23.1.08

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Foto: Paulo Heuser
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Após 350 postagens, este blog declara-se em FÉRIAS, até a quarta-feira de Cinzas.

20.1.08

Os leiautistas

Foto: De Tudo um Pouco

Os leiautistas

Por Paulo Heuser


Nos primórdios empresariais não havia preocupação com leiautes. O dono do negócio contratava um feitor, chamado também de gerente, que determinava onde os demais vermes, digo, colaboradores, ficariam sentados, quando se sentavam. Quem reclamava podia procurar outro lugar, em outra empresa. Depois veio a época da eficiência. Analistas de O&M – Organização e Métodos – estudavam os processos, a movimentação dos funcionários – já não eram mais apenas vermes – e determinavam o melhor posicionamento do mobiliário, sempre pensando na eficiência. Finalmente, quando os funcionários tornaram-se colaboradores, os novos ventos da gestão de pessoas deixaram para os próprios ex-vermes a escolha do leiaute do seu lugar de trabalho.

Os espaços físicos, por si só, deixaram de ter importância. O importante passou a ser a equipe, o time. Não há time vencedor sem um líder. Antigamente definiam gerente como alguém que conseguia que os outros fizessem coisas para ele. Hoje, defini-se líder como a pessoa que senta ao lado da janela. Os líderes conseguem posicionar sua mesa ao lado da janela exatamente por serem líderes. São conhecidos também como cascudos de aquário, permanentemente grudados ao vidro.

Os verdadeiros líderes conseguem sentar-se ao lado da janela porque são os leiautistas de plantão. Estão sempre propondo mudanças no leiaute, dos outros. Mantêm o espaço graças ao caos espacial dos demais vermes, digo, colaboradores. Não esperam a hora, fazem acontecer. Sabedores de que a relativa estabilidade espacial pode levar à revolução, provocam mudanças, mesmo quando desnecessárias. Um bom leiautista transfere os vermes, digo, colaboradores, de um lado para o outro, mesmo que as mudanças sejam desnecessárias. O que importa realmente é a manutenção do ambiente em permanente dinâmica. Assim, asseguram seu lugar ao sol. Como leiautistas, trocam todo mundo de lugar, menos eles próprios, evidentemente.

Definir os espaços ocupados pelos membros de um time é algo que exige conhecimento de equipe. Aqueles velhos ensinados de O&M são coisa do passado. Do tempo em que não havia Orkut, You Tube nem jogos de paciência. Os jogadores de paciência modernos são denunciados pelos cliques do mouse e pelo olhar bestificado. Olham fixamente para a tela enquanto clicam compulsivamente. Esses colaboradores devem sentar de costas para a parede, recebendo um mouse pad acolchoado para absorver os cliques. Os colaboradores fonófilos, que não abrem mão dos fones de ouvido, devem ser colocados na entrada da área, pois nada ouvem quando alguém lhes pergunta algo, nem ouvem a campainha do telefone.

Um cuidado especial deve ser tomado com os colaboradores megafones, que exaram opiniões aos brados, em todas as direções. São os Galvões Buenos. Preferencialmente, devem ser confinados nos armários. Os leiautistas sabem de todas essas coisas. Preocupam-se especialmente com as samambaias, seres que povoam os frios escritórios modernos. Samambaias dependem da luz, como alguns seres humanos. Não muitos, na verdade. Quem depende mesmo da luz são os próprios leiautistas. As samambaias deles são as maiores, as mais verdes e as mais vistosas. A saúde da samambaia é termômetro da eficiência do leiautista.

Naturalmente, os leiautistas vêem seus pequenos feudos envidraçados permanentemente ameaçados por algum colaborador insurgente. Conseqüentemente, os leiautistas nunca conseguem gozar férias tranqüilas, mesmo quando levam consigo a samambaia. Ficam permanentemente a pensar na possibilidade de um dos membros da equipe promover uma mudança de leiaute na ausência dele. O pavor foi tanto, que alguns leiautistas fundaram o Cartel Leiautista, trocando idéias e experiências. Desse grupo surgiu um produto moveleiro que lhes dará relativa tranqüilidade: mesas fabricadas sob medida para o prédio, todas unidas e impossíveis de mover. Uma vez instaladas, não podem mais trocá-las de lugar. Esse novo tipo de mobiliário tornou desnecessárias as mudanças preventivas promovidas exclusivamente para a manutenção do lugar junto à janela, reduzindo sensivelmente os custos.

O lançamento do mobiliário definitivo não passou despercebido. Além de o projeto conquistar o prêmio Destaque Empresarial, na área de leiautes, o gerente do projeto recebeu uma promoção para um cargo de extrema confiança. Passará a liderar a equipe de um projeto tão secreto que eles trabalham no quinto subsolo.


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16.1.08

Anphitheatrum Flavium

Foto: Paulo Heuser
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Amphitheatrum Flavium

Por Paulo Heuser


Quem chega a Paris, quer ver a Torre Eiffel, quem chega a Roma, quer ver o Coliseu. Quem chega pelo metrô, descendo na estação Colosseo, sobe ansioso o lance de escadas que leva a Piazza Del Colosseo – Praça do Coliseu. Ao deixar a estação, os turistas vêem o cartão postal de Roma. Está lá, do outro lado da avenida. Lá os temidos motoristas romanos mudam um pouco seu comportamento. Sensibilizam-se com aqueles pobres coitados estrangeiros que insistem em atravessar a Via dei Fori Imperiali sem olhar para os lados. A construção iniciou em 72 d.C., durante o império de Vespasiano e foi concluída em 80 d.C., por Tito.

A vizinhança do Coliseu é tão ou mais fantástica do que o próprio. Do Arco de Constantino ao Foro Romano, cada passo é um mergulho na história. A vista do Foro a partir da Casa das Vestais é impressionante. O Templo de César, o Circo Máximo, o Templo de Saturno, de Antonio e Faustina, o Arco de Tito, tudo está concentrado no centro de Roma. Poderíamos perambular durante meses por ali, sempre descobrindo algo novo, muito velho. Dos arcos externos do Coliseu vê-se o monumento a Vittorio Emanuele II, muito mais recente, mas igualmente impressionante.

Quem viveu a época dos grandes épicos cinematográficos, como eu, lembra-se do Coliseu de Roma como arena de lutas. O povão ficava sentado naquelas arquibancadas, dividido conforme a cor do cartão de crédito, enquanto os leões devoravam cristãos e os gladiadores se matavam na arena. Spartacus (1960) de Stanley Kubrick, com Kirk Douglas, foi um clássico cinematográfico sobre gladiadores. Os gladiadores foram escravos que sonhavam com a liberdade, conseguida após vencerem as lutas no Coliseu. Eram zeros à esquerda que podiam ser alçados ao sucesso, graças ao gládio. Os combates faziam parte da política panis et circensis – pão e circo -, concebida para distrair o povo. Segundo os filmes de época, o destino dos gladiadores incapacitados pelos ferimentos era decidido pelo imperador, que sinalizava ao vencedor após consultar o público presente. Como o público queria mesmo ver sangue, o final era previsível. O Coliseu chegou a abrigar 50 mil espectadores, número muito expressivo até nos dias de hoje. Cinqüenta mil pessoas certamente têm poder de opinião.

Chegamos a 2008 d.C., e o Coliseu ainda está de pé. Meio descascado e faltando alguns pedaços, porém de pé. Alguns sentem estranhas sensações ao percorrer aquelas arquibancadas. Sentem-se parte da história. Ouvem sons vindos de quase dois mil anos atrás. Quem percorre as ruínas do Foro Romano, com seus palácios e templos, tem mais paz. Há menos turistas andando por lá. Na Colina Palatina, local do nascimento de Roma, pode-se ficar quase sozinho. Menos turistas se aventuram por lá, talvez pela ausência de lojas de lembranças ou de cafés. Sentado sobre uma pedra, observando o Circo Máximo, me ocorreu que a história se perpetua. Foram-se as lutas de gládio, proibidas por Constantino I, ficou o Big Brother Brasil, com seus paredões. Se você deseja que o gladiador 1 morra, disque qualquer-coisa-1. Se deseja que o gladiador 2 morra, disque qualquer-outra-coisa-2. Só não deixe ambos viverem. O público não gosta de finais muito felizes, passando a exigir mais pão. Procuro a tecla correspondente ao Foro Romano, no controle remoto, mas não consigo localizá-la.


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14.1.08

Abraços alternativos

William-Adolphe Bouguereau (1825-1905) - Two Sisters (1901) - Wikipedia
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Abraços alternativos

Por Paulo Heuser


Toninho e Tininha enriqueceram. Não desperdiçaram a maior oportunidade das suas vidas. Pularam no vagão dos passageiros da fortuna enquanto o trem passava. Passando para linguagem um pouco menos figurada, eles fizeram um ótimo negócio.

Tudo começou quando preparavam um trabalho de Emotividade Psicomercadológica III. Eles perceberam o mercado da solidão. Observavam o hábito de mandar um abraço, enraizado nos relacionamentos que ficam entre os negócios e a paixão. Pessoas de negócios mandam abraços, via e-mails ou telefone, quando já conhecem o interlocutor. Mandam abraços, no plural, pois um só poderia parecer íntimo demais. Curiosamente, essas pessoas não costumam se abraçar quando se encontram pessoalmente. Exceções são os vendedores e os políticos, que, no fundo, são a mesma coisa. Uns vendem coisas reais, outros não. Abraçando-se, enquanto preparavam o relatório, perceberam também que o abraço é uma forma universal de transmitir algo. Os amantes transmitem tudo aquilo que quase todo mundo sabe o que é através de um abraço, um demorado abraço. Toninho e Tininha estavam abraçados desde as sete da matina, do dia anterior.

Inimigos de palanque, quando pegos em público, trocam abraços molengas que, mesmo assim, transmitem coisas impublicáveis. Velhos amigos trocam abraços que falam por si só. Mães e pais abraçam sua prole como se abraçassem o mundo, transmitindo segurança e afeto. Tininha foi mais a fundo na coisa, e descobriu que ninguém sabe exatamente como se transmite emoções através do abraço. O fato é que conseguimos. Pesquisando, Tininha observou que havia pessoas que necessitavam desesperadamente de um abraço. Ela própria já enfrentara essa situação, quando Toninho passara o fim de semana visitando os pais. Foram 36 horas de extrema solidão, que levaram Tininha ao apartamento do Luis. Ela foi pega pela extrema crise de abstinência de abraços. Ainda bem que o Luis estava lá.

O clique propriamente dito veio quando Toninho fechou o flipe do celular, após falar com o primo Jorge. – Uma abração, Jorge! – Foram suas últimas palavras. Não, ele não morreu, apenas encerrou a ligação. Tininha ficou ali, muda, olhando, ora para o celular, ora para a mão de Toninho que a mantinha no abraço. Toninho pensou que Tininha havia perdido o juízo, quando ela pediu que ele vestisse roupa branca e que buscasse um saco de carvão. Ela abiu o saco, passou as mãos no pó de carvão e veio na direção do imaculado e apavorado Toninho, que apenas gritava: - O que é isso, ficou louca? - Ele não conseguiu evitar que Tininha o abraçasse com aquelas mãos imundas de carvão. Quando ela finalmente parou de abraçá-lo, Toninho lembrava um cão dálmata. Havia vestido o casaco de peles da Cruela. Tininha ordenou, sem mais explicações, que ele tirasse roupa, que foi levada ao apartamento do Luis, notório abraçador substituto e nerd de plantão do laboratório de Física da universidade. Luis ouviu atentamente as explicações da Tininha, enquanto tentava abraçá-la. Meio a contragosto, desistiu dos abraços e pôs mãos à obra. Levou a Tia Eulália, costureira, para o laboratório e, após duas semanas ininterruptas de trabalho, saíram de lá com um protótipo do que seria o maior sucesso de vendas desde o maldito tamagoshi. Encurtando a história, até por uma questão de espaço, eles inventaram uma roupa de abraços. O usuário número um simulava um abraço, vestindo aquela roupa cheia de sensores, e discava para o celular do usuário dois. Este recebia um aviso de abraço entrante e conectava o celular com a sua roupa de abraços. A roupa copiava o abraço original, inclusive simulando a temperatura corporal, mediante pagamento de uma pequena taxa adicional.

Apesar de a roupa não transmitir emoções, foi um estouro de vendas. Todo mundo queria uma daquelas roupas, mesmo aqueles que passavam todo o dia grudados, em eterno abraço. Havia gosto de traição, no uso da roupa. Luis passou a ligar para a Tininha, mandando abraços, sem que Toninho soubesse, é claro. Toninho teve a idéia de lançar um tele-serviço de abraços. O usuário ligava para uma central, que, por sua vez, ligava de volta, transmitindo um abraço aleatoriamente escolhido entre as chamadas. Logo pipocaram as roupas falsas na 25 de Março. O segundo lote até que fez sucesso. O primeiro apresentou um sério problema. O fornecedor chinês inadvertidamente simulou um abraço de animal, em vez do abraço humano. Um abraço de urso.

As imitações se tornaram cada vez melhores, algumas até incluindo novas funcionalidades, como um gemido suave. Em efeito melissinha, as vendas começaram a cair. O fato que determinou o fim da roupa de abraços foi o lançamento de um livro escrito por um cientista esquimó, que defendia o abraço direto, interpessoal e presencial. Ou seja, o velho e bom amasso.


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8.1.08

O acidente do Tut


Foto: Wikipedia
O acidente do Tut

Por Paulo Heuser


Os cientistas não param de nos surpreender com fantásticas descobertas e revelações. Quando achamos que já vimos tudo, lá vem outra revelação. Em meio às louváveis campanhas para redução dos acidentes de trânsito, leio uma revelação não tão nova, porém surpreendente. O Tutancâmon – Tut para os íntimos – morreu em decorrência de um acidente de trânsito, em 1324 a.C. Ele teria sofrido lesões no crânio, ao cair da carroça em movimento, enquanto caçava. Isso por si só já prova que dirigir e fazer outra coisa ao mesmo tempo dá problema. Tudo leva a crer que Tut ignorou o cinto de segurança.

Da Londres de 1889 vem o relato de um acidente de trânsito provocado pelo excesso de velocidade. Um motorista enlouquecido dirigia o carro a mais de 20 km/h, quando os raios das rodas dianteiras se quebraram. Pelo visto, os buracos já haviam sido inventados naquela época. O motorista e um passageiro foram arremessados para fora do veículo, logrando êxito letal, como diria o boletim policial. Nova evidência forte de que haviam ignorado o cinto de segurança.

Isadora Duncan (1877-1927) foi uma dançarina norte-americana que escandalizou o mundo civilizado ao dançar descalça músicas de autores impensáveis como Chopin e Wagner, que, pelo pensamento da época, compunham peças para serem apenas ouvidas. Isadora brilhou em vida e teve uma morte estranha. Seu echarpe enrolou-se na calota da roda do esportivo francês Amílcar 1924, do qual era passageira, em Nice, França. Isadora provou, na prática, que o lugar do cinto não é no pescoço.

Aí pelo ano de 1900, na Estrada Velha da Tijuca, no Rio de Janeiro, o automóvel francês de propriedade de José do Patrocínio (1854-1905), conduzido pelo Olavo Bilac (1865-1918), colidiu frontalmente com uma árvore, sem deixar vítimas graves. Não há registro dos motivos que levaram ao acidente. Contudo, há fortes evidências de que Bilac esqueceu-se momentaneamente da precisão da métrica parnasiana e fez uma curva alexandrina, quando deveria fazer uma decassilábica.

Apesar das inúmeras campanhas publicitárias que tentam reduzir os terríveis acidentes de trânsito, a situação parece piorar. Pudera, do jeito que dirigem, o resultado não poderia ser outro. Chegam a apelar para ataques à masculinidade nas campanhas publicitárias. É uma boa idéia, porém ainda há algo estranho nisso.

Ontem sinalizei para trocar de pista, após verificar pelo espelho retrovisor externo que não havia veículo próximo. Quando comecei a executar a manobra, ouvi a buzina estridente de um carro que se aproximava em alta velocidade, dando sinais de luz, a cerca de 30 metros atrás. Pensei que se tratava de alguém socorrendo um ferido, conduzindo-o ao Pronto Socorro. Qual não foi minha surpresa, quando parei no sinal, ao descobrir que o carro era tripulado por uma jovem loira que gesticulava e gritava impropérios impublicáveis. Terminada a saraivada, sacudiu a cabeça e gritou: - Só podia ser homem! Tentei justificar-me, imitando o pisca-pisca com a mão. Não sei se fui mal interpretado, mas ela ficou mais furiosa e gritou: - Seu... Seu... Seu impotente! – fazendo gestos com o polegar para baixo. Então, não me fiz de rogado. Deixei a atitude defensiva e mandei: - Sua... Sua... Sua frígida! Por sorte, o sinal abriu. Ela arrancou cantando pneus e seguiu velozmente em zigue-zague entre os demais veículos. Fará parte da Maldição de Tut?

George Edward Stanhope Molineux Herbert (1866-1922), o quinto Lorde de Carnarvon financiou as escavações que Howard Carter efetuou no Vale dos Reis, quando encontrou a tumba do Tut. Lorde Carnarvon mudou-se para o Egito por recomendação médica. Sofrera um terrível acidente, durante uma prova automobilística na Alemanha, em 1901, que lhe deixou seqüelas nos pulmões. O médico recomendou que fosse viver em um clima mais seco, como aquele do Cairo. Há rumores sobre uma discussão de trânsito entre Lorde Carnarvon e uma loira que tripulava outro automóvel, após aquele ter dado uma fechada involuntária no carro desta.

Eu só não consigo imaginar o que tenho a ver com toda esta história. Sequer vi a múmia do Tut!


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3.1.08

O selo



Foto: Wikipedia
O selo

Por Paulo Heuser


- Olha o seeeeelo! Olha o seeeeelo! É o do inmeeeeetro!

O sujeito gritava a plenos pulmões, atraindo aquela multidão dos que nada têm a fazer ou não têm pressa alguma em fazê-lo. São os que apenas estão passando sabe lá de onde, sabe lá para onde. Deles também é feita a multidão que assiste à abertura dos buracos de rua. Tonhão é um deles. Como não havia buraco à vista, ele escolheu assistir ao sujeito que gritava: - Olha o seeeeelo! Olha o seeeeelo! É o do inmeeeeetro! Tonhão chegara cedo ao Centro, porém esquecera-se do que viera fazer. O que fazer? Já que estava lá, o negócio era aproveitar. Posicionou-se a distância segura e adotou a postura padrão do observador universal urbano: um pé à frente, escorado sobre a outra perna, braços cruzados e olho atento à reação dos demais passantes. Em menos de dez minutos Tonhão passou de observador a perito. Então discorria com desenvoltura sobre seja lá o que for, utilizando uma das mãos para aumentar a eloqüência, sem descruzar os braços.

Um homem vestindo terno cinza-casamento, dos anos 50, parou para assistir ao espetáculo. Portava uma pasta cor-de-rosa para documentos, daquelas com elásticos que prendem os cantos. Dava para apostar na cabeça que sua origem ou seu destino eram o tabelionato. Aquele tipo humano vive nos tabelionatos. Mimetizam-se com os móveis de época. Uma época esquecida há muito. Cadeiras de espaldar de compensado já descompensado, mesas díspares, de alturas, comprimentos e larguras diversas, ventiladores de pé sofrendo do Mal de Parkinson e funcionários que nunca olham para os clientes. Eles sempre sabem o que o cliente deseja, mesmo que seja aquilo que o cliente não deseja. Tudo compõem aquela atmosfera de tabelionato. Pois o tal do passante que parou perguntou ao Tonhão sobre o tal do selo que o outro sujeito anunciava aos brados.

- Ô meu! É selo para carta?

Tonhão fez aquela cara de desalento de professor de Equações Diferenciais II e respondeu-lhe olhando para o lado:

- Não, homem! É o selo do inmetro, o novo!

O homem do tabelionato fez cara de aluno de Equações Diferenciais II. Tonhão percebeu que não se fizera entender e completou:

- É para o capacete. Agora exigem o selo do inmetro no capacete dos motoqueiros.

- Ah. Agora precisa, é? – O homem do tabelionato fez cara de quem entendeu o Teorema de Parseval.

- É, se o fiscal pegar o cara sem, dá multa de cento e noventa paus!

- Caramba! Tudo isso por causa de um selinho?

- Não é um selinho qualquer! Esse é do inmetro!

- É melhor do que os outros?

- Cara, esse não sai nem com álcool. É legítimo mesmo.

O homem da pasta rosa assistiu mais um pouco à gritaria do sujeito do selo e decidiu-se:

- Quero um! – Sorria, por trás dos óculos de fundo de garrafa de sidra.

- O senhor faz bem! Podem apreender sua moto, se não tiver o selo do inmetro no capacete.

- Eu não tenho moto... – disse o homem da pasta rosa.

- Por que quer o selo, então? – Tonhão perguntou.

- Esse não é do inmetro? – o homem assumiu novamente aquele olhar de aluno de Equações Diferenciais II.

- É...

- Então! Só compro do melhor!

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2.1.08

O homem e o mar

Foto: Paulo Heuser



O homem e o mar

Por Paulo Heuser


O homem sentou-se como pôde sobre a pequena duna apinhada de gente. Ele queria ver o mar. Ah, o mar. Quem algum dia não se quedou bestificado olhando para aquela imensidão de água? Assim ficou aquele homem olhando para o mar. Não fora fácil chegar até ali, pois havia gente demais junto à praia. Uma fantástica multidão que tentava desesperadamente chegar até o mar.

Como não sentir saudades da infância, quando ele podia correr livremente pela areia? Empinando uma pipa artesanal, quem sabe? Agora, não mais. Se corresse mais do que um passo, tropeçaria em alguém. As pipas deram lugar a essas novidades tecnológicas que ameaçavam de cima. A própria viagem até lá fora terrível. Porém, agora ele estava lá, cara a cara com o mar. Deixara o medo para trás, restando a esperança à frente, rumo ao mar. Ah, o mar. Quando menino, ele perdia-se em devaneios, imaginando quem habitaria as terras que havia do outro lado daquele mar. Poderia um dia cruzá-lo? Levaria um dia, uma semana, um mês? Que tipo de monstro se esconderia nas águas profundas?

Hoje se preocupava com a conquista de um pequeno pedaço de areia, apenas para ficar sentado olhando para o mar. Esqueceu a sede. Para arrumar algo para beber, deveria enfrentar aquela turba enorme, arriscando-se a perder o pequeno pedaço de areia que havia conquistado. A brisa marinha fê-lo esquecer tudo.

Chegar até aquela pequena duna fora uma grande empreitada. O homem sentia-se tão exausto que ainda nem pensara na volta para casa. Conquistar aquela simbólica colina, carregado de tralhas, exigira muito esforço, determinação e estratégia. Ele queria aproveitar o agora, esticando-o ao máximo. Que o futuro ficasse para o futuro. Onde foram parar aquelas pipas poéticas? Por que deram lugar àquelas engenhocas voadoras? Por que encheram o céu com explosões ensurdecedoras? Por fim, o pensamento em como sair dali começou a tomar força. O que aconteceria quando todos resolvessem voltar para casa ao mesmo tempo? Uma grande confusão, com certeza. Uns passariam sobre os outros. Por que ele não ficou em casa? O que diabos fazia em meio àquelas pessoas, muitas estrangeiras? A saudade de casa ficou mais forte. Como faria para sair dali?

A resposta veio do mar. Aquele homem embarcaria numa das centenas de pequenas e grandes embarcações que retiraram as tropas aliadas de Dunquerque, na costa francesa junto à Bélgica, no início de junho de 1940. Era o fim da fracassada Operação Dínamo, que resultou no cerco de 300 mil soldados aliados, na pequena área de 5 km junto ao mar.

Aquele homem deu-se por feliz, pois retornou para casa, na Inglaterra. Respondeu à convocação do exército britânico e foi involuntariamente para a guerra. Sessenta e sete anos, sete meses e 11 dias depois, Zé pensava na mesma coisa, sentado sobre o que restou de uma duna, cercado por meio milhão de pessoas que festejaram voluntariamente o Ano Novo na praia. Como faria para sair dali e retornar para casa? Definitivamente, a História nada lhe ensinou!


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