18.12.09

571 - Quando o cosseno de teta tende a zero


Foto: Wikipedia
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Quando o cosseno de teta tende a zero



Paulo Heuser



Do primeiro bueiro a gente não se esquece. Tornei-me repetitivo depois que caí num deles. Volto ao assunto porque me encontrei ontem com o Gervásio, na Praça da Alfândega. Em meio aos habituais freqüentadores do local, o Perninha, o Funéreo e a Catorze Minutos, lá vinha ele, rengueando as duas pernas, mais ou menos como eu. Alguém poderá questionar a verossimilhança da rengueada dupla simétrica, mas, fazer o quê? São questões puramente técnicas e funcionais. Eu não sabia do assalto dele, não foi o primeiro, nem ele sabia do meu bueiro, o primeiro. A bem da verdade, devo confessar que aquela não foi a minha primeira incursão num bueiro, porém, foi a primeira involuntária. Quando eu era criança venci uma aposta ao percorrer dois quarteirões através da recém-implantada rede de esgoto pluvial, espero, de Santa Cruz. Isso são águas passada. Gervásio contou-me da sua mais recente aventura, ocorrida dois dias antes. Ele fora fazer a ceia no drive thru para pedestres, pois a noite o estava convidando a fugir da delivery do Anthony’s Dog, o popular Lulú do Tonhão. Quando quase alcançava o trailer de comida rápida, surgiram dois sujeitos que se apaixonaram pela carteira dele. O relógio já se fora no quarto assalto de 1993. Disposto a salvar o que fosse, Gervásio pôs-se a correr ladeira abaixo. Quando estava em plena debandada, calculou que sua velocidade crescia para além do limite tolerável pelas pernas, pois o cos(Ѳ) era muito pequeno e tornava proporcionalmente minúsculo o atrito cinético. Em mais três ou quatro passos, ele entendeu a gravidade da situação. Com força de atrito cinético quase nula, referida ao solo, sua velocidade aumentava pela aceleração da gravidade, freado apenas pela força de atrito com o ar. Graças aos céus, e ao cachorro-quente do Tonhão, sua silhueta semi-atlética o ajudava a frear. Até que ele tropeçou. Aí a coisa se complicou de vez, pois ele colidiu contra um corpo de massa infinitamente maior, a Terra. Toda aquela energia cinética foi convertida em hematomas e escoriações. Além da energia mecânica dos gritos, evidentemente. Quando Gervásio chegou em casa, naquele estado, a mulher duvidou dele ao ouvir que ele havia feito tudo aquilo sem a ajuda de ninguém. Sozinho ninguém conseguiria rebentar-se tanto.


Promovemos o I Concurso de Chagas da Praça da Alfândega. Um mostrava o joelho ralado, outro mostrava a mão esfolada. De chaga em chaga, um apostava, outro cobria a aposta. Empatamos. Estávamos igualmente destroçados. Havia mais algo, em comum, conforme deduzimos depois. Todo mundo nos dizia da sorte que tivemos, afinal, não quebramos nenhum osso e não levamos tiros. Que sorte! É verdade, temos muita sorte de morar aqui. Como canta a música, Porto Alegre é demais!




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13.12.09

570 - Lady Ga Ga e eu



Cosette
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Lady Ga Ga e eu



Paulo Heuser




Eis-me aqui, de pernas para o ar. Tento entender o que, afinal, aconteceu. Vou além e tento achar um culpado. Candidatos não me faltam. Já os tenho no rol de suspeitos: Victor Hugo, Delfim Netto, Dr. Kenneth Cooper, Lady Ga Ga, Johann Wolfgang von Goethe e eu. O fato é que o aquecimento global vinha afetando minhas caminhadas. Sábado, por exemplo, comecei a caminhar e o céu veio abaixo. Caminhada frustrada. Nos dias anteriores, então, não houve condições nem para uma tentativa. Toda história tem que ter um início, e esta não haveria de ser diferente. Um observador apressado poderia concluir que ela iniciou hoje. Ledo engano. No entanto, para uma melhor compreensão dos fatos, deixemo-nos levar por esse engano. Pensando assim, tudo se iniciou hoje, neste belo domingo de sol, coisa rara nos dias de hoje. Dia para se saltar da cama e correr, no sentido figurado, para a rua. Foi o que fiz. Dezoito graus no termômetro incitavam à caminhada vigorosa e entusiástica. Lá fui eu. Caminhei um tanto, até que o chão sumiu sob meus pés. Coisa de filme de Stephen King. Não, não é o Stephen Kanitz. O primeiro escreve histórias de terror comum, o segundo escreve histórias de terror econômico.


A sensação de não haver mais chão é um misto de espanto e impotência. Você está caminhando sob o sol da primavera, o vento traz o frescor do escapamento dos carros e o próximo passo é no nada. Simples assim, nada. Pisei numa tampa de bueiro, de cimento, e ela girou, abrindo um buraco por onde minha perna direita penetrou. Sem apoio, caí sobre o joelho esquerdo, enquanto a perna direita ficava entalada no buraco. Um passante me socorreu e retirou a tampa que prendia a perna. Livre da arapuca, fiz um breve inventário dos danos. O joelho esquerdo estava um tanto danificado, mas é na perna direita que se concentravam múltiplas escoriações feitas por uma espécie de ralador gigante de legumes.


A sabedoria popular é de grande valia, nessas horas. Um advogado apressou-se em me passar seu cartão de visita. Outro passante recomendou que eu ficasse lá e chamasse a imprensa. Um ciclista, completamente equipado, deu-me minuciosas instruções de como fechar novamente a tampa do bueiro, utilizando uma corda e pedaços de madeira. Ajudou-me muito. Por via das dúvidas tomei uma antitetânica e tratei dos estragos.


Agora, mais calmo, começo a perceber o que efetivamente aconteceu. Victor Hugo, o escritor francês, que não fabricava bolsas, escreveu Les Misérables. Pois bem, esses miseráveis fugiram da França e vieram atrás do milagre brasileiro do Delfim Netto. Enganados, não tiveram opção senão furtar as tampas de bueiros feitas de metal. A prefeitura cansou de repô-las e as fez de cimento. O Dr. Kenneth Cooper inventou essa moda de se fazer exercícios físicos, que seriam ótimos para o coração. Talvez, porém, para as pernas, não sei. Eu não fazia idéia de quem seria essa Lady Ga Ga, até que a vizinha veio pedir o CD emprestado, logo após lavarem minhas pernas. Dizem que eu a imitei perfeitamente, gritando gá, gá, a cada esfregada. Goethe entrou de gaiato, pois caí na avenida que levou seu nome. E eu, bem, eu acreditei neles!






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12.12.09

569 - O último pôr-do-sol


Foto: Paulo Heuser
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O último pôr-do-sol



Paulo Heuser

Waldo chorava. Sentado sobre o encosto do banco, junto à avenida na beira do rio, olhava para o poente, com os olhos cheios de lágrimas. Sonhava com a vida no poente. Lá, todos deveriam ser felizes, pois havia aquela luz mágica. O céu se tingia de cores que variavam a cada instante, nunca se repetindo. Esse era o fractal dos deuses. Ah, como seria bom viver no poente, viajando para sempre entre o ontem e o amanhã sem sofrer o hoje. O vento trazia sons de pássaros que já iam longe. O ocaso aquietava as coisas e os seres.
Pri gosta de correr à tardinha. Antes de sair do escritório, troca os sapatos de salto pelos tênis e a roupa de trabalho pelo short e top. Assume sua identidade secreta. O sol ainda pinta sua pele alva quando ela se alonga para a corrida do pós-dia. As fibras musculares se esticam. O cabelo loiro passa pelo boné, e ela deixa o estacionamento do Gasômetro, pronta para percorrer os cinco quilômetros e meio que a separavam do estádio. Nem inicia a corrida. Faz o que nunca fez antes. Pára, quando vê aquele rapaz sentado sobre o encosto do banco. Não é a aparência dele o que chama a atenção dela. Nem belo, nem feio, bem vestido, ele não a vê. Essa é surpresa. Será cego? Pri não passa despercebida, ainda mais vestida deste jeito. As cavas das laterais do short costumam arrancar galanteios ou grosserias, daqueles pelos quais passa. Indiferença, nunca, só se for cego. Ou se jogar do outro lado. Ele olha para o nada e chora, muito. Novamente, ela faz o que nunca fez.
Ele não percebe de imediato a sua chegada. Quando ela provoca um eclipse, passando defronte o Sol, ele sente um calafrio, o vento parece subitamente frio. Ela senta-se ao seu lado e fala, interrompendo a jornada para o ocaso. Quebra-se a magia.
- Você está bem? Ela lhe parece sincera, e seus olhos acinzentados refletem o pôr-do-sol.
Waldo suspira. Droga, está quase alcançando o horizonte. Falta pouco. É logo ali, quase dá para vê-lo. Ele repara nos reflexos dos raios de sol nos cabelos loiros da mulher. Em outra ocasião, quem sabe, não agora, não quando quase chega lá.
Tarde demais, lá se vai o horizonte, não poderá mais alcançá-lo, não hoje, nunca. Suspira, mais, e seus ombros curvam-se em desânimo. Os olhos dela imploram por uma resposta.
- Vá lá, estou.
- Então, por que chora?
- Choro porque eu queria estar lá, onde o Sol se pôs. Lá, sim, eu viveria outra vida.
Ela tomou a mão dele na sua e a apertou, bem firme. Ficaram sentados, dois estranhos olhando para onde o Sol se poria novamente, amanhã, conscientes de que aquele fora o último pôr-do-sol.


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8.12.09

568 - Crônicas da Rua do Cotovelo


Fonte: Wikipedia
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Crônicas da Rua do Cotovelo



Paulo Heuser




Não o via há muito tempo. Um ano, creio. Eu andava pela Riachuelo, na direção da Usina do Gasômetro, quando me deparei novamente com a figura de Gianfranco Anarchico, o Gian, como é conhecido por aquelas bandas. Aconteceu no sábado passado, dia que, de tão perfeito, que me fez desistir de emigrar para a Índia das Monções, na procura de um lugar mais seco para viver. O Gian é aquele que defende a criação de um sistema de eleições permanentes, o Continua perpetua elettorale. Ele é um dos últimos anarquistas italianos que perambulam pelo mundo. Tenta disseminar a mobilidade sociopolítica desprovida de hierarquia institucionalizada, a popular bagunça. Seu habitat é o baixo Alto da Bronze, nas imediações do Bar da Elvira, reduto cult-liberal do Centro.
A sede me levou a comprar água, e não resisti a uma paradinha no bar. Elvira catava moscas sobre o vidro embaçado do balcão expositor de quitutes de outrora, como os irônicos bolos ingleses, os croquetes e os pastéis de, digamos assim, carne moída. Não consegui evitar o Gian, que me reconheceu de imediato. Abriu largo e semidentado sorriso, emoldurado pelo rosto magro. O ciao, gritado alegremente, denunciou o reconhecimento. Gian combina com a atmosfera fedorenta de cerveja e de fritura do Elvira. Aliás, tudo ali se encaixa perfeitamente. Copos de requeijão, mesas encardidas, cadeiras de madeira de espaldar reto, moscas pegajosas, a cortina floreada que leva à cozinha, cerâmica gretada até a metade da parede. Apesar dos declarados 72, Gian, por detrás dos óculos redondos, parece vir dos tempos em que a Riachuelo se chamava Rua do Cotovelo.
Gian fizera novas vítimas. Um trio que fora beber algumas no Elvira caiu no papo do toscano. A discussão corria solta, e o assunto era a corrupção. Como de outra vez, Gian entrou na conversa com o copo vazio e o corpo. Servia-se da cerveja deles como se fosse sua, prova de que todo anarquista tem pelo menos um pouco de socialista. Os dois rapazes estavam enfezados. A moça ouvia quieta. Seu rosto moreno apoiava-se sobre o joelho da perna erguida sobre a cadeira. Aparentemente alheia, ela furungava entre os dedos incrivelmente perfeitos do pé, como se procurasse por alguma sujeira que não estava lá. De quando em quando, afastava a mecha de cabelo liso e negro que lhe caía sobre a testa.
O velho serviu-se novamente da cerveja dos outros. Fingiram não perceber. Ele alisou os cabelos brancos, presos em rabo de cavalo, semicerrou os olhos azuis e gritou.
- As instituições são corruptas. No sistema de mobilidade sociopolítica desprovida de hierarquia institucionalizada a corrupção não existe, pois não há ninguém que tenha tanta influência a ponto de se tornar alvo da corrupção. Não há foco de poder!
O rapaz com boina de Bob Marley defendia a forca, sem a cedilha, para todos os políticos. Ele inclinava a cadeira para trás, até quase perder o equilíbrio. Dona Elvira distribuía mata-moscadas a rodo. Os cadáveres dos insetos confundiam-se com as manchas da cerâmica encardida do piso. O anarquista não esmorecia.
- Sem hierarquia, não há corrupção!
O segundo rapaz bebeu todo o conteúdo do copo, antes que Gian o fizesse, e falou, com voz de tenor.
- A solução pode ser a Anapro, a Agência Nacional da Propina, órgão regulador da corrupção. A ela caberiam a fiscalização, a regulamentação e a elaboração do Plano Nacional de Corrupção. Esse órgão teria independência administrativa e econômica, sem submissão a qualquer hierarquia de governo. Estabeleceria a tabela de referência para a cobrança de propinas.
A moça examinava o vale entre os dois últimos dedos do pé esquerdo, aparentemente satisfeita com o que via. A brancura daquele espaço contrastava com o tom bronzeado dos braços e das pernas. Sem desviar os olhos ela afastou a mecha rebelde do cabelo, com um sopro, e abriu a boca, pela primeira vez. Com voz de menina, disse:


- Ora, isso já existe...





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5.12.09

567 - O cofre

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Foto: Paulo Heuser
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O cofre


                                                                                Paulo Heuser



Vai chover, muito. Evito olhar para o céu, tornei-me gaulês. Temo que ele me caia sobre a cabeça, único temor dos gauleses. Deles, pois nós tememos tudo, inclusive que nossa própria sombra nos assalte. Caminho com jeito de local, pois é perigoso parecer forâneo por aqui. Os locais não olham para os lados, já sabem tudo que há pelos flancos. Olho setenta metros à frente, com olhar de franca indiferença. Essa é a regra. Mesmo à frente, conheço tudo, de olhos fechados, o poste, o mendigo, a lixeira, a caixa de coleta dos correios, a parada de ônibus e o cofre. O cofre. É, um cofre, daqueles grandes. Não é um Fort Knox, mas abrigaria o conteúdo de muito caixa dois.



Bem, aí temos algo de novo. O cofre. Se um cofre, em pé, chama a atenção, o que dizer de um cofre tombado, de boca aberta, na esquina da Rua da Praia? Jaz inerte feito pedestre que usa a faixa. Esconde apenas um grande vazio. Esse cofre perturba minha passagem, pois penso no que aconteceu para que ele esteja ali. O mendigo está lá porque é um mendigo, é sua profissão. Dele se espera que lamurie para pedir dinheiro. Em outros tempos, cheguei a temer a aposentadoria do mendigo, por invalidez. Isso implicaria o paradoxo do mendigo da Caldas Júnior, pois ele, uma vez aposentado, deixaria de mendigar. Premiado pelo fator previdenciário, e pelos formidáveis reajustes da aposentadoria, ele logo integraria a legião dos Sem-Paim e voltaria a mendigar. Pilhado na volta à atividade, perderia a aposentadoria. Porém, a invalidez o levaria novamente à aposentadoria, e salve-nos Paim, assim por diante. São temores sofismáveis, mas retornam, de quando em quando. Bem, o mendigo que se exploda, pois o que me preocupa, mesmo, no momento, é o raio do cofre. Se cruzar por ele, terei de olhar para o lado, gesto impensável para um local. Pior do que olhar para o lado, só mesmo olhar para trás. Locais não olham para trás, nem deixam que sua sombra o faça.



Fico a imaginar por que diabos alguém largaria um cofre nesse lugar. Não é o lugar mais recomendável para se desovar um cofre roubado, ainda mais na hora do almoço. Por que ainda não o furtaram, se já se encontra jogado há mais de dois minutos? Esse trambolho, mesmo vazio, vale uma grana preta, lá pelos lados da Voluntários da Pátria. Pesa muito, deve ser isso.



Quantas perguntas sem resposta. Pensando bem, nada disso é problema meu, e é hora do almoço, hora de se olhar para a própria barriga. Só há um jeito de cruzar por ele. Olho para cima, sem preocupação com a sombra, pois está muito nublado.



Céus, vai chover, muito!





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