29.9.06

A Urna

A Urna

Por Paulo Heuser

Acordo após um longo sono. Por que sempre acordo atrás de um biombo? Vai começar tudo novamente. Lá vem aquela fila de gente, para me prestigiar, os puxa-sacos sazonais. Hoje sou a estrela do show. Até os poderosos abrirão sua agenda para me ver. Já adivinho o que cada um da fila vai fazer, apenas olhando para a cara da criatura.

Os idosos aparecem mais cedo. Os de meia idade, um pouco antes do almoço, ou logo após. Os mais novos vêm à tarde, depois das quatro horas.

Este eu já atendi várias vezes, o conheço desde que me conheço. Passou dos 70, calça de tergal, camisa social fechada até o colarinho, casaco de malha com decote em V e botões. Sapato marrom e toda a roupa em tons neutros. Conservador na cabeça. Na mosca!

Não lembro bem deste que aparece agora. Parecia ter mais cabelos na última vez que apareceu por aqui. A barriga também aumentou. Abrigo vermelho de marca, tênis de muita marca, imaculados, cheiro forte de loção, celular na orelha, aí está um clássico meia-idade de aparência esportiva. Todo o quadro denuncia um conservador enrustido, com traços de neojovialidade. Ahá, bingo!

Nossa, a menina aí é de tirar o fôlego! Bolsa de grife chique da mamãe, moletom amarrado na cintura, calça não-sei-o-nome-daquilo, tênis que nunca serão usados para correr, celular com mp4, sons esquisofônicos e cara limpa. Não erro esta de jeito nenhum. Patys (com quantos tês se escreve?) seguem o papai. Conservadoríssima. Eu manjo.

Esta agora está um pouco mais difícil. Jovem, mas não muito, bem vestida, sem ser clássica, calçados pontiagudos, daqueles para matar piolhos nos ângulos internos de um triângulo escaleno, enormes brincos dourados de argola, bolsa pequena, todo conjunto bem planejado, com um pequeno toque de ousadia nos detalhes. O olhar e a postura denunciam segurança. Temos aqui uma tendência de centro esquerda moderadamente festiva. Certo novamente!

Calça jeans, alpargatas, cabelo longo, camiseta básica com a estampa de um sujeito de bigodinho, nem preciso olhar mais. Libelu – Liberdade e Luta. Caçapa!

Há uma senhora idosa que sempre foi a primeira na fila, antes mesmo de haver uma fila. Blusa com rendas, bolsinha preta apertada contra o peito, tudo quase vitoriano. Hoje se atrasou. Será que foi primeiro à missa? Ultraconservadora. Ultradireita, portanto.

- Mas, minha senhora?! O que foi que a senhora apertou aí?! Está errado!!

- Não confirme!! Não, não é o que a senhora deveria....

- Tarde demais!

- Certo, o voto é secreto, mas será que alguém da sua família imagina o que a senhora digitou aí?

Ainda bem que não há mais voto na cédula!

E-mail: prheuser@gmail.com

28.9.06

Belugas e Moscas

Das Crônicas Raimundianas VIII – Belugas e Moscas

Por Paulo Heuser

Olhando pela janela do escritório, Raimundo viu os coloridinhos verificando os tíquetes de estacionamento nos carros parados na rua. Eram todos terceirizados, da empresa EstuporPark. Terceirizaram o meio-fio, coisa que não deixava de ser surpreendente. Se contassem essa para os vizinhos na empoeirada rua que Raimundo morara na infância, estourariam de tanto rir. Coisa de louco. Estranho mundo este.

Raimundo deixou o prédio do escritório e dirigiu-se para casa. No sinal da Av. Pimenteiro, com a Pintinho Bocadessaúva, foi cercado por três vendedores de frutas, dois agentes de um plano odontológico, que se propunham a fazer uma revisão gratuita até o sinal abrir, quatro corretores de imóveis, um agente de segurança privada, que queria cobrar 10 reais para protegê-lo contra assaltos, até o sinal abrir, e, finalmente, um ladrão que queria assaltá-lo no instante que o sinal abrisse. Onze pessoas, sem contar as sete criancinhas agenciadas pelo décimo segundo provedor de serviços, este sentado à sombra de uma árvore próxima. Doze adultos e sete crianças. Para atacar somente um carro. Era desperdício humano em demasia.

Nove sinais, 108 adultos e 63 criancinhas depois, Raimundo conseguiu entrar na sua rua, cuidando para não cair nem no primeiro buraco, aquele onde enfiaram uma cadeira, nem no segundo, aberto em algum mês do ano passado, onde alguém enfiou um vaso sanitário, com tampa e tudo. Os papeleiros ignoravam aquele dispositivo, talvez em respeito à obra de arte resultante, principalmente quando a tampa ficava levantada.

Raimundo convocara uma reunião do Conselho da Cotra para a manhã seguinte. Lá receberam o relato da irmã do Zé Tongo. Ela voltara do CotraGulag, o spa temático da Ilha Solovetskiye, região de Arkhangelsk no Mar Branco, norte da Rússia. Haviam escolhido aquele local por diversas razões. Havia como ocupá-lo imediatamente, pois lá permaneciam as instalações do famigerado Arquipélago Gulag, os ITL - Ispravitelno Trudovye Lagerya – campos de trabalho corretivo. O que a OGPU – Polícia Secreta bolchevique – queria corrigir? Czaristas em geral. A correção se dava através do trabalho forçado. Os “corrigidos” cavaram o Canal do Mar Branco (1928-1932), ligando Leningrado ao Mar Branco.

Durante a II Grande Guerra, Stalin manteve ali todo mundo que necessitava ser “reeducado”. Mais ou menos dois milhões de pessoas foram “corrigidas”. No pós-guerra, o chefe da polícia de Stalin, Laurenti Béria, mandou para lá a maior parte dos sabotadores do regime, assim classificados os cientistas e pesquisadores. O mais notório foi Alexander Soljenitsin, indicado ao Nobel de 1970 e autor de vários livros que denunciavam os horrores vividos sob o regime de Josef Salin.

Amenidades à parte, as antigas instalações físicas ainda estavam lá. Outra razão para a escolha daquelas ilhas foi o impacto psicológico. Altos executivos necessitam altos desafios e a sobrevivência no CotraGulag seria um alto desafio, com certeza. Nas visões de algumas empresas, de Béria e de Adolf Eichmann (1906-1962), oficial das SS nazistas, o trabalho liberta. Portanto, forçando-os ao trabalho, libertando-os estarão (dito pelo Mestre Yoda). A frase Arbeit Macht Frei - o trabalho liberta -, está até hoje sobre o portão de entrada no campo de Auschwitz I. Novamente o Gulag veria a chegada de uma elite, desta vez voluntariamente. Ninguém era forçado a “reeducar-se” no CotraGulag. Mas, uma vez lá dentro, trabalhariam de acordo com as regras. Bem como nas empresas, uma vez lá dentro, deixariam a pele de cordeiro do lado de fora.

A viagem até o arquipélago era por si só uma história a ser contada aos netos. O vôo de Moscou até Arkhangelsk, a bordo dos Uruboflot AK47, ficava gravado na memória de todos. O vôo seguinte, de Arkhangelsk até Kreml, na ilha maior, Solovetskiye Ostrova, era realizado com os passageiros sedados (e sentados), por questões de segurança. Nos primeiros vôos regulares alguns passageiros tentaram seqüestrar o avião para voltar. O sedativo aplacava o pavor do vôo. Há executivos que têm medo de voar. O Graliov KY69 causava verdadeiro pavor. A tripulação composta de dois pilotos, dois engenheiros de bordo, oito mecânicos, oito cossacos, um padre ortodoxo e as seis mais experientes comissárias de bordo aposentadas da Aeroflot, entornava algumas garrafas de vodka enquanto fazia o Plano de Vôo. Este consistia em olhar fixamente para a rota, o horizonte, no solo e não na carta aérea. As cartas de nada adiantavam, sem uma bússola funcionando. A que não estava quebrada, girava lentamente. E constantemente, mesmo quando voando em linha reta.

A irmã do Zé treinou formandos em Educação Física, Engenharia de Minas e Artes Cênicas encontrados pela Confraria. Quando formados, foram imediatamente para a região de Arkhangelsk, recebendo treinamento prático orientado pela irmã do Zé. Deixaram para trás as roupas colantes que Raimundo tanto apreciava, nas moças, bem entendido. Vestiram grossos abrigos e enfrentaram aquele vento cortante da primavera. Desistiram de abrir o spa no inverno. Os executivos norte-americanos e japoneses não sobreviviam. Perdiam o cliente e o pagamento. Mas, como o CotraGulag era um negócio, e não uma fonte de paz eterna, resolveram abrir somente na primavera, fechando no início do outono.

O tom de pele bronzeada obtido pela irmã do Zé no CotraVida se fora, substituído pelo branco do semi-ártico, literalmente. Mesmo vestindo sete camadas de grossas roupas, a irmã do Zé Tongo e as funcionárias, apelidadas de gulaguetes, foram assediadas sexualmente pelos clientes do CotraGulag. Também pudera, havia apenas homens entre os clientes, ao contrário do CotraVida, recheado com belas mulheres. A irmã do Zé tinha uma teoria própria sobre a ausência de mulheres entre os clientes nipo-americanos. Não que não houvesse altas executivas nos EUA. Elas apenas não seriam tão burras quanto os homens, para se meter naquela imensidão gelada. Além do mais, as unhas caíam com o congelamento dos dedos. Não sabia o que era pior, pagar por aquilo ou pagar e, ainda por cima, gostar daquilo.

A atividade mais excitante do programa era o plantio e a colheita de batatas na tundra. Era realmente comovente ver aquele pessoal tentando abrir buracos no solo congelado, orientado pelos engenheiros de minas. Um altíssimo executivo de uma mineradora americana tentou comprar dinamite no mercado negro. Impedido, chorava, feito criança, enquanto batia a picareta no gelo.

A frustração devido ao cancelamento da atividade de juntar folhas de outono, pela ausência de folhas, foi compensada pela criatividade da irmã do Zé, inventando um esporte apelidado iceass, algo como bunda congelada. Era singelo, mas supria a necessidade de competição entre os altos executivos congelados. Bastava correr o máximo possível desde o topo da maior elevação do local – com três metros de altitude –, descendo a ladeira de bunda. As marcas foram melhorando ao longo do verão, devido ao condicionamento físico decorrente da colheita de batatas. Ou melhor, do regime de mineração das batatas. O pessoal acordava cedo, comia a ração de batatas com café, feito de cascas de batatas torradas, e já corria para a elevação, chamada O Pico. A pesca era livre, apenas um pouco dificultada pela falta de barcos, que poderiam ser utilizados como veículos de fuga. O pessoal teve de improvisar um pouco com as iscas, pois os peixes refugavam as batatas.

Emocionante mesmo era a mineração da batata após o verão. Colheita não era o termo correto, pois não se colhe batatas utilizando picaretas. Todos iam às lágrimas assistindo àquela cena. Tentaram fotografá-la, mas não foi possível. As baterias das câmeras digitais dos japoneses arriaram. Um saudosista tentou utilizar uma câmera reflex que teve o prisma emperrado pelo gelo. A solução para registrar o evento foi apelar para um executivo japonês que desenhava muito bem. O quadro ficou pendurado numa estalagtite do alojamento. Os clientes sentiam-se úteis, pois as batatas colhidas nesta temporada serviriam de alimento para a próxima turma, cuja subsistência dependeria deles.

O que animava mesmo os garimpeiros de batatas era o Sol. Aquele magnífico sol de verão, raso sobre o horizonte, mas sempre presente. E que horizonte, nada para perturbá-lo, nem uma árvore, nada. O Sol não esquentava muito o corpo, mas a alma ficava aquecida e iluminada. A irmã do Zé Tongo distribuía folhetos de propaganda da CotraVida aos ricos executivos infelizes. Todos, sem exceção, reservavam uma temporada.

A vodka era de longe a bebida preferida no CotraGulag. Além de causar amnésia, era a única que não congelava na temperatura ambiente. A irmã do Zé sabia que não conseguiria controlar aquela turba sem a vodka, que estava abafando eventuais tentativas de motim. Ela sabia que não poderiam continuar servindo apenas as batatas da temporada anterior. Após uma pesquisa no mercado mais próximo - 500 km em direção ao sudoeste, no continente - optaram pela única opção disponível em estoque: repolho.

O repolho era muito abundante na Rússia. Havia até uma festa comemorativa anual, com a feira temática, a Fenapolho, onde eram apresentados mais de 30 pratos feitos exclusivamente de repolhos. O cheiro dominante na festa era insuportável para os não iniciados. Os clientes adoraram a novidade no cardápio. Os japoneses prepararam sushis de repolho com peixe. Para os vegetarianos, sushi de repolho recheado com batatas.

Um grupo de executivos, que se aventurou até o norte da ilha, conheceu dois pescadores envergando esfarrapados uniformes russos. Um japonês que falava russo serviu como intérprete. Descobriram que os dois foram operadores de um silo desativado de mísseis nucleares, instalado na ilha vizinha, Tserkov Anzerskaya. Viviam da pesca e de um estoque monstruoso de enlatados, ignorado pelos soldados que desativaram o silo. Viviam lá dentro.

Quando os russos souberam que havia vodka na CotraGulag, imploraram de joelhos por uma garrafa. Um norte-americano sugeriu a troca de 100 latas de alimentos por cada garrafa de vodka. Os pescadores russos toparam na hora e foram buscar a preciosa carga. Dois dias depois se encontraram, clientes e pescadores, para o escambo. Quinhentas latas de comida por cinco garrafas de vodka. Após um brinde, cada grupo seguiu seu caminho.

O grupo de clientes levou cinco dias para arrastar a carga até o spa. Saiam cedo pela manhã e retornavam à noite. Levavam uma ração de peixe, repolho e batatas para manter as forças. Somente abririam as primeiras latas durante uma festa que haviam planejado. O que conteriam as misteriosas latas? Um executivo japonês temia que fosse lixo radioativo. Não deveria ser, pois além de não haver caveiras ou outros símbolos de perigo, o apagado rótulo deixava ver uma gravura do sorridente camarada Stalin. Os caracteres em cirílico estavam muito apagados.

Na noite clara do quinto dia, exaustos, mas realizados, os heróicos clientes sentaram-se ao redor do fogo, cada um com sua lata. Estas vinham com aquelas borboletas que dispensavam o uso de abridores. Como que movidos por um ritual, engataram suas borboletas e giraram-nas com firmeza, todas ao mesmo tempo. Após um silvo agudo, saiu um jato de líquido de cada lata, seguido do pior cheiro que já haviam ousado sonhar. Até as belugas fugiram da ilha naquela noite clara de verão. A fuga dos mamíferos foi seguida pela invasão das moscas. Ninguém imaginava moscas naquele frio. Ninguém imaginara também que dois loucos russos guardassem latas de chucrute vencido há mais de 40 anos.

Como o japonês teria adivinhado? Acabaram enterrando o restante das latas no depósito de lixo nuclear. Agora o Stalin dos rótulos das latas ostentava um sorriso azulado. Os mais exaltados queriam vingar-se dos pescadores. Acabaram deixando por isto mesmo. Atribuíram o ato à loucura decorrente de viver naquele lugar. Após se livrarem do lixo com risco biológico, jantaram em silêncio a ração de batatas. Batatas com repolho fresco não eram tão ruins assim.

Os finlandeses não entenderam aquela repentina invasão de belugas e o sumiço das moscas.

E-mail: prheuser@gmail.com

27.9.06

Está Absolutamente Ceerto!

Está Absolutamente Ceerto!

Por Paulo Heuser

Lembrei do J Silvestre (1922-2000), jornalista que manteve no ar o programa de tv O Céu É o Limite durante quase 30 anos. Veio à lembrança enquanto assistia ao debate entre os candidatos a Governador do Estado. Excesso de regramento imposto aos debatentes, o sorteio das perguntas e o cronômetro, tudo fazia lembrar de um quiz show - programa de perguntas e respostas.

J Silvestre lia as perguntas pré-estabelecidas e esperava uma resposta perfeitamente determinada. Em um processo determinístico há lugar apenas para respostas certas ou erradas. No quiz show eleitoral as perguntas são também pré-determinadas. As respostas, no entanto, são de natureza estocástica – variam conforme o tempo. Há quem defenda que se trata de processo um markoviano, onde os estados anteriores são irrelevantes para a determinação dos futuros, algo como uma amnésia estatística – eleitoral, no caso.

Quem joga o quiz show eleitoral corre o risco de perder todo o grande prêmio por apenas uma resposta errada. Nem precisa estar errada, basta que seja diferente daquilo que o público espera e deseja ouvir. A qualidade da expressão da resposta também conta. Expressões de humildade, excesso ou falta de soberba, acomodação ou indignação, o punho cerrado na hora do desafio, tudo conta ou tira pontos. Ali não é o apresentador nem a “produção” quem julga o acerto da resposta. É a Grande Pesquisa, aquela que ocorrerá no dia da eleição.

A escolha dos candidatos ocorre mais ou menos da mesma forma. São escolhidos pela “produção”. Podemos torcer por um deles ou não torcer. Por todos não faz sentido. A “produção” deve escolhê-los pelo impacto da imagem perante os consumidores, digo, eleitores. Marketing e estatística caminham de mãos dadas. Se a imagem do candidato não é lá muito fotogênica este deve pelo menos se impor pela palavra.

De tempos em tempos se faz uma aferição de como andam os jogadores, através de uma pesquisa de intenção de voto. Como apresentam resultados díspares, conforme o agente da pesquisa, é recomendável a obtenção de uma média das pesquisas.

O Seu Antenor não está nem aí para debates e pesquisas. Fez da rua o seu lar. Ali não há tv e o jornal sempre é velho. Teme apenas que uma vassoura nova possa varrê-lo dali. Sabe, no entanto, que será temporário. Voltará com certeza.

Está absolutamente ceerto!

E-mail: prheuser@gmail.com

25.9.06

A Missão de Alex

A Missão de Alex

Por Paulo Heuser

Sempre fiquei intrigado com os motivos que levam alguém a assumir a profissão de demolidor de bombas. Não consigo me imaginar agachado ao lado de um pacote contendo explosivos, tentando desarmar o dispositivo de detonação. Vestindo um traje de proteção, encharcados de suor, o coração disparando, a tremedeira mal controlada, devo escolher o fio correto para o corte. Sempre é o vermelho. Só que este terrorista em especial era daltônico e colocou apenas fios verdes. Todos os fios em tons de verde. Não é uma profissão, é uma missão.

Outras profissões também se caracterizam pelo alto grau de periculosidade, como as de policial que atua nas ruas, bombeiro e atendente da saúde pública. Acordam, tomam o café, por vezes com a família, e saem em direção ao trabalho sem ter a mínima idéia do que enfrentarão durante o dia e se haverão outros cafés da manhã. Certezas, apenas de que têm uma missão a cumprir e do baixo salário, ou soldo. Não são movidos exatamente pelo dinheiro. O que os moverá então? Paixão pelo perigo? Extremo altruísmo?

Alguns trabalhos perigosos não passam despercebidos. É o caso do trabalho do Alex. Este não é o seu nome verdadeiro. Necessita manter-se incógnito. Alex também tem certeza da baixa remuneração e o extremo perigo que corre. Ao contrário do que ocorre em outros tipos de trabalho, Alex recebe uma ou mais missões por dia. Não há missões de longo prazo e todas são cruciais e decisivas. Se não cumpri-las, nada perceberá. Pessoas dependem dele.

Alex fará tudo ao seu alcance, e até fora dele, para cumprir cada missão, arriscando a própria vida e a de outros, caso necessário. Afinal, o que importa é a missão. Não há vazamento prévio do teor de cada missão. Quando chegar a hora, receberá um papel com a descrição do próximo desafio. Também não há como escolher, é pegar ou pegar.

No trânsito, Alex gostaria de ligar a sirene, mas não lhe permitem. Correria menos risco quando é obrigado a cumprir missões impossíveis. Ziguezague entre os outros veículos, em alta velocidade, cruzar sinais vermelhos, trafegar sobre calçadas e na contra-mão, tudo faz parte de uma missão. E o importante é cumprir a missão.

Curiosamente, Alex gosta de assistir aos seriados sobre emergências médicas. Talvez tenham influenciado na escolha da profissão. A tensão e o perigo sempre presentes permitem traçar um paralelo entre o seriado e o trabalho. Na tv, uma ambulância cruzava as ruas de NY em alta velocidade, desviando dos carros, para entregar um paciente na emergência do alguma-coisa-Memorial.

Até o horário do seriado, Alex contabilizava 21 missões cumpridas e ainda estava vivo. Já entregara 18 pizzas e três calzones.

E-mail: prheuser@gmail.com

22.9.06

Perigos Domésticos

Perigos Domésticos

Por Paulo Heuser

Um estudo coordenado por Rodolfo de Castro Ribas Jr, pesquisador da UFRJ, publicado na revista Social Science & Medicine, aponta que três em cada cinco mães sabem identificar os perigos dentro de casa, mas apenas uma em quatro é capaz de apontar soluções. Quem tem filhos sabe que os perigos podem estar escondidos nas coisas aparentemente mais inocentes.

Veja o exemplo de uma laranja. Tem vitamina C, o suco tem ótimo sabor e tudo indica que só faz bem à saúde. Agora vamos adicionar uma menininha bastante ativa. Ela recebe a laranja com a tampa retirada, para chupá-la. Inquieta, correndo para lá e para cá, consegue o feito de inspirar uma semente da laranja, que fica entalada na narina. Tentativas domésticas de retirá-la de nada adiantaram. Lá vamos nós ao pronto-socorro, novamente. O plantonista a reconhece, de outros eventos, e cumprimenta alegremente: - O que manda hoje? Ela ainda usava a tala no braço, colocada após o tombo da árvore na creche. Mas já retirara os pontos do queixo! Até hoje recebemos cartões de Natal daquele plantonista.

Ter filhos é levar sustos. Maiores ou menores, eles sempre vêm. Quem projetou as crianças deveria ter colocado uma proteção no queixo. Não resiste ao mínimo tombo e sempre acaba remendado. Por que os joelhos já não vêm de fábrica com joelheiras?

Hoje até que as coisas estão um pouco melhores. Os interruptores residuais (DR) evitam sérios acidentes com dedinhos em tomadas. As balas mudaram o formato – principalmente aquela redondinha - e as tampas das esferográficas vêm com um orifício que evita a asfixia das crianças que inadvertidamente as engolem. Dos adultos também. De qualquer forma, acredito que os futuros pais deveriam passar por um curso de maternidade e paternidade defensivas, assim como os motoristas passam pelo de direção defensiva.

Quem disse que Deus protege os bêbados e as crianças só estava certo em parte, pois não previu que crianças pudessem estar em carros dirigidos ou atingidos por motoristas bêbados. Esta afirmação tem alguma validade nos acidentes domésticos. Muitas vezes as crianças saem ilesas de acidentes que nos deixariam numa ala de politraumatizados, como aqueles em que puxam um paninho bordado que estava sob o televisor que, por sua vez, estava na estante, que estava cheia de cristais. Sem mencionar aquele vaso que foi colocado no topo para resguardá-lo do anjinho ou da anjinha. Quando cessa o ruído de coisas desabando e quebrando, surge uma figura em meio aos escombros, rindo ou chorando.

Tenho sincera e real admiração pelas professoras e professores que cuidam das pestinhas, nas creches e pré-escolas. Certamente têm nervos de aço. Não há instrução que permita antever todas situações de perigo que possam surgir.

Falando em televisor, ali está um dos maiores perigos domésticos. Imagine o que passará naquela cabecinha em formação se chegar a assistir aos noticiários e aos desenhos animados onde o maior diálogo ouvido é: - eu vou te destruir! – e eu vou te aniquilar!

Tenha sempre à mão uma gravação do programa do Chaves. Na pior das hipóteses, dará um peteleco acidental no Seu Barriga.

E-mail: prheuser@gmail.com

19.9.06

O Que Você Perdeu

O Que Você Perdeu

Por Paulo Heuser

Você que tem menos de 30, talvez 40, perdeu algo. Certo, quase 50. Se ninguém lhe disser, nunca saberá o quê. Vou ajudá-lo. Se você mora em Porto Alegre, eis meu ranking das suas perdas, apenas algumas:

1) Subir toda Dr. Timóteo a pé, na chuva, e beijar a nova namorada na esquina da 24 de Outubro;

2) Antes disto, comer uma omelete a Joinvile no Los Troncos, na Benjamin Constant;

3) Dar uma esticada e dançar no Zimbalú, do Jobim, nos altos da Protásio;

4) Comer pizza na Milano da Protásio;

5) Tomar um chope no Sheherazade. Ok, com pizza;

6) Sobrou uma grana? Um drinque no 106 e jantar no Floresta Negra, recepcionado pelo cavernoso “Boa noite jovens!” do Fredolino;

7) Crepe, Suzete ou não, no Torta de Panela da curva do Parcão, enquanto os rapazes descem a Mostardeiro com as bundas coladas no vidro do carro;

8) O Dos Deuses, no Ribs da 24, jogando conversa fora;

9) Assistir às corridas no Autódromo da Conceição (o túnel);

10) Ouvir a Continental e a Pampa (ambas AM) “1120, mensagem positiva...”;

11) Esperar uma hora e meia na fila do Walter, após o cinema;

12) Chope e bolinho de bacalhau no Pedrinho;

13) Assistir ao Terremoto, no Baltimore, temendo que o teto do cinema caia sobre a sua cabeça;

14) Colchão alemão no Prinz, com aquela mostarda maldita (isto você ainda pode fazer);

15) Durante o dia, dar um doce da Thompson, na Independência, para a menina;

16) Fazer tudo novamente, começando pelo beijo na nova, e eterna, namorada, na esquina da Dr. Timóteo com a 24 de Outubro. Na chuva, é claro. À meia-noite.

Ah, ia esquecendo, tudo isto sem ser assaltado.

“....este é Omar K Diabo, o homem que não dá prejuízo, já vem jantado....”. Coisas de Cascalho Time.

Lamento informá-lo, se você tem menos do que quase 50, é um provável infeliz. E não sabia. Se não tivesse lhe dito, nunca saberia. E nunca, mas nunca mesmo, alguém conseguirá lhe explicar o Fredolino.

Quem viveu viu, quem não viveu, não verá!

E-mail: prheuser@gmail.com

Nem Freud Explica

Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 20/09/2006:
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=61565&intIdEdicao=959



Nem Freud Explica


Por Paulo Heuser

Realmente, há coisas que nem Freud explica. Veja só o caso dos mamíferos que marcam território. Os machos de boa parte dos mamíferos têm o hábito de urinar em tudo que aparece pela frente para marcar território.

Muitos adotam cães como mascotes para descobrir que toda a casa acabará marcada. O novo sofá de cetim branco será a iguaria do dia da inauguração. O mesmo vale para o novo tapete persa. Melhor não trocar os lençóis.

Nas noites de sexta-feira e sábado os machos humanos adquirem o mesmo hábito, como bem pode ser observado por aqueles que transitam tarde pela rua. Tal qual os cães, os machos humanos preferem os postes como local para marcação, talvez por oferecerem suporte estrutural durante a operação. Os humanos só não costumam cheirar o poste antes do procedimento, hábito cultivado pelos caninos.

Os cães são extremamente territoriais, assim como seus amigos humanos. Dentro do seu quintal são os reis do pedaço. Quando soltos, no entanto, os cães de quintal sentem-se meio perdidos e não têm muita noção da sua competitividade perante eventuais adversários. Acabam provocando cenas divertidas nos enfrentamentos quando, após o estabelecimento de quem é caça e quem é caçador, a situação se inverte. Após louca correria num sentido, invertem a situação, o antes perseguido passa a ser o perseguidor.

Já assisti à cena da inversão da relação agressor e vítima entre humanos. Um ladrão de carteiras, pego em flagrante, corria desesperado, fugindo da vítima. Sentindo-se acuado, parou e passou a correr em direção à vítima enquanto gritava “Pega ladrão!” Em quem acreditar nessa hora? O clamor popular pede justiça, qualquer tipo, imediata. Pelo sim, pelo não, acabou todo mundo envolvido na delegacia. Não sei como terminou, mas acredito que as coisas devem ter se esclarecido, já que houve testemunhas.

As dúvidas na relação vítima e agressor vêm às manchetes em novo escândalo envolvendo nossos adversários eleitorais. Perseguem-se, feito marcadores de território desorientados, alternando-se nas posições de agressor e vítima. Se não bastasse o escândalo da compra fraudulenta das ambulâncias, agora surge algum tipo de ilegalidade na denúncia do escândalo anterior.

Os protagonistas alternam-se na posição de vítimas, quando estas somos nós! Em quem acreditar? É isto o que os jovens merecem na inauguração do Título Eleitoral?

Esta, nem o Freud explica.

E-mail: prheuser@gmail.com

18.9.06

O Lápis

O Lápis

Por Paulo Heuser

Esqueci das minhas canetas em casa. Por sorte consegui um lápis emprestado. Por um tempo acreditei que os lápis haviam desaparecido. Não ficaram boas recordações deles, da infância. Os lápis eram extremamente frágeis. Um leve tombo os transformava em canudos de madeira recheados com guisado de grafite. Aí se entrava numa rotina de aponta-e-cai-a-ponta. Eram caros também. Não dava para comprar outro sem uma boa justificativa. Os lápis também não resistiam muito bem aos duelos. Se os oponentes estivessem com roupas muito resistentes, as pontas quebravam.

Além de um bom lápis, era importante ter um bom apontador. Na falta de depósitos para as raspas dos lápis apontados, os bolsos, pastas, o lanche dos colegas, qualquer lugar, que não o lixo da classe, servia. Os maníacos por pontas ficavam tentando apontar mais o lápis. Língua para fora pelo canto da boca, olhar estrábico convergente e grande concentração eram os elementos necessários à confecção de uma ponta afiadíssima, que ia para o beleléu na primeira tentativa de escrever. Foi o início da nanotecnologia - nanotubos de grafite.

Lápis bom é lápis mordido. Morder o lápis traz diversos benefícios. Relaxa, marca território – ninguém gosta de lápis cheio de saliva de outrem – e evita que ele role com muita facilidade, caindo da mesa. Os lápis com borracha na ponta foram uma evolução e um retrocesso, ao mesmo tempo. Se por um lado dispensaram a borracha, por outro lado impediram a manutenção de duas pontas no mesmo lápis. Com uma ou duas pontas, nunca é recomendável carregá-los nos bolsos. Se não furarem suas calças, furarão sua perna, se tiver a sorte de não furar outras coisas.

Bons lápis tinham grafite com bom gosto. Não sei por que, havia quem molhasse a ponta do lápis na boca, a cada uso. Acabavam com os lábios e a ponta da língua cinzas. Ainda bem melhor do que o estado da boca de quem manteve o hábito com as primeiras canetas. Na segunda ou terceira séries se ganhava a primeira caneta-tinteiro, que só podia ser usada na aula de caligrafia. Não dava para errar. Essas canetas só traziam uma certeza. Algo ou alguém sairia borrado. Borrões nas calças, na camisa, na pasta, em qualquer lugar. Talvez por isso o nome da tinta era “azul real lavável”.

Desgraça mesmo foi trazida pelas primeiras esferográficas. Qualquer variação de temperatura provocava o vazamento da tinta. Tinta esta não lavável. Quando não vazavam, borravam o papel, dando aquele acabamento de corrida de galináceos que os mestres tanto apreciavam. As roupas manchadas iam direto para o lixo ou eram tingidas de azul-marinho para combinar com a mancha.

Outro dia vi camelôs vendendo lápis flexíveis. Dá para dar um nó neles e continuam funcionando. Que gosto terá aquele grafite?

Após uma época em que todo mundo que trabalhava com informática tinha de usar lapiseiras 0,5 mm, mesmo que não soubessem para que, fiquei um bom tempo afastado dos lápis e lapiseiras. Adotei as canetas esferográficas baratinhas. Até que voltei aos bancos escolares. Durante a primeira prova de uma disciplina de Física, a professora parou ao meu lado, observou a cena durante algum tempo, e comentou:

- não sei como era no teu tempo, mas hoje em dia ninguém preenche uma prova de Física à caneta!

E-mail: prheuser@gmail.com

A Confraria

Das Crônicas Raimundianas VI
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A Confraria

Por Paulo Heuser

Raimundo embarcou em Irkutsk, na Sibéria, no retorno a nossa querida Terra Futuris, a única com passado e futuro, mas sem presente. Por algum estranho motivo, Terra Futuris avança feito janela deslizante em direção ao amanhã sem deixar vislumbrar o hoje. Amanhã será ontem, sem ter sido hoje. Não podia deixar de traçar um paralelo com o filme Fenda no Tempo (The Langoliers, 1995), baseado numa obra de Stephen King, exibido a bordo. Relatava o drama de 10 passageiros que descobriram estar sozinhos no avião, e no mundo. Estavam vivendo fora do tempo, mas próximo dele. Coisa de mau gosto para se passar a bordo.

Após assinar finalmente o contrato para construção do CotraGulag – spa temático nos moldes do bem sucedido CotraVida, sentia-se realmente cansado.

Desta vez Raimundo prevenira-se contra filmes de calamidades aéreas, comprando um livro na banca do aeroporto. Quase todos os livros expostos estavam escritos em russo, no alfabeto cirílico. Quando reclamou à atendente da livraria, esta respondeu que também havia obras em udihe, tungúsico e buriata, tudo em cirílico, naturalmente. Como Raimundo não queria saber com quantos erres virados se faz um caiaque, implorou por alguma coisa em inglês, pelo menos. Até algo em alemão, havendo figuras, seria aceitável.

Havia somente dois livros em inglês. Um era uma biografia do francês Émile Durkheim (1858-1917), um dos pais da Sociologia moderna. Não era exatamente o que Raimundo procurava, preferia algo de John Le Carre para ler no avião. Mas ainda era melhor do que a outra opção em inglês, o Manual Sanitário Democrático Para Construção de Cabungos Revolucionários (1938), prefaciado pelo Camarada Stalin.

Raimundo afundou na confortável poltrona de pêlo de urso do tri-reator Uruboflot AK47. Confortável até que era, deveriam apenas curtir o pêlo um pouco mais. Enquanto esperava degelarem o avião, observou o aviso “É permitido fumar apenas charutos cubanos”. Logo abaixo havia outro: “Os transgressores serão expulsos imediatamente da aeronave”. Ficou imaginando o que aconteceria se acendesse um cigarro com o avião em altitude de cruzeiro, a três mil metros – a pressurização da cabine do Uruboflot AK47 não era exatamente confiável, razão da altitude de cruzeiro diferenciada. E da farta distribuição de mantas. A tripulação espalhou baldes com carvão em brasa pelos corredores, para tentar aquecer um pouco a cabine.

À medida que o livro ia sendo devorado, Raimundo começou a interessar-se cada vez mais. Quase recusou a refeição servida a bordo – batatas a Solzhenitsyn -, da safra do ano anterior, fervidas com casca e cobertas com fungos da tundra. Iguaria siberiana, para ser apreciada entre goles de vodka Stolichnaya. Antes de dormir, anestesiado pela “agüinha”, Raimundo já havia terminado o livro. Na conexão em Paris conseguiu encontrar um livro sobre estratificação social numa livraria do aeroporto. Antes da decolagem rumo à terra natal, já devorava o novo livro. Como devorou o tablete de cereais de sabor alho, servido como almoço.

Após a chegada, Raimundo ficou um dia inteiro pensando, enquanto tentava inutilmente dormir, desajustado pala diferença de fusos horários. Pensando melhor, não foi apenas a diferença de fuso horário o que lhe tirou o sono. Ainda sentia o cheiro de bordo, misto de picumã de carvão com fedor de pêlo mal curtido. No segundo dia, ainda com olheiras, após vários banhos, convocou o conselho da Cotra. Ficara muito impressionado com o que lera.

Quando o Velho (o sogro) entrou na sala de reuniões, com um Cohiba no canto da boca, Raimundo lembrou-se do vôo. O Velho adoraria voar naquilo. Permissão para fumar os charutos, péssima comida, boa bebida e uma fumarenta atmosfera de abrigo antiaéreo. O tipo de aconchego que o Velho apreciava.

A irmã do Zé Tongo veio diretamente do CotraVida, mostrando o bronzeado de quem vivia e trabalhava ao ar livre. Em breve estaria partindo para uma temporada na Sibéria, onde ensinaria os clientes do CotraGulag, altos executivos norte-americanos e japoneses (estes baixos, por uma questão genética) em sua maioria, a plantar batatas às margens do Lago Baikal. Zé Tongo e o Japa chegaram depois.

Raimundo falou durante mais de uma hora sobre o que lera na sua viagem de retorno a Terra Futuris. Percebera coisas a respeito da sociedade que antes passavam despercebidas. Percebera também a idiotice da frase anterior, óbvia em essência. Entendera a preponderância da sociedade sobre o indivíduo e a norma jurídica como decorrência da regra moral. Quanto mais desenvolvida a sociedade, mais próximas estavam as regras morais das normas jurídicas. Os suíços não cospem uns nos outros, normalmente. Em decorrência, é proibido cuspir nos outros na Suíça. E todo mundo lá acha natural não cuspir nos outros. A mesma lei não teria aplicabilidade prática em outro país onde houvesse o hábito de cuspir nos outros. Entendera que a regra moral diz respeito a uma determinada sociedade em um determinado tempo.

O Velho já estava no segundo Cohiba quando Raimundo começou a discorrer sobre a estratificação social. Mostrou o exemplo indiano como um extremo da separação da população em castas. Mostrou também o outro extremo, quase desestratificado, dos Kibutz israelenses. Lendo sobre tudo isso, Raimundo teve o lampejo do que chamou de TAI - Teoria do Abandono Inglês. Deixou claro que o inglês não era necessariamente um inglês, poderia ser qualquer povo conquistador e colonizador extrativista, como russos, franceses, belgas, holandeses, alemães, espanhóis e portugueses.

Havia dois momentos notáveis na história dos conjuntos de povos nômades ou tribais. A chegada dos ingleses e a saída dos ingleses. Temos exemplos claros na Ásia, na África e nas Américas do Sul e Central. Os ingleses chegaram, subjugaram as tribos em luta, e estabeleceram através da força sociedades relativamente estáveis, apesar da incompatibilidade das regras morais, de grupo para grupo. A estabilidade durou enquanto a mão de ferro dos ingleses esteve presente. Quando saíram, deixando algum governo “democraticamente” escolhido por eles, estouraram guerras étnicas e tribais.

A queda da Cortina de Ferro dera novos exemplos dramáticos, como a divisão dos países balcânicos. Retirada a mão da extinta URSS, as novas repúblicas entraram numa guerra selvagem e incompreensível para quem não leu a história deles. Também para quem leu.
Zé Tongo achou interessante, mas não conseguia enxergar a relação disso com Cotra. Raimundo respondeu que a Cotra nascera e crescera num sistema de cooperativas. Cooperativas congregam grupos com interesses afins, compondo uma sociedade. Se não houvesse os ingleses para manter a coesão, entre os diversos grupos sociais, havia uma tendência à desagregação social. Os grupos com interesses distintos passariam a disputar os recursos, isto é, o dinheiro, o capital. No caso da Terra Futuris os ingleses haviam se recolhido e deixaram o país à mercê dos antigos grupos de poder, exploradores iniciais dos recursos primários. A falta de um elemento interno de coesão, ou de alguma ameaça externa, pulverizou o poder em dezenas de pequenos (em número) grupos, cada um puxando a brasa para o seu assado. Um imenso assado, por sinal. Após longa ausência, os ingleses voltaram através da área de serviços.

Em pouco tempo as minorias sociais e econômicas se uniram em ações conjuntas para conquistar o poder. Tudo para dividi-lo logo após, na busca de suas conquistas individuais. Assaram o clássico bolo do Delfim para fatiá-lo desigualmente e brigar pelas maiores fatias ou migalhas. As minorias sociais criaram grupos estruturados com representantes nas instituições do estado, abrigados por partidos políticos que nasceram e cresceram dos chamados excluídos sociais. Findo o processo de tomada do poder, pela via democrática, os excluídos passaram a ser os incluídos, e vice-versa.

A norma moral individual de cada grupo deixou de ter reflexo na norma jurídica. Criou-se um enorme abismo ético e moral entre alguns grupos. A norma jurídica perdeu sua aplicabilidade em muitos aspectos. Quando se deixa de cumprir uma lei, e nada acontece, há uma tendência à desobediência de outras. Inicia com as pequenas contravenções e vai crescendo até os crimes penais.

Quando o estado deixa uma lacuna, logo alguém a ocupa. Praticamente todas áreas de competência do estado hoje estão ocupadas pela iniciativa provada. Ensino, segurança e saúde são os primeiros exemplos de lacuna deixada pelo estado.

Raimundo contou que entendera o que estava acontecendo quando percebeu que haviam sido criadas estratificações vertical e horizontal na nossa sociedade. Havia a casta dos grandes empresários com suas confrarias, como a Fiesp e a Feder-qualquer-coisa. Os antigos ingleses voltaram. Empresas de telecomunicações e bancos são deles. Portugueses, espanhóis, italianos, bascos, realmente ingleses, norte-americanos, todos estão aí. Os bancos têm sua própria casta, todos confrades na Febraban.

Os sem alguma coisa reuniam-se em torno dos MST, U, V, W, etc. Estas confrarias elegem parlamentares para manter seus interesses preservados na norma jurídica. As lideranças de algumas organizações não têm o mínimo interesse na solução de todos os problemas dos seus representados. Sem o problema para que solução? Deixariam de ter importância e perderiam seus eleitores. Para que serviria um representante do MSTeto se houvesse teto para todos? Basta fazer bastante barulho e levar umas cacetadas de vez em quando, para aparecer na mídia. Assim a reeleição fica garantida.

A leitura das novas, quando voltou da última viagem, deixara Raimundo particularmente preocupado. Uma confraria de bancos organizara um seminário sobre juros bancários para mais de 40 juízes, alguns das maiores instâncias, numa praia paradisíaca, com viagem e estadias pagas. Não sabia se isso era legal, mas com certeza estava muito longe da sua noção de ética. Mostrava o poder dessas confrarias.

Fez-se o silêncio quando Raimundo parou de falar. Todos se acomodavam nas poltronas como se dissessem: - onde ele quer chegar? Ele continuou. Chegara a uma conclusão: o maior problema da Terra Futuris era a falta de um arcabouço moral compartilhado pela maioria dos segmentos da sociedade. Algo simples e enxuto. Se houvesse, a norma jurídica o refletiria.
Contou também que refletira muito sobre o problema e acreditava que algo poderia ser feito para mudar a situação.

Zé Tongo foi o primeiro a se manifestar.

- Então esta não é uma reunião de negócios?

Raimundo se preparava para responder que não, quando o Velho atalhou:

- A princípio parece que não, mas, pensando bem, se alguém conseguir melhorar o caos que está instalado por aí, certamente fará bem para os negócios. Já gastamos horrores para sustentar um estado falido e omisso. Qual é a idéia?

- Eu tenho participado de uma atividade voluntária, como todos vocês, pelo que sei.

Todos assentiram. Continuou:

- As coisas que me atraem no grupo do qual faço parte são a confiança mútua e a ausência de interesses outros que não os de fazer algo em prol de outros. Entro lá sem levar a carteira, não preciso dela. Há um clima de desarmamento. Percebo agora o porquê. Simplesmente, porque o nosso código moral é o mesmo. Não cuspimos na rua, não roubamos, etc.

- Ninguém ali é um poço de virtude, somos apenas razoavelmente e suficientemente bons. Confiamos uns nos outros porque nada ganhamos materialmente. Esta possivelmente é a chave do problema. E da solução. Não dá para confiar num bom samaritano profissional, como os detentores de cargos eletivos em geral tentam se colocar. Para eles basta parecer decente. A imagem é o que conta.

O Velho conseguiu falar enquanto soltava rodelas de fumaça do Cohiba.
- É por isso ninguém desentope esgoto, o trabalho não aparece. Quando tudo alaga, é fácil dar a culpa para São Pedro.

- Exatamente. Pensem nisto: trabalhamos voluntariamente sem esperar qualquer tipo de agradecimento por isto. Queremos unicamente a recompensa de ter feito algo que possa estar melhorando a vida de alguém. Além disso, a confraria é um lugar para relaxar e afugentar um pouco do stress.

- Pensem mais: quantas pessoas das relações diretas de vocês poderiam fazer parte de grupos de trabalho voluntário? Em quantas pessoas vocês confiam cegamente? Não muitas, mas há algumas com certeza. Minha idéia não é muito complicada. Creio que precisamos unir de alguma forma as pessoas que trazem uma boa bagagem moral e ética. Poderemos fazer a diferença, quando unidos.

- Pensa em fundar mais um partido político? Zé Tongo imaginou que de nada adiantaria levar pessoas decentes à política partidária, pois ficariam engessados na luta pelo poder e pela hipocrisia inerentes à atividade política.

- Não, cairíamos na vala comum. Ninguém mais acredita em partidários mesmo. No meio do mar de promessas padronizadas apenas alguém muito ousado poderia se destacar. Alguém que utilizasse um discurso como “Não sou perfeito, não prometo nada antes de descobrir o tamanho do buraco no qual caímos, não dou beijo em todas as criancinhas e sou humano”. Neste eu votaria.

- A única forma de manter uma confraria decente é manter o dinheiro longe dela. Nosso desafio é a criação de um sistema de confrarias de voluntários, seja em que área de atuação for. Os voluntários tendem a ser pessoas semelhantes, nos aspectos éticos e morais. Há os voluntários involuntários que trabalham para somar pontos nos programas de gestão de pessoas de algumas empresas. Não é difícil identificá-los. Outra coisa importante é não pagar nada nem cobrar nada.

- Vamos formar grupos de até 100 pessoas, todas voluntárias, para trabalhar em atividades beneficentes. Pode ser qualquer coisa. Desde que não seja paga. Cada grupo deverá escolherá livremente um coordenador, através do método que julgar mais conveniente. Os coordenadores de grupos se reunirão em supergrupos de 100, representando assim 10 mil pessoas. Estes últimos se reunirão em hipergrupos de 10, representando 100 mil pessoas, e assim por diante. Os coordenadores dos grupos de hierarquia superior serão criados à medida que forem necessários e terão como finalidade primordial a manutenção da coesão das confrarias e o cadastro dos participantes. Cada grupo deverá tentar criar novos grupos de mesma hierarquia em outras localidades. A escolha dos voluntários será atribuição dos próprios, sendo necessária aprovação por unanimidade. Os membros de cada confraria serão conhecidos apenas pelos seus pares.

- Os jovens deverão ser a prioridade do esforço. Ainda carregam uma carga moral e ética preservada. Já notaram o trabalho feito pelos jovens na justiça? Além de ainda não estragados, apresentam a disposição necessária para este tipo de empreitada.

- Como conseguiremos financiamento?

O Japa sempre pensava no aspecto econômico.

- Não há financiamento, a princípio. Espera-se que os voluntários mantenham suas próprias atividades. Se alguém precisar de dinheiro, deverá buscá-lo. Há empresas e pessoas dispostas a gastar com benemerência, mesmo ficando incógnitas. O importante é não manter caixa. Onde há acúmulo, há tentação. Devemos tentar manter grupos de serviços, como conseguir trabalho, por exemplo. Um voluntário pode dedicar seu tempo a conseguir trabalho a outrem. Outro poderá dar emprego, contribuindo desta forma.

- O assistencialismo de esmola ou sacola não deverá ser incentivado, pois não resolve muita coisa e exige dispêndio de recursos. O dispêndio exige acumulação, que traz a tentação. Já há instituições oficiais e informais atuando no sacolismo. Se estiverem fazendo um bom trabalho, ótimo. Devemos dar preferência à educação, ao ensino, ao saneamento, à saúde e ao trabalho. Vamos incentivar médicos, dentistas, professores, e todos os tipos de profissionais a dedicar algumas horas do seu tempo para atender pessoas necessitadas. O importante é criar um grupo, pelo menos, por localidade. Deveremos estar presentes onde houver gente.

- Por que distinguir educação de ensino?

Quis saber o Japa.

- Educação é o ensino das regras morais e éticas feito pelos pais. Ensino é a instrução formal recebida nas escolas. Hoje há uma tendência de empurrar a educação para a escola e à televisão. O resultado depende da orientação da primeira e do programa sintonizado na segunda. Se vocês colocarem seus filhos numa pré-escola ou escola que não reflete seus padrões morais e permite que assistam a qualquer programa de Tv, não pode se queixar do resultado. A escola também educa, mas não deve ser a fonte primária.

- Conheço gente que se encaixa neste perfil do voluntário, mas já participam de outros empreendimentos de voluntários. Como convencê-los?

Zé Tongo tinha vários nomes em mente.

- Não os convença. Se já são úteis em outro empreendimento, deixe-os lá. Saberemos contatá-los mais tarde. Hoje eles farão falta onde estão.

O Japa também pediu a palavra.

– Não há como não gastar com cadastro e a logística básica, comunicação, etc. De onde virá o dinheiro?

- A Cotra fará doação de dez por cento do seu lucro, se os cooperativados, vocês, concordarem.
Todos assentiram.

- O que ganharemos com isso, no bom sentido – isto é, sem falar em dinheiro?

- Mobilizaremos pessoas que acreditam no bem a agem e vivem de acordo com uma ética semelhante a nossa. Como efeito colateral aumentaremos o trabalho voluntário. Isto, por si só, já recomenda a empreitada. Todos nós conhecemos pessoas boas, que conhecem outras, e assim pó diante. Cada pessoa que ingressar nos grupos poderá trazer novas pessoas e, eventualmente, criar novos grupos.

- Já há outras organizações que agem assim.

O Japa pensava nos Rotacionais, os Felinos e outras agremiações menos públicas.

- Realmente há, deixe que façam seu trabalho. Seremos apenas uma nova opção.

- Não sofreremos pressão da sociedade política?

- Não, ficaremos pouco visíveis. Como não há dinheiro envolvido a sociedade política não se interessará. Deixaremos que cada grupo assuma sua própria identidade e seu modo de operação. Assim ficará mais complicado pressioná-los, pela falta de um comportamento previsível. Também não ocuparemos espaço na mídia, não faremos passeata nem campanha. Seremos completamente desinteressantes para os partidos políticos. O Japa poderá inventar alguns sinais que os membros dos diversos grupos poderão utilizar para se identificar. Nem sofisticado, nem secreto, basta mostrar que é um Voluntário.

O Japa continuava inquieto.

- Não há o perigo de alguém contabilizar nossas façanhas?

- Há. Que contabilizem se assim o desejarem. Mas não sobre a nossa esfera de influência, pois haverá fidelidade.

O Velho se acomodou na poltrona e pediu algo para beber. Cerrou levemente os olhos enquanto dizia:

- Que diferença faremos no meio desta zorra?

- Quando formos em número suficiente, faremos toda diferença do mundo. Poderemos eleger nossos representantes e mudaremos a norma jurídica de acordo com aquilo que acreditamos. Tudo com representatividade.

- Quando o fizermos, não ficaremos iguais aos outros partidos políticos?

- Não. Raimundo respondeu apenas isto.

- Como faremos para não cair na mesma?

- Na hora saberemos.
Raimundo até sabia a resposta, mas preferiu não falar. Na hora apropriada saberiam como agir.

Encerrando a reunião, propôs um brinde com cerveja inglesa. Exceção foi o velho – preferiu algo escocês.

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17.9.06

Falta de Assunto

Falta de Assunto

Por Paulo Heuser

Sábado à noite recebi a sempre bem vinda visita de um velho amigo, o Leitor. Discutíamos a proximidade das eleições. Confessei que morro de medo de não ter mais assunto após as eleições. Falaremos de quem? Este ano de 2006 foi riquíssimo em assunto, tivemos a Copa do Mundo e as eleições. Tenho medo do vazio e do silêncio que ficarão após novembro. Ou será já em outubro?

Leitor ponderou que não é bem assim, não teremos mais os candidatos, mas os governos continuarão. Aleguei que não é a mesma coisa, enquanto candidatos é comedia, eleitos, é tragédia. Ele acabou me convencendo de que a tragédia pode ser uma tragicomédia, o que sempre pode render algum assunto.

Meu medo inconfessável é o de que tudo se resolva e não sobre nada a criticar. Ainda bem que um medo desses é completamente infundado. Aqui, pelo menos. Se vivesse na Suíça, escreveria sobre o quê? A safra de turistas com perna fraturada? O pH do leite da temporada? Aquela gente não pode ser realmente feliz. Sua maior emoção diária é atravessar a rua, com todos os carros parando.

Já me sinto um pouco melhor. Sobrou o Evo do Pulôver. E, pelo visto, ele não usou todo o arsenal ainda. Sobrou um porrete. Como não devolvemos o Acre, não devolverá o cavalo. E assim seguiremos nessa luta de rinha entre o galo e o gafanhoto. Este escudado pelo enfermeiro de Castro.

Quando o Evo conseguir aumentar o preço do gás, sobrarão outros assuntos. Enquanto alguém gostar de pizza de galinhada, ouvir a dupla Cremona e Tramela, beber vinho tinto suave, bombar som com os vidros do carro abertos, ler Antoine de Saint-Exupéry (e gostar, honestamente), eleger fantoches bolivarianos, cuspir na calçada e vender lugar na fila da saúde haverá assunto.

Na verdade, enquanto houver vida, há assunto. Os assuntos passam à nossa frente, escondidos para alguns, saltando e gritando para outros. Lá estão, esperando que alguém os capture. Que lhes dê vida. Pode ser uma questão de ângulo. É pegar ou largar, como a própria vida.

Gostaria de escrever sobre a sensação de voar com Antoine de Saint-Exupéry. Voava infinitamente melhor do que escrevia. Gostaria também de escrever sobre aquela fila de médicos ávidos por atender o pessoal da antiga fila da saúde. Talvez meu prisma esteja refratando a luz com a qual enxergo as coisas de uma forma diferente. Milhões leram o Pequeno Príncipe e adoraram. Cremona e Tramela lotam estádios e vendem milhões de CDs. Os bolivarianos têm seu fã clube lá, e por aqui. E há quem goste da fila, os que vendem lugares, pelo menos.

Não há tanto motivo para desespero. A campanha para a eleição de prefeitos e vereadores já está aí.
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14.9.06

Limitações

Limitações

Por Paulo Heuser

Minha Tv ficou fanha. Começou devagar, chegando ao insuportável após alguns dias. No início me fiz de surdo, fingindo que não notava a mudança que vinha ocorrendo com o áudio. O locutor do jornal começava a falar meio “afãnhãhã”. Acreditei até num forte resfriado, mas caí na real quando todos aparentavam o resfriado.

É uma experiência nova. A imagem continua ótima, mas o som, quanta diferença! Já tenho um aparelho de som que sofre de gagueira, mas Tv fanha nunca tive. Ao comentar o caso com um amigo, envolvido com uma Ong de alguma coisa que não entendi bem, levei um puxão de orelha. Ele me disse que é feio falar que o som está gago. Diz-se que está com fala sincopada. É politicamente mais correto. O mesmo ocorreu com a Tv fanha, que estaria com a voz extremamente anasalada.

Pensei em ligar a Tv ao equipamento som. Desisti quando descobri que criaria um cânone de fala sincopada extremamente anasalada. Cacofonia pura – gagofanhia, no caso. Para quem esqueceu das aulas de canto da Frau não-me-lembro-quem, cânone é um jogo musical onde a metade de um coral tenta bagunçar a música da outra metade, cantando coisas diferentes, fora do tempo. Muito semelhante às duas Tvs sintonizadas no mesmo programa, uma via antena e a outra via cabo.

Percebi logo que de nada adiantaria resolver o problema como um todo. Teria de segmentá-lo para adotar soluções específicas para cada limitação – doença também é feio. Resolvi começar pelo som. Se resolvesse o problema dele eu teria uma solução holística – isto o pessoal da Ong adora. Bastaria ouvir o som da Tv pelo equipamento de som sem fala sincopada.

Após uma criteriosa investigação na Enciclopédia Britânica e nos almanaques de farmácia, concluí que o melhor meio para curar a fala sincopada seria através de um antigo método, dando três pancadas no paciente, com uma colher de pau. Tentei, cuidando para não quebrar nenhum botão. Nada. Tentei com uma colher de aço. Nada, afora três arranhões na pintura. Lembrei-me então do meu sogro. Ele curava soluço despejando um copo de água gelada pelo colarinho dos engolidores espasmódicos – será que é assim que dizem na Ong? Ora, gagueira e soluço têm algo em comum. O que é, não sei, mas que têm, têm.

Joguei um copo de água gelada pela grade traseira do som. Algo aconteceu. A fala sincopada curou, pena que ficou mudo – extremamente silencioso? -, além de muito quente, pois saiu fumaça do seu interior.

Voltei minha atenção à Tv, o som que se mude! Mudo? Tentei pincelar mel com limão nos alto-falantes. Nada. Nova pesquisa criteriosa, sem a enciclopédia desta vez, me revelou que a fala extremamente fanhosa, ops, anasalada poderia ser curada mediante um grande susto. Sintonizei-a, sem aviso prévio, no Polícia em Ação. Nada. O Paulão seguia com um “..entiu pru tiu ã ãsã ãiu!”. O que poderia ser mais aterrador? Os Menudos não cantam há anos. Tentei achar algum dos Alien o Enésimo Passageiro. Aquilo sim dá susto. Estavam reprisando o décimo oitavo, que não tem muita graça.

Desisti, terei de apelar para um especialista. Algo me intriga neste problema. Por que a Tv fica boa durante o programa do Chaves?
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13.9.06

Das Culpas e Méritos

Das Culpas e Méritos

Por Paulo Heuser

Carregamos um fardo de culpas, ao longo da vida. O fardo fica mais pesado à medida que o tempo passa. Há quem acredite que não tem culpa, trata-se de mera ilusão. Estes são mais felizes, provavelmente.

Algumas das nossas culpas são endógenas, nós as cultivamos. Pequenos ou grandes atos que praticamos ou deixamos de praticar. Até certo ponto, podemos administrar essas culpas, praticando ou deixando de praticar outros atos que de certa forma compensem ou amenizem aqueles. Assim, passamos a carregar o mesmo fardo, compensado pela carga de méritos, pelo menos em parte. Alguns atos ou omissões causam danos irreparáveis. Destes carregaremos a culpa pelo resto da existência.

Outras culpas são exógenas – a nós atribuídas -, sobre as quais temos pouco ou nenhum controle. São as decorrentes de atos cometidos pelos nossos ancestrais ou as decorrentes da nossa inserção no meio social. Exemplo perfeito é a culpa carregada pelo povo alemão, nascido no pós-guerra, pelo extermínio de seis milhões de judeus. Ingleses, franceses, portugueses e espanhóis levam a culpa pelo colonialismo. Islâmicos pagam pelos ataques dos bandos de terroristas de turbante; os norte-americanos são culpados de tudo; católicos são responsáveis pela Inquisição; judeus carregam a culpa pela execução de Cristo. Os diferentes têm a culpa de não serem iguais.

Pais carregam a culpa pelos atos dos filhos; bebês são responsáveis pelas noites insones dos pais; médicos são culpados pelo ônus da consulta; bacharéis em Direito carregam a culpa pela defesa do eventualmente indefensável; oficiais de justiça levam a culpa pelo despejo da viúva.
Aos ricos é atribuída a culpa pela miséria da maioria; a classe média arrasta o fardo da culpa por tudo, já que tudo paga e mantém o estado das coisas; pobres carregam a virtude da pobreza, cultuada e alardeada por movimentos sociais que por vezes nada fazem, além do alarde. Àqueles não sobrou culpa, afora a penal. Mesmo esta vem sendo enaltecida como virtude.

Enfim, somos todos culpados de alguma coisa, em maior ou menor grau, por demérito próprio ou atribuído ao arrepio da nossa vontade. Já nascemos com o rótulo da culpa. Há um provérbio que apenas tenta reforçar a hereditariedade da culpa: “Filho de peixe, peixinho é”.
Do outro lado da moeda está o mérito, também tornado hereditário pelo provérbio acima. O mérito também pode ser dividido em endógeno e exógeno, criado ou atribuído. Apesar de tudo indicar que o mérito pode ser eliminado facilmente pela culpa, a prática não confirma esta hipótese.

O mérito exógeno, por sua vez, pode ser atribuído mediante publicidade, escondendo a culpa por detrás de uma imagem virtuosa. Verdadeiros monstros projetam a imagem de santos justiceiros. É apenas uma questão de investimento. Não em ações virtuosas, em publicidade.

Os únicos isentos de qualquer culpa são os inimputáveis, cuja publicidade temos de tolerar pela imposição da norma.

Resta a esperança de que o Mármore do Inferno exista, apesar da pouca publicidade.

E-mail: prheuser@gmail.com

11.9.06

Ilha da Fantasia

Ilha da Fantasia

Por Paulo Heuser
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Recebi o prospecto de um grande congresso de telecomunicações. O local atrai muito: Florianópolis. O lado obscuro – ou o mais iluminado – da mente já mentalizou passeios nas praias e restaurantes transbordando de lulas e camarões. O lado iluminado – ou mais obscuro – da mente repeliu aquelas cenas, afinal, trata-se de um evento profissional. Coisa séria.

Virando a primeira página, eis a cerimônia de abertura. Será concorridíssima, certamente. Quem serão as estrelas da abertura? O Ministro das Comunicações? O Diretor da Anatel? O presidente de uma das grandes no ramo? Não, quem apostou neles errou. Serão Ana Hickmann e Daniela Mercury. A primeira será mestra de cerimônias e a segunda cantará o Hino Nacional. Será em ritmo de axé music?

O lado obscuro adorou, o iluminado não entendeu. Sempre há uma explicação para qualquer coisa, tudo depende apenas do quanto queremos ser convencidos. Assim consegue-se vender qualquer coisa, para nós mesmos inclusive.

Também neste caso há uma explicação bem racional para a presença das duas no evento. Quando o lado obscuro pensa na Ana Hickmann, qual a primeira imagem que lhe vem à mente? Pernas, longas pernas. Pernas longas lembram antenas. A Daniela lembra axé, atabaques, gangoleleôs e ababequereôs, sendo que dos dois últimos nada sei. Tambores lembram aquelas antenas de microondas usadas em telecomunicações. Não faz muito sentido? Bem, tentemos por outro caminho.

Há uma enorme diferença de estatura física entre as duas celebridades, lembrado o Sr. Roarke e Tattoo, interpretados por Ricardo Montalban e Hervé Villechaize, respectivamente, no seriado de Tv Ilha da Fantasia, exibido aqui na década de 80. Como também é conhecida a Ilha de Santa Catarina? Ilha da Magia? Certo, mas há outro apelido – Ilha da Fantasia. Pronto, o lado obscuro consegue convencer o lado iluminado de que a presença das duas na abertura do congresso é algo muito lógico.

Ok, resolvido o impasse da abertura, vamos aos destaques especiais. Dentre os seis destaques encontramos três professores, um jornalista, um astronauta e uma jogadora de basquete aposentada. Vamos seguir nosso processo de racionalização. O lado obscuro explicou ao iluminado que Marcos Pontes subiu num foguete. Este pode também carregar satélites de telecomunicações. Faz sentido. A presença de Magic Paula foi mais difícil de explicar. O lado iluminado ouviu uma imensa história sobre o uso do celular pelos atletas e outras lorotas teledesportivas. Alegou também que o aro da cesta lembrava uma antena de UHF, tipo loop. Se não acreditou, também não reclamou.

Comentei o assunto com um amigo, engenheiro de telecomunicações, que enviou um pedido de participação no congresso à sua diretoria. Embasou a justificativa nos aspectos técnicos e anexou o prospecto. Hoje teve a resposta. Seu pedido foi negado. Tentou saber a razão da recusa. Ainda não conseguiu, pois a agenda do diretor está lotada.

Só há disponibilidade na agenda dele após um congresso em Florianópolis.

E-mail: prheuser@gmail.com

6.9.06

O Buraco

O Buraco

Por Paulo Heuser

A Conjetura Poincaré é um enigma matemático que perdurou por quase 100 anos. Nenhum mortal conseguia resolvê-la, até 2002, quando o russo Grigory “Grisha” Perelman a resolveu. Jules Henri Poincaré (1854-1912) foi um gênio, matemático, físico e filósofo francês que contribuiu, de forma decisiva, para os trabalhos de Lorentz e Einstein na relatividade restrita. Ah, eu sabia que o conhecia!

O enigma de Poincaré é tão enigmático que, afora alguns privilegiados (?), ninguém consegue sequer entender o seu enunciado. Isto é o que me encanta na Matemática! Alguém gritou: - Resolveram a Conjetura de Poincaré! E jornalistas de todo mundo saíram correndo e gritando a mesma coisa. Alguém deve ter indagado o que diabos seria aquilo. Imagino a resposta: - Sei lá, o que importa é que a resolveram! Coloquei um ponto de interrogação após “privilegiados” porque a frustração de não poder explicar esse negócio nem para seus amigos de répi aur - hora feliz - deve ser um horror.

Alguma boa alma matemática tentou explicar o enunciado para os leigos. Algo como poder transformar um coelho ou uma maça numa esfera, através de deformação. Já uma rosquinha ou uma porca de parafuso não poderiam ser, pois têm um furo. Ah bom, agora ficou fácil! Empiricamente – através de experimentação – alguém já deve ter comprovado, apesar da nojeira resultante.

O que causou mais furor nos meios matemáticos e jornalísticos foi o fato de Grisha ter recusado a Medalha Fields, equivalente a um Nobel de Matemática, e sumido.
Furos não deixam de ser buracos. E um buraco em especial tem concentrado a atenção da mídia de todo o País. É o buraco da Caldas Júnior, meu vizinho de trabalho. Olho pela janela e vejo seu trajeto. Os buracos comuns já atraem a curiosidade popular. Segue-se a velha história, um sujeito trabalhando e 10 olhando.

Pois o buraco da Caldas Júnior é bem diferente. Daria um filme intitulado 22 Homens e Um Segredo. Foram 22 os algemados que deixaram o prédio do buraco naquela fatídica sexta-feira. Após uma cinematográfica ação da Polícia Federal, de fazer sombra ao FBI, com homens vestindo roupas de assalto pretas, andando sobre telhados e portando armamento poderoso e sofisticado. Quem viu o início da ação, logo após as 7 horas, deve ter ouvido alguém gritando: – vá, vá, vá! - versão em português do clássico go, go, go! dos filmes americanos.

Sem acordo prévio, todos que assistiam àquela cena começaram a contar em alta voz o número de presos levados ao caminhão-xilindró. Foi um imenso coro dos trabalhadores dos prédios vizinhos, contando de um a 22. Imenso também foi o aplauso que a PF recebeu ao sair do local carregando os presos. Atos espontâneos dos que finalmente viram o bem triunfar, coisa rara.

Se os bares defronte ao buraco perderam a freguesia que cavava o buraco, ganharam em dobro com o pessoal do répi aur. Os do Jacó e o do Beto (Mezenga) que o digam.

Como vizinho do buraco, vejo a movimentação nos arredores. Jornalistas, policiais, engenheiros, cientistas e curiosos civis, todos querem entrar no buraco. Poderiam abrir um parque temático ali, fazendo conjunto com as escavações arqueológicas da Praça da Alfândega. Seria o Hole Park Alfândega. Agora surgem os buracos para achar o buraco. Feito buraco negro, sugam tudo que aparece ao seu redor.

Grisha andou sumido, após a divulgação da solução da Conjetura de Poincaré. Unindo fatos, suposições e boatos, dá para se pensar. Não estaria ele tentando provar que o buraco da Caldas Júnior não poderia ser transformado numa esfera? Ou teria ouvido esta historinha, de autoria desconhecida, contada pela minha filha:

“Vinha um biscoito feliz e saltitante pela rua gritando alto e sem parar:- Eu sou um biscoito, eu sou um biscoito, eu sou um biscoito... Um pistoleiro nervoso se irritou com tanta gritaria. Sacou sua arma e acertou em cheio, bem no meio do biscoito que, sem se abalar, logo levantou e continuou a ladainha: - Eu sou uma rosquinha, eu sou uma rosquinha, eu sou uma rosquinha...”.

Rosquinhas não podem ser transformadas em esferas. Claro, tem um furo no meio!
Já os biscoitos podem, basta mergulhá-los no café com leite e amassar.

E-mail: prheuser@gmail.com

5.9.06

Segmentação do Mercado

Segmentação do Mercado

Por Paulo Heuser

Os primeiros que apregoaram o uso da Internet para negócios foram chamados de sonhadores. No início era impossível mesmo. Conexões que caiam, muito lentas, e usuários pouco treinados foram o primeiro empecilho. Depois vieram as fraudes e as conexões seguras. Hoje as grandes lojas virtuais vendem tanto ou mais do que as lojas reais da mesma rede.

A proibição da propaganda eleitoral clássica exigiu novos meios de propagação da imagem dos candidatos e partidos. O que antes ocupava postes, camisetas, chaveiros e até, pasmem, lixas de unhas, agora circula pela Internet. Recebo muitos e-mails de pessoas que conheço, e de outras que não conheço, contendo propaganda eleitoral reversa. Reversa porque não faz propaganda de candidato ou partido. Faz uma antipropaganda. Nestes dias de aperto do caixa eleitoral, a propaganda via Internet é barata. Manda, se colar, colou.

Há dois tipos básicos de e-mail anti-alguma-coisa ou anti-alguém. O primeiro começa com um “Repassando”. Quase sempre que começa assim, é bomba. Pode ir repassando direto para a lixeira. O segundo tipo é o bem humorado. Charges, textos e filmes que fazem rir. Alguns fazem rir muito.

Dei barrigadas de tanto rir quando assisti ao filme Mera Coincidência (Wag the Dog, 1997), baseado no livro American Hero, de Larry Beinhart, dirigido por Barry Levinson. Retrata sarcasticamente o embate entre os marqueteiros presidenciais, em tempos de campanha. E nos convence que somos os consumidores (eleitores) que devem ser convencidos a consumir (eleger) o produto (candidato). Na terrível rinha de galo entre marqueteiros carecas e com cabelo, escolhemos o galo vencedor. Vence o galo, pagamos as apostas.

Apenas uma coisa me intriga na atual campanha. Por que não utilizam mais os cartões de crédito de afinidade para fazer caixa de campanha? Será que este uso tornou-se prática ilegal? Cartões de afinidade são aqueles que geram algum tipo de vantagem à instituição que está impressa na face, ou ao portador, como milhagem. Pena que os brindes de campanha estão proibidos.

Já imaginou o leque de possibilidades que seria aberto? Quarenta mil pontos no programa de recompensas do cartão poderiam levá-lo a um jantar no Disney Wold com o sósia do Bush ou a um almoço no hospital com o sósia do Castro. Hambúrguer ou pamonha sem sal (o prato), a escolha seria sua, dependeria apenas da afinidade do seu cartão.

Para os alinhados bem a bombordo, queima de lavouras trangênicas ou de mudas de eucalipto. Para os alinhados a boreste, piquenique da KKK – Ku Klux Klan, com direito à queima de cruzes e saco de papel na cabeça, ou caçada com bazuca da NRA – National Rifle Association. Esta última daria direito a uns tiros com Charlton Heston. Os programas de recompensa para os mais centrados seriam abolidos. A procura seria nula mesmo.

Ficaria estranho usar a palavras crédito, na conjuntura política atual? Ora, sempre poderíamos chamá-los de cartões de descrédito. Afinal, o que é um nome?

E-mail: prheuser@gmail.com

3.9.06

O Tempo. O Tempo? Sim, o Tempo.

Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 05/09/2006:
O Tempo. O Tempo? Sim, o Tempo.

Por Paulo Heuser

É a segunda vez que escrevo este título em um texto. A primeira foi em 1970 quando estava no que seria hoje a nona série (quarto ginasial) do Ensino Fundamental. O professor de Português lançou este tema, dentre dois, como opção para a redação (composição?). Não me recordo do outro, mas creio que era alguma abobrinha. Não entendo até hoje por que me lancei sobre algo tão estranho. Talvez já desse ouvidos à vozinha (de voz, não de avó!) me chamando para um caminho que demorei a trilhar.

Encontrei a redação, noutro dia. Percebi a ação do tempo sobre o papel, agora amarelado. Percebi também a passagem do tempo por considerá-la velha. Começamos a envelhecer quando julgamos velho algo que um dia percebemos como novo. Para a criança tudo é novo, até os idosos. Seja como for, saí-me bem, surpreendo-me até hoje com o que então escrevi. O mestre também gostou, pela nota e pelo comentário que até hoje está guardado.

Fiz um bom trabalho, consideradas época e idade. Já reparou que tudo gira em torno do tempo? Afora o título, já mencionei 18 vezes o tempo ou palavras com relação cronológica. Vinte com a última frase. Montei um texto que falava do efeito da passagem do tempo sobre os vaidosos. Ousei, com uma pitada de filosofia, ingênua, mas aceitável.

Hoje percebo a falta que fez a Filosofia, como disciplina, optativa que fosse, no Ensino Médio (Científico na época). A percebi novamente depois de ler A Crítica da Razão Pura, tradução de 1978 da segunda edição de 1787, do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), considerado o mais importante pensador moderno. Na primeira parte, que trata da Estética Transcendental, Kant define espaço e tempo, de forma impressionante. Recomendo a leitura àqueles que se encontrarem sozinhos numa praia deserta, num dia de vento e nuvens como o de hoje.

Como Kant coloca, só percebemos a passagem do tempo quando observamos mudanças nas coisas que estão no espaço, como o relógio. O próprio conceito de mudança só faz sentido quando alguma coisa é observada em tempos diferentes. Percebemos o surgimento das rugas como um sinal da passagem do tempo porque antes não estavam lá. Se apareceram, houve mudança, portanto o tempo passou. Ainda bem que os antigos não pensaram em medir a passagem do tempo através de algum dispositivo que medisse rugas. O Botox teria fulminado a medição. Pena que a anulação do efeito não anula a causa!

No Ensino Médio aprendemos que a velocidade é a medida da variação da distância (espaço) em função da variação do tempo. Os velocímetros dos automóveis indicam a distância (espaço) que vamos percorrer se mantivermos aceleração nula por uma hora (tempo). Aí está um papo legal, para mantermos com um policial rodoviário, quando autuados por excesso de velocidade: - O senhor estava me acompanhando, por uma hora, para poder afirmar que a minha velocidade era essa?

Nas disciplinas de Cálculo Diferencial aprendemos a manipular as equações que descrevem alterações nas coisas em função do tempo. Aqueles que seguem pelas áreas técnicas podem ter contato com a Relativística, que mostra que o tempo não passa da mesma forma para objetos se deslocando em velocidades diferentes. Esses fenômenos somente se tornam sensíveis, sem instrumentos muito sofisticados e precisos, quando as velocidades são muito altas, algo como dois terços da velocidade da luz.

Aprendo agora que aqui podíamos senti-los também no repouso. Aqui podíamos. Não sei por que, não podemos mais. O efeito da passagem do tempo não parecia o mesmo para todos nós. Sentíamos a diferença no dia-a-dia. Inicialmente, a violência parecia atingir apenas os miseráveis. Em algum momento evoluímos para um estado – e um Estado – onde a violência atingia miseráveis, pobres e remediados. Agora atinge a todos. Agora a violência se faz sentir para todos (espaço) a qualquer momento (tempo). Conquistamos finalmente a Democracia Transcendental não-Relativística! O mal equânime atemporal.

Não entendo o que motivou a mudança, pois os discursos continuam exatamente os mesmos. Também não entendo até hoje o que levou o professor Osvino Toillier a sugerir aquele tema para a redação.

Algo mudou.

E-mail: prheuser@gmail.com