeans folgado e camisa de flanela xadrez, vermelho e verde, com boina preta, sem ponta. O cabelo longo, descuidado, era outro símbolo da contra-cultura que ouvia os choros descornados de Joan Baez e os lamentos revolucionários de Mecedes Sosa. Já a Mercedes Benz era um alvo para os camaradas do Baden-Meinhof, que colocaram um punto finale no banqueiro Jürgen Punto. Da Itália vinham os feitos dos revolucionários intelectuais das Brigate Rosse. Os camaradas franceses explodiram a loja parisiense dos chocolates Godiva. Nossos heróis locais foram ao exílio, sofrendo os horrores dos vinhos e das culinárias chilena e francesa. Os coitados foram obrigados a estudar na Sorbonne! Sonhamos com a volta deles, no dia em que a revolução finalmente triunfasse no País, nos livrando do jugo capitalista e imperialista.

Raimundo estava tão absorto que não percebeu que outras pessoas foram chegando, pedindo seus sorvetes, e sentando ao redor. A voz firme e determinada de André os enfeitiçava. Todos ouviam em silêncio.

- Por favor, continue! – disse uma senhora, com ares de socialite que toma sorvete na Reverendo Feridas, no final de tarde.

A voz de André parecia revigorada pela súplica da dondoca:

- Cheguei à universidade, numa época em que os movimentos estudantis explodiam pelo País. O campus da USP foi invadido pelas tropas retrógradas imperialistas do governo. Mantivemos brigadas de resistência, as Libelú – Liberdade e Lupanares. Assistíamos aos proscritos filmes suecos nos porões do Prédio Velho da Engenharia, na Sessão Olho Vivo. Lembre-se que a Suécia era o modelo de comunismo perfeito. E também de sacanagem.

O dono da sorveteria se juntara ao público, que já ultrapassava as 100 pessoas. Alguém trouxe um banana-split para o André, que disse preferir um pijama havaiano da Nevada. Mesmo assim, comia com gosto. André comentou que um chope ia bem, no fim de tarde. Foi prontamente atendido, pelo garçom do bar ao lado, que se juntou aos convivas da sorveteria. André bebeu o chope de um só gole. Era o primeiro, em muitos anos. Prontamente apareceu outro, na sua frente. Ainda com o bigode cheio de espuma, André continuou:

- Sonhei em entrar no Partido Comunista, mas era muito perigoso. Os camaradas achavam melhor entrar no MDB – Movimento Democrático Burguês, que então abrigava todas correntes progressistas, mais ou menos à esquerda. O importante era estar à esquerda, seja lá do que fosse. Participei das queimas semanais do boneco do reitor, na universidade. Fiz diversos amigos bolivianos, no restaurante universitário. Se alguém entendia de pobreza, eram eles. E entendem muito, até hoje. Parece que aprendemos muito com eles. Nossos ídolos exilados continuavam a sofrer, no exterior, tendo de enfrentar culturas exóticas, como a francesa. Alguns foram obrigados a comer escargots e foie gras. Outros foram forçados a beber Veuve Clicquot. Não era de boa safra. Foi pura provocação. Tempos difíceis aqueles.

Um balconista, do armazém de virtuosamente secos e chiquerrimamente molhados, da outra quadra, que trouxera uma garrafa de Veuve Clicquot, a escondeu rápido, voltando com uma Moët et Chandon. Aparentemente acertou, pois André continuou:
- Saí do curso de Filosofia pronto para resolver boa parte dos problemas do mundo. Os três professores que não foram presos durante o curso, não compareceram à formatura. O reitor enviou representante. E a brigada de choque. Apesar de tudo, nós três, que não fomos presos, naquela semana, nos formamos. Os primeiros formandos de Filosofia em dez anos. A cana pintou depois, quando mostramos as bundas, com pinturas da foice e do martelo, ao público presente à cerimônia. Enquanto isso, nossos ídolos, heróis e mártires sofriam na França, obrigados a freqüentar aqueles horrendos cafés parisienses, onde somente os poodles eram bem-vindos.

André ficou quieto. Pensou um pouco e fez menção de se levantar.

- Por favor, senhor, não vá embora agora! O que aconteceu depois? – gritou uma mulher que ouvia tudo calada. A multidão já não cabia na calçada, perturbando o trânsito local.

André deixou seu corpo cair novamente na cadeira. Após um longo suspiro, deixou que o seu olhar se focasse novamente em algum ponto no passado.

- Começamos a conquistar espaço na sociedade. Riram de nós, no início. Investimos nos operários, criando sindicatos que acabaram lançando candidatos aos cargos eletivos. Nessa época, nossos pobres exilados retornaram e vieram engordar as fileiras dos movimentos sociais progressistas. As elites dominantes passaram da piada ao medo. Começaram a temer aqueles operários que falavam com a língua presa e a gramática liberta, erguendo multidões em comícios improvisados. Era a gente do povo que se rebelava contras os imperialistas da ditadura direitista. Conquistamos espaço. Criamos réplicas do MeCê Donaldo para queimá-las, antes mesmo de instalarem a primeira loja no País. Criamos movimentos sociais segmentados, os Sem. Lutamos contra a mecanização da agricultura, contra a globalização e tudo o que pudesse reduzir os empregos, mesmo que inexistentes.

O rosto do André mudou de expressão. Raimundo podia perceber que uma angústia muito grande tomara conta do improvisado narrador, que parecia encontrar alguma dificuldade para continuar. A mesma dificuldade que os agentes de trânsito enfrentavam para fazer o trânsito fluir na Reverendo Feridas, agora tomada por uma imensa multidão. Optaram por desviar o tráfego para as ruas paralelas, após a chegada das equipes de televisão. O programa do D’antena passou a transmitir as palavras do André, ao vivo, deixando de lado as enchentes paulistanas, pela primeira vez, em oito meses. André parecia alheio a tudo, pois fez menção de levantar, novamente. O coro “fica... fica...” tomou conta das redondezas. Podia ser ouvido como uma espécie de eco, vindo das janelas dos prédios próximos, e de outros nem tanto, tomadas de gente. André respondeu, frente aos inúmeros microfones:

- Eu não agüento mais... – foi calado novamente pelo coro do fica.

- Mas, eu preciso ir ao banheiro! – gritou ele, enquanto se levantava.

Fez-se o silêncio na Reverendo Feridas. Ele voltaria? Não tentaria fugir pelos fundos da banca de revistas que emprestara seu toalete? Uma espécie de patrulha improvisada ficou a vigiar. Um câmera da tv conseguiu subir num galho de árvore, para cobrir os fundos.

- O que é isso gente? Começou e agora vai fugir? Não tem coragem para assumir? – gritava D’antena, dos estúdios em São Paulo.

Quando André ressurgiu da porta da banca, ouviu-se um berro coletivo comparável àquele da cobrança do último pênalti, o que deu a vitória, na final da Copa. Raimundo não ousava tentar sair dali, pela curiosidade, pela pena que sentia do tal de André, e pelo medo de ser pisoteado pela turba. Os oportunistas de plantão não perderam a oportunidade de vender crepes de lagosta e churros de caviar. O estoque da sorveteria esgotara-se logo. Os seguranças privados da rua abriram caminho para que André pudesse retornar ao seu lugar, à mesa. Nesse meio tempo, colocaram um pequeno bufê sobre a mesa. André sorriu novamente. E continuou:

- Então os intelectuais voltaram do exílio. Foram comunistas, voltaram socialistas. Falavam na tal de socialdemocracia (pasmem, assim, segundo o Houaiss), coisa difícil de ser entendida pelos comunistas que ficaram aqui, os que não sofreram as agruras da França. Como eles sofreram tudo aquilo na carne, deveriam saber melhor o que seria bom para o movimento – retilíneo, uniformemente variado. Em queda livre, pelo visto. Queda livre dos dogmas marxistas, leninistas e trotskistas. Maristas também, vá lá. Os franceses inventaram uma nova arma progressista para ser usada no combate aos imperialistas: o lixo, montanhas enormes de lixo, acumulado nas ruas de Paris. Aqui não deu certo, pois já havia montanhas de lixo antes dos protestos. Ninguém percebeu a diferença.

- Cadê o prefeito, numa hora destas? O povo exige uma resposta! – gritava D’antena, no programa ao vivo. Alguém achou melhor avisá-lo de que os fatos narrados haviam ocorrido há muitos anos.

- Comigo não pega essa desculpa esfarrapada! É melhor inventar algo melhor! Ora, tá pensando que eu sou bobo? – D’antena continuava gritando enquanto fazia cara de mau para a câmera.

André nada sabia de transmissão ao vivo. Estava monologando com seu velho e hipotético colega de aula, cujo nome não lembrava, nem sabia. Creditava a ignorância, ou o esquecimento, aos medicamentos que haviam lhe dado. Olhou para Raimundo, do outro lado da mesa, separados agora pelo bufê, e falou:

- Após a queda das elites ditatoriais da direita, assumiu outra elite, também de direita, feito um terrível bando de vespas incendiárias. A seguir, fomos desmoralizados pelo pessoal do safári à indiana. Finalmente, fomos derrotados pela socialdemocracia. Caiu o Muro, ficamos fora de moda. As elites passaram a nos convidar para os eventos. Era chique confraternizar com os vermelhos, dizendo publicamente que votariam em nós. Tudo não passava de uma armadilha para nos dividir e desmoralizar. Precisamos de um operário, com cara de operário, não de galã de filme italiano, para nos levar de volta à esquerda rançosa que tanto cultuamos. Tínhamos orgulho do ranço, já que era um ranço que poderia tirar o País do atoleiro. Estávamos fazendo cross-country com pneus slick (carecas).

Nesse ponto, André calou-se. Sofria, não mais de vontade de ir ao banheiro. Era um sofrimento psicológico intenso. O silêncio só foi quebrado pelo espocar de algum champanha, aqui e ali. Ouvia-se ao fundo, bem ao fundo, o apito do agente de trânsito que já o desviava a duas quadras de distância.

- Como é que é? Incendeia tudo e agora se cala? – esbravejava D’antena.

André não sabia que estava sendo patrocinado pela cinta modeladora corpórea Crazy Pelanka. Tempo na tv era dinheiro. E D’antena sabia disso. O cara devia desembuchar logo.

A noite já entrava, quando André conseguiu vencer o sofrimento antecipado, devido à fala que se seguiria:

- Nos livramos da socialdemocracia para colocar um operário no poder. O País explodiu em festas populares. Foi carnaval em pleno outubro. Passada a festa inicial, descobrimos que os novos operários vestiam ternos pretos, sem haverem morrido. Inventaram os marxistas-keynesianos, que acreditam que “os adversários se enfrentem, desde que do mesmo lado”, os “leninistas de mercado”, conforme narra Serge Halimi em um artigo do Le Monde Diplomatique. Nossos heróis mostraram ter adquirido outras habilidades, discutíveis tanto nos regimes de direita como de esquerda. Mas, mesmo de terno preto, nossos operários continuaram sendo operários. Portanto, conseguimos reconduzi-los ao poder. Foi difícil explicar algumas coisas às bases das células do partido, mas mesmo assim, conseguimos. Usamos à exaustão o argumento de que os governos deveriam representar todos segmentos da sociedade, inclusive o dos imperialistas decadentes de direita.

A expressão de profundo sofrimento voltou ao semblante do André. Começara a falar cada vez mais baixo, como se o fôlego lhe faltasse. Empaticamente, o público aparentava sofrer com ele, desde as socialites até os flanelinhas, que perdiam renda, pela falta de carros. A Reverendo Feridas não era mais uma opção de trânsito. Apesar disso, não arredaram pé dali. André recebeu um bilhete, passado de mão em mão, até alcançá-lo. Era um convite de Opra Uínfrei, para uma entrevista exclusiva. Ele o leu, ignorando aquele número de muitos dígitos, lá escrito. Não estava gostando nada da situação. Viera consultar com o psiquiatra do convênio do partido e acabara nessa situação, enquanto aguardava o horário da consulta. Mas não poderia deixar de contar tudo ao ex-colega. Qual seria o nome dele? Parecia conhecê-lo tão bem. Comeu alguma coisa do bufê, que lhe fez pensar no quanto os capitalistas sofriam para se alimentar. O que, em nome de Lênin, seria aquilo? Aparentava ser petróleo, tinha cheiro de peixe podre e gosto de areia de uma mina de sal ao lado de um descasque de camarão. Será que aprendiam a comer essas coisas na França? Teve de engolir mais um chope para tirar aquele gosto.

- Agora parou para ler bilhetinhos e fazer uma boquinha! Enquanto o Brasil todo espera! Onde estão as autoridades neste momento? Cadê o Ministro das Comunicações? – D’antena parecia transtornado.

André cuidou, ao dizer as próximas palavras. Usou o mesmo tom de voz:

- Eu não estava preparado para descobrir que nosso líder tentaria dobrar seu próprio salário, e defenderia a idéia com unhas e dentes. Um comunista que achava que seu trabalho valia 64 vezes mais do que o salário de um operário que não vestia terno preto. Em seguida, tentei me matar. Não foi nem pelo deputado comunista. Eu não poderia imaginar quem era o candidato a ministro da agricultura. Nem um leninista-keynesiano poderia imaginar. Foi então que atentei contra a minha própria vida. Comi o meu primeiro xisburguer infantil, com brinde surpresa. Um palhaço.

D’antena ficou parado, quieto, apenas olhando para a câmera. Havia momentos em que o silêncio valia por mil palavras. Após alguns segundos, chamou o comercial da Crazy Pelanka. As pessoas começaram a deixar o local, de cabeça baixa, em silêncio, em respeito àquela pessoa que ali confessara coisas tão íntimas, como a própria loucura. Raimundo permaneceu sentado, com pena do homem. Subitamente lembrou-se por que estava ali. Estava esperando o Japa, que fora ao dentista, e não conseguira retornar, devido à multidão.

Ho, você por aqui? – gritou André.

O Japa virou-se para ver com quem aquele amigo do Raimundo falava.

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