30.3.10

576 - Chão de brigadeiro

Fonte: Wikipedia
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Chão de brigadeiro

Paulo Heuser



A coisa se complicou. O aeroporto fechou novamente. Chove demais, e os atrasos contaminam toda a malha aérea. Pouco se pode ver pela janela, a água que escorre pela fuselagem não deixa. Os minutos passam, as portas estão fechadas, todos estão com aquela cara besta pré-decolagem, e nada. Não há condições, a pista está encharcada. O brilho dos relâmpagos não anima, mesmo na ausência de trovão audível. As comissárias tentam animar a turma e distribuem aperitivos mini para todos, ainda no chão. Mau sinal, tanta generosidade anuncia que a espera poderá ser longa. Um homem usando quipá abana a mulher grávida. Os minutos passam e compõem meia hora. Vem a boa nova, o comandante anuncia que a chuva amainou e, em breve, será possível decolar. Como para todo yang existe um yin, vem a má notícia: há fila para a decolagem, pois vários aviões ficaram retidos no solo. Antes que alguém se rebele, as comissárias distribuem farta ração de aperitivos mini. Todos mastigam satisfeitos. Quando misturados com a saliva, os aperitivos transformam-se numa curiosa massa para calafetar. Celulares desligados, e la nave va. Vai até o fim da fila para a decolagem. O avião é o oitavo e anda em passo de saída de formatura em Direito. Arrasta-se sobre o concreto molhado. O passageiro da 21A ronca. O homem do quipá abana a mulher. Os demais passageiros tentam engolir seus aperitivos mini. Quem voa com freqüência sabe, para descolá-los dos dentes, fazem-se gargarejos com refrigerante zero. Os minutos passam. O passageiro da 21A ronca. O comandante anuncia aquilo que todos temiam, menos o passageiro da 21A, que só teme a insônia: o aeroporto fecha novamente. A chuva volta com tudo, logo agora, que os outros sete se foram. Os minutos passam, e nada de nova ração de aperitivos mini. Não pode, todos devem ficar sentados e afivelados. O homem de quipá abana a mulher. Algo acontece, pois desta vez o comandante pigarreia antes de falar. Após 1h15 de espera em solo, com os motores acionados, será necessário reabastecimento. E la nave ritorna. Pelo menos, durante o reabastecimento, haverá nova ração extra de aperitivos mini e refrigerante zero. Serve de consolo. De onde vêm todos esses aperitivos? O passageiro da 21A ronca. Em meio à volta, o grito: - Comissário! O homem de quipá acode a mulher grávida que enche o saco para enjôo. O ocupante da 20C comenta: - Se ela enjoa no chão, como será no ar? O passageiro da 21A acorda com o solavanco que indica a parada no finger, confere o relógio, espreguiça-se e declara: - Chegamos, que vôo agradável...



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19.3.10

575 - Mistérios da mente

Fonte: Wikipedia
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Mistérios da mente


Paulo Heuser


Ulli adora os pastéis de joelho de porco. Sua predileção recai sobre os Schweinshaxepasteten da Áustria, mais crocantes, quando comparados aos Eisbeinpasteten de Munique. O primeiro contato dele com essa iguaria ocorreu em Kirchdorf an der Krems, Áustria, na Schweinshaxepasteten-Haus GmbH, minúsculo restaurante localizado no Simon Redtenbacher Platz halb 4. Os pastéis de lá são inigualáveis, recheados generosamente com um joelho de porco assado e meio repolho roxo. Ulli é o apelido do Klaus-Ulrich Klosettschüsselfüllung, filho de um vendedor de medidores de pH para chucrute, que imigrou para o interior de Linha Nova Áustria do Sul, RS. O pequeno Ulli desde cedo mostrou uma queda para as ciências químicas, como o pai. Ainda no jardim de infância, desenvolveu sua variante para o clássico Abfülltenfurtzen (peido engarrafado) e acrescentou traços de gás de repolho ao gás sulfídrico - H2S. A genialidade precoce do menino não passou despercebida, e ele foi enviado à Universidade da Basiléia, Suíça, onde se graduou em Química e doutorou-se em Neuroquímica, orientado pelo célebre prof. Albert Hoffman, aquele que fez a juventude dos anos 60 e 70 enxergar coisas coloridas onde nada havia. Ulli não seguiu os estudos psicodélicos do mestre e dedicou-se a desvendar os misteriosos mecanismos da memória. Embrenhou-se nas ligações químicas efetuadas pelos neurônios responsáveis pela codificação, pelo armazenamento e pela recuperação das sensações e das ideias.
Foi num sábado, lá pelo meio-dia. Ulli deu um pulo até Vale do Sol. Lá, seguindo pela pequena estrada que cruza próximo à Pousada Formigão, há uma casa onde mora Oma Elfriede, uma velha senhora austríaca, que domina a arte da confecção dos Schweinshaxepasteten. Ele não estava sozinho, havia turistas da Capital, que, de alguma forma, haviam chegado até lá. Oma Elfriede complementa a renda familiar através da especialidade culinária que é transmitida de mãe para filha, os Gerosteschweinshaxepasteten, versão de forno dos fritos, os Gebrateneschweinshaxepasteten.
As moscas já empestavam o alpendre sob o qual os comensais se sentavam, à longa mesa de madeira rústica. A conversa girava em torno das Olimpíadas de Inverno de Vancouver. Comentavam da loucura de alguém que se jogara perau abaixo, de cabeça, em um minúsculo trenó. Um sujeito calvo, que matava moscas com palmadas certeiras, perguntou:
- Vancouver fica na Alemanha?
- Não, se ficasse na Alemanha chamar-se-ia Von Kuwer... – respondeu-lhe alguém.
- Ah, percebi, fica na Holanda!
Essa conversa foi o gatilho que disparou a tempestade no cérebro do Ulli. Ele finalmente pode desvendar os mistérios neuroquímicos da memória. Pena que ele não se lembra mais disso.



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