30.12.08

499,995 - Em busca de razões

Foto: Paulo Heuser
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Em busca de razões

Por Paulo Heuser


É Ano Novo, novamente. Coisa óbvia. Hora de fazer as enfadonhas retrospectivas. Fazendo um balanço, o 2008, este não foi grande coisa. Está certo, termina com manchetes de jornais sobre novas batalhas da eterna guerra. Israelenses bombardeiam palestinos, e estes jogam foguetes conta aqueles, e assim segue o pêndulo da guerra. Mais adiante, paquistaneses e indianos brandem suas armas nucleares, uns contra os outros.

A guerra intriga o homem normal, aquele que não está a soldo, pois parece ilógica àqueles que não vêem suas casas ameaçadas por inimigo próximo. As guerras em terras distantes parecem ainda mais estúpidas. O que mais me intriga, em algumas guerras, é por que povos que se parecem tanto entram em longos conflitos.

Brennero (Brenner) é uma pequena comuna italiana que fica ao lado do Passo del Brennero (Brennerpass), na região do Trentino-Alto Adige, estratégica passagem entre o Tirol austríaco e as Dolomitas italianas. Como o Passo del Brennero situa-se a apenas 1370 metros de altitude, bem mais baixo que as cadeias montanhosas que o cercam, tornou-se um dos pontos mais estratégicos da Europa, desde a Era do Bronze. Por lá passaram exércitos romanos, austro-húngaros, austríacos, prussianos, alemães e italianos. Hoje passam por lá em torno de dois milhões de caminhões por ano, pois Passo del Brennero é a ligação entre o norte da Europa e a Itália. Os ingleses, alemães e nórdicos que veraneiam nas praias do Mar Adriático passam por lá em todos os verões europeus, através da auto-estrada européia E45 – A13, na Áustria, A22, na Itália. O Passo faz a ligação entre Innsbruck e Bolzano (Bozen).

O que mais intriga em Brennero é como aquela população ordeira e pacífica se viu envolvida em guerras tão terríveis. Lá se travaram batalhas, homem a homem, árvore a árvore. Imagino aquelas senhoras simpáticas oferecendo chá ao inimigo, quando conseguiam identificá-lo. De tal vai e vêm, todos se pareceriam iguais. Homens tão iguais, de crenças tão iguais, de origens tão comuns, digladiaram-se durante anos. Sem uniformes, eles pareceriam irmãos. Hoje vivem em paz, mas há pouco mais de 60 anos se matavam uns aos outros.

Todos estavam a mando de alguém que auferiu algum lucro na história, mesmo que apenas o rótulo de carniceiro ou o de louco. O que dizer, então, dos povos dos Bálcãs? Como puderam protagonizar tal inimaginável selvageria?

A história não pára. A novela das oito está aí para prová-lo.


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23.12.08

499,9 - Vinálias elétricas

Foto: Desciclopédia
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Vinálias elétricas

Por Paulo Heuser

 

Os antigos habitantes do Lácio – região central da Itália - comemoravam duas datas muito importantes para os apreciadores do vinho. Eram as Vinálias. A Vinália Rústica era comemorada em 19 de agosto e festejava o início da safra, enquanto a Vinália Urbana era comemorada em 23 de abril e festejava o vinho novo. A bebedeira era grande, nas duas comemorações, tanto que as virgens eram vigiadas com extremo cuidado, pelo temor da perda do seu diferencial que lhes permitiria ingressar na ordem das Virgens Vestais.

O vinho novo dos antigos habitantes do Lácio deve ter sido algo um tanto diferente dos vinhos da atualidade. Como me disse recentemente um enólogo, não há vinho ruim, existem propostas diferentes. Por vezes, elas me parecem diferentes demais. Contudo, creio que ele tem razão. Creio também que nos habituamos com determinadas uvas e determinadas técnicas de vinificação e criamos padrões de gosto. Quem se habitua aos vinhos mais complexos e envelhecidos estranha os vinhos muito jovens, pois nestes ainda não ocorreram processos químicos que demandam tempo, sítio e ambiente específicos. Os produtores de vinhos finos pesquisaram, durante séculos, as melhores castas, os melhores solos, as melhores madeiras para pipas e as melhores técnicas para a produção de grandes vinhos. Um bom vinho demanda paciência e arte. Tudo isso afasta a maioria dos potenciais consumidores, pois não basta gostar de vinho, há de se ter como comprá-lo. Creio que nunca me esquecerei da cena que presenciei num supermercado popular, faz alguns anos. Duas senhoras de aparência humilde, que levavam apenas gêneros de primeiríssima necessidade no carrinho, discutiam a exatidão da etiqueta afixada à prateleira de um vinho francês de 600 reais a garrafa. Aquele vinho não pertencia ao mundo delas, nem àquele supermercado.

Firulas à parte, a seção de ciência da Folha de São Paulo traz noticia que dá o que pensar. Os cientistas da Universidade Tecnológica do Sul da China descobriram que se pode apressar o amadurecimento do vinho jovem quando este é submetido a uma corrente elétrica, a partir de eletrodos de titânio. Dão choques no vinho. Isso dá medo. Já posso imaginar um gran cru da Borgonha chinesa, vendido em tetrapac e submetido à eletrocussão. Como serão os rótulos? Életrocuté dans le château chinois – Eletrocutado no castelo chinês? Os pesquisadores chineses afirmam que conseguiram melhorar muito seus vinhos, como direi, de proposta excessivamente diferente. Assim, aproximarão os consumidores menos favorecidos dos vinhos de proposta menos diferente. Não que eu possa comprar os bons vinhos franceses, mas gosto de saber que eles existem.

O que mais temo, é a velocidade vertiginosa da evolução dessas novas técnicas. Hoje, aplicam uma corrente elétrica ao vinho. Amanhã, quem sabe. Aplicarão choques no cliente, enquanto ele bebe o vinho. Just in time. Coisa de administração da produção. E nós, seremos insumos.


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22.12.08

499,8 - Uma outra crônica de Natal

Foto: Paulo Heuser
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Outra crônica de Natal

Por Paulo Heuser

 

Eu não poderia deixar de escrever algo sobre o Natal. Não é a primeira vez que o faço. Portanto, devo evitar as eternas repetições. É óbvio que desejo um feliz Natal a todos, etc. Ainda mais eu, que vim de uma família que sempre cultuou o Natal. Herdamos a cultura dos nossos ancestrais que emigraram da Renânia e da Pomerânia, ambas no antigo Reino da Prússia. Deles herdamos o costume de enfeitar uma Árvore de Natal – Tannenbaum. Herdamos também o costume de montar o Presépio sob a árvore. Também não deixamos de preparar a bole, bebida feita a partir de frutas, vinho e espumante, de aparência inocente, própria para alegrar senhoras idosas incautas. A cultura do Natal nos é muito forte, desde os nossos obscuros ascendentes celtas, passando pelos católicos romanos até o Século XV, até os luteranos, a partir de então.

Confesso que não me encaixo muito bem no cenário moderno do Natal. O Natal de hoje é um espetáculo de vendas que inicia em janeiro e termina em dezembro, para recomeçar em janeiro, bem entendido. Graças à tecnologia, os pinheiros naturais vêm sendo poupados, dando lugar aos modernos Tannen-e-baum – árvores eletrônicas artificiais que dançam e tocam, da rumba à lambada tecno. O Natal daqui é algo semelhante ao Carnaval de lá. Há Carnaval de Páscoa, Carnaval de Natal, Carnaval de Finados e, até, Carnaval de Carnaval. O importante tornou-se a venda, seja lá do que for. Cheguei a acreditar no Papai Noel, confesso. Só vim descobrir que ele era produto da Coca-Cola – marca registrada – depois de muitos anos. Quem bolou aquela campanha deveria receber o Nobel Vitalício de Marketing.

O que somente confessei à analista, até agora, é que não fui às compras no novo shopping. Creio que ela não acreditou, apenas fingiu. Pior, não fui aos novos cinemas, com poltronas revestidas de couro, onde servem baldes de pipocas do tamanho de uma betoneira. Assim, perdi a pré-estréia do filme Rudolf II – a Vingança da Rena Assassina do Nariz de Sangue. Não ir ao novo shopping é como deixar de fumar. Os três primeiros dias são os piores. Depois, é só administrar a vitória diária. Olho-me no espelho e digo, convicto, que não irei ao shopping hoje. Hoje, não falo do amanhã, pois este ainda não chegou. Chegará manhã. Então, será hoje.

Até quando resistirei, não sei. Porém, sentir-me-ei seguro enquanto me lembrar do cheiro verde do Tannenaum montado na sala de estar da casa da família.

 

 

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17.12.08

499,7 - Capilares termíticos

Foto: Wikipedia
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Capilares termíticos

Por Paulo Heuser

 

Ontem fui fazer uma fezinha na lotérica da chinesa que tenta desesperadamente me vender café expresso de máquina. Sempre lhe digo que comprarei toda a máquina, no dia em que ela me vender uma aposta premiada. Apesar de caminhar perdido nos meus pensamentos vagos e difusos lembrei-me de comprar um cupinicida ao passar por uma loja de ferragens que há no caminho.

Entrei na ferragem e fui prontamente atendido pelo rapaz sorridente, que vestia um imaculado jaleco branco. As lojas de ferragens do Centro são realmente diferentes daquelas dos bairros. Lá o pessoal se veste de maneira menos formal. Esse rapaz parecia polido ao extremo e penteara o cabelo em forma de crista de galo, com o auxilio de algum fixador poderoso. Resumindo, o rapaz não combinava com uma loja de ferragens. Ele parecia-se mais com um vendedor de óptica. Eu esqueci a aparência dele, por um instante, para pedir o cupinicida.

- Boa tarde! Vocês têm cupinicida?

- Cupi, o quê? – disse o engomado rapaz enquanto fazia um estranho trejeito que o afastava muito mais da imagem projetada por um balconista de loja de ferragens.

- Cu-pi-ni-ci-da. Veneno contra cupins.

- Cupiiins? – os is foram acompanhados de novo trejeito e da modulação da voz em agudo crescente.

- Sim, cupins, térmitas, isópteros, insetos eusociais...

- Que hórrooor! – o rapaz gritou enquanto dava dois passos atrás.

O rapaz engomado soltou um grito tão alto que outro vendedor veio acudi-lo. O companheiro de balcão do engomado também não se parecia com um balconista de loja de ferragens. Alto e extremamente magro, vestia uma túnica verde estilo Mao, abotoada até o gogó, e calças cor de laranja estilo Ali Babá. O gogó dele movia-se velozmente enquanto ele perguntava ao colega engomado o que havia acontecido.

- Ele quer veneeeeno!!! – gritou o engomado desesperado.

- Veneeeeno? – fez coro o horrorizado Ali Mao Babá verde-laranja.

Então, olhando melhor, eu percebi que aquela pilha de latas de tinta, na entrada da loja, não era exatamente uma pilha de latas de tinta. Percebi também que eu havia entrado numa loja que vendia produtos para cabeleireiros.

 

 

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16.12.08

499,6 - Carla e os números


Foto: Paulo Heuser
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Carla e os números

Por Paulo Heuser


Procurar por móveis, numa grande loja da moda do setor, é uma forma moderna de autoflagelo, desde o estacionamento até o atendimento. Essas lojas formam imensos bretes labirínticos, por onde os potenciais compradores serpenteiam enquanto tentam encontrar as estantes no setor das luminárias. Ainda bem que os embretados se socializam e trocam informações. Os mais experientes orientam os novatos. Eu não conseguiria encontrar novamente o setor de estantes para biblioteca, mas, de alguma forma, consegui. Eu vinha erraticamente colidindo com as paredes do labirinto quando topei com o objeto da minha busca, a estante que guardaria os livros que já ameaçavam as demais de deslizamento.

Na verdade, deu-se um duplo milagre, pois topei com a estante e a Carla. Ela é uma simpática vendedora daquele setor. Como ela faz para encontrar o local de trabalho, não sei. Contudo, segundo ela, consegue encontrá-lo todos os dias. Encontrar estante e vendedora, no mesmo sábado, é acertar na loteria. Usualmente, quando se encontra uma, não se encontra a outra.

A Carla é uma jovem alegre e sorridente, que tem os lindos olhos azuis emoldurados pelo cabelo preto como breu. Eu fiz aquela coisa idiota que sempre faço. Perguntei-lhe o preço da estante, apesar de este estar exposto em algarismos garrafais. Eu preferia acreditar na resposta da Carla, pois o valor por ela informado era menor do que o impresso na etiqueta da estante. Ela aparentemente inverteu a ordem da dezena e da unidade e transformou 82 em 28. Os olhos azul-piscina filtrada da Carla transbordavam de sinceridade. Aquela vil etiqueta é que deveria estar errada. Apesar de confiar mais na Carla, observei-lhe que os valores não batiam. Pobre Carla. Os olhos dela externaram tristeza, enquanto afirmava ser disléxica. Ela apressou-se em esclarecer que a dislexia é uma anormalidade no cérebro, que não teria cura. Coitada, pensei, pois não deve ser fácil ser vendedora e trocar números. Ela ficou tão constrangida, que procurei imediatamente tranqüilizá-la mencionando que Thomas Edison, Walt Disney, Agatha Christie e Tom Cruise são exemplos de disléxicos de sucesso, apesar de o último também aparentar outros problemas, como largar a Nicole Kidman.

Constrangido deve estar também o ex-presidente do conselho de administração da Nasdaq – uma espécie de bingo eletrônico da loteria de ações norte-americana. Bernard Madoff foi preso acusado de causar um rombo de mais de US$ 50 bilhões ao criar um fundo de investimentos baseado em esquema Ponzi – nada mais que a velha pirâmide -, no qual os primeiros investidores ganham rios de dinheiro à custa dos que entram depois na base daquela. Madoff teria causado enormes prejuízos às famílias de abonados e aos grandes bancos internacionais. Há bancos que ficaram com mais de dois bilhões de dólares a descoberto. Aparentemente, houve a troca de alguns números referentes à rentabilidade.

Seria Madoff a mais nova vítima da dislexia? Teria ele trocado milhões por bilhões, ou algo que valha?

10.12.08

499,5 - O mercado genérico

Foto: Wikipedia
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O mercado genérico

Por Paulo Heuser

O Osculento andava desaparecido. Ele era um dos mendigos que foram apontados como candidatos à condição de patrimônio mundial da humanidade do Centro – se é que lá pode haver alguma humanidade. Um pessoal da UNESCO veio vê-lo, fez medições, tirou fotos e partiu. Osculento nada tem a ver com ósculos, como poderia se presumir. Esse apelido surgiu quando uma menininha deu de cara com ele e percebeu aquilo que chamava a atenção de todos os que o vêem pela primeira vez: o Osculento usava óculos! Foi o primeiro mendigo da história a usar óculos. Depois, vieram os professores de escolas públicas. A menininha gritou – Ele é osculento! – ao vê-lo, e o apelido pegou.

O empreendedorismo nunca foi o forte do Osculento. Ele passou os últimos anos sentado sob a marquise da farmácia, pois os doentes ficam mais sensíveis e são mais propensos a alcançar algum ajutório. Ele não pedia, mas aceitava. O que vinha, vinha bem. Osculento também não procurava o que ler, a leitura é que vinha a ele. Vez por outra o vento trazia alguma página rasgada de revista ou as folhas de um jornal. Se passava ao seu alcance, ele pegava. Então, fazia jus ao apelido e lia atentamente o que lhe caíra à mão, seja lá o que fosse. Após todos esses anos de mendicância farmacêutica, ele até poderia prescrever. Mas, não. Ele tinha plena consciência de que cada um cumpria seu papel na sociedade. Médicos prescreviam, farmácias vendiam e ele mendigava passivamente. Cada macaco no seu galho. E olhe que ele já se parecia com um macaco, após todos esses anos de labuta em local sujeito às intempéries. Pois, o homem sumiu, e ninguém soube dele por muito tempo.

Na semana passada, o farmacêutico recebeu uma visita. Era um visitante que em nada lembrava o Osculento, apesar de ser o próprio. Antes mendigo, agora empreendedor bem sucedido, o homem surgiu dentro de elegante terno Armani e sapatos Pulo do Gato. A aparência remelenta ficou para trás, e a banguela deu lugar à mobília reluzente. Até os óculos desapareceram, substituídos por lentes de contato. A todos conhecidos que passavam, o farmacêutico mostrava o agora ilustre e aparentemente abonado visitante. Qual seria o segredo? – pergunta que todos se faziam. Ele logo dizia que fora o comercio exterior. Osculento entrou no ramo dos fluidos corpóreos para o mercado norte-americano, após ler uma notícia no jornal que passou voando.

Inicialmente, Osculento investiu no mercado de sangue. Como ninguém queria saber da aparência do doador, ele conseguiu facilmente vender o produto. Porém, era necessário dar um tempo entre coletas, o que limitava a rentabilidade do empreendimento. US$ 50 por doação não chegavam a entusiasmar demais. Então, Osculento descobriu o mercado do sêmen. Havia grande demanda por sêmen, coisa que Osculento não chegou a entender bem. Contudo, mercado é mercado, demanda é demanda. Se ela existia, alguém havia de supri-la. E lá estava Osculento, frente a frente com esse mercado carente de fluidos corpóreos. As primeiras incursões nesse mercado foram infrutíferas, pois então o pessoal importava-se muito com detalhes como a aparência. O material acabou indo para o lixo.

Osculento mostrou-se empreendedor quando criou uma campanha de marketing toda própria. Ele coletou mercadoria dos seus ex-companheiros da rua e comercializou-o como sendo de Johnny Schwarzmiller, um imaginário galã do cinema eslovaco. Mostrou uma foto do Charlton Heston, do tempo dos Dez Mandamentos, e o apresentava como doador. O sêmen genérico fez grande sucesso, e Osculento enriqueceu. Material não falta. Se o mercado apresenta demanda, ele está lá para supri-la. Estranhamente, muitos filhos de Johnny Schwarzmiller usam óculos.


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5.12.08

499 - Nada vem de graça



Foto: Paulo Heuser
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Nada vem de graça

Por Paulo Heuser


O Zé é meio paranóico. Meio não, muito. Ele sempre desconfia de favores e de brindes. Se estiverem dando algo é porque querem algo em troca, este é seu lema. Ele desconfia de tudo e de todos, e nem ele mesmo escapa da sua desconfiança. É considerado o terror do condomínio, pois examina aqueles balanços com lupa. Graças a sua paranóia ele conseguiu desbaratar a quadrilha de donas de casa do condomínio que lançava despesas com festins secretos na rubrica de despesas gerais. Elas promoviam regabofes etílico-pantagruélicos disfarçados de festas infantis e lançavam as despesas sob rubricas como sabão em pó liquido ou esfregão automático. Hoje o Zé é convidado certo nos congressos de auditoria condominial. Contudo, não é mais convidado às reuniões do condomínio, cuja administração insiste em presenteá-lo com diárias em Comandatuba, coincidentemente na data das assembléias. Desconfiado, ele recusa.

Pois o Zé andava desconfiado com essa história de email grátis. Nada era gratuito! Se alguém ganhava, alguém perdia - lei econômica natural ignorada pela maioria dos apostadores da grande loteria acionária, conhecida nos meios econômicos como Lei de Zé. Nos últimos tempos, ao ver o Zé, o pessoal fala à boca pequena que ali vai o responsável pela queda das bolsas. Tudo ia bem com o mercado, até que o megainvestidor Psoros Pérmico encontrou-se casualmente com o Zé, durante um coquetel, e ouviu deste o enunciado da Lei de Zé. Psoros apressou-se em vender todos os seus bilhetes da loteria acionária e derrubou as cotações. As bolsas asiáticas Prada-like desabaram, na abertura do pregão que coincidiu com o fechamento daquelas, e vice-versa, seja como for. Então começou o círculo pavoroso retroalimentado do cai aqui e cai lá, cai lá e cai aqui. Desde aquele fatídico dia, Zé deixou de ser convidado para coquetéis de megainvestidores.

Zé observou que o provedor do email gratuito começou a colocar publicidade temática nos lados da janela do navegador, que, por sinal, nada tem a ver com as escotilhas do capitão. Aquele navegador é o Internet Explorer, o Mozilla Firefox ou qualquer outro da preferência do freguês virtual. Quando o Zé recebia mensagem com as ofertas relâmpago dos hotéis da Suazilândia, as laterais da janela começavam a exibir anúncios que ofertavam carvão de Shishelweni, esposas de Hhohho e cana de Lumombo. Tudo em oferta, e tudo indicado pelo rei Mswati III. Leve cinco esposas e pague por três! Era muita coincidência. Estariam a minerar os emails recebidos pelo Zé para ofertar coisas pelas quais ele poderia se interessar? Ele deixou de acessar seu provedor de email e voltou a mandar cartas. Para quem não se lembra delas, são aquelas mensagens escritas em papel - uma espécie de email real - que se manda pelo correio, dentro de um envelope real com endereço real. As cartas recebem endereços. Os mais jovens podem entender esses endereços de rua e número como uma espécie de MAC Address, já que, como este, não podem ser alterados, ao contrário do endereço IP que pode ser alterado a qualquer momento.

Após duas semanas sem acessar o email, Zé ficou curioso e deu uma olhadinha na caixa postal virtual. Nos lados da tela havia inúmeras janelas que já não ofertavam carvão ou esposas. Elas ofertavam espátulas para a abertura de cartas e línguas artificiais para lamber selos de cartas. O Zé quase enfartou. Estariam espiando pelas janelas? Haveria câmeras ocultas que vigiavam seus passos? Zé não conseguiu dormir. Fechou todas as cortinas e não mandou mais cartas. Aliás, ele não se comunicou mais, nem por telefone. Virou um ermitão urbano entrincheirado num apartamento com janelas e frestas tapadas. Retirou até a luz da geladeira. Ficou lá, no escuro, por um mês, período que ele julgou suficiente para que sumissem os anúncios temáticos no seu navegador. Foi duro agüentar a solidão, pois não assistiu à TV nem ligou o rádio.

No 31º dia, Zé ligou o computador antes mesmo de abrir as cortinas. Esperou pela inicialização e entrou no email, letra ante letra, sem fazer alarde. A tela exibiu a relação de mensagens recebidas e uma série de janelas com ofertas de velas, lampiões e baralhos de paciência.

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3.12.08

498 - A mulher que varre


Foto: Wikipedia
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A mulher que varre

Por Paulo Heuser


Era uma mulher. Tanto faz, poderia ser um homem. Ela varria a calçada perigosamente coberta pelas milhares de flores do ipê-amarelo da primavera. Flor de ipê na calçada é a beleza que dá tombo. Ela varria paralelamente à rua, no centro da calçada, e deixava um trilho vazio atrás de si. Não havia nada nem ninguém que escapasse das vassouradas rítmicas e furiosas. A mulher magra e mal-cuidada andava curvada para frente, com os cabelos em desalinho amarrados em rabo, no topo da cabeça. O movimento ritmado da vassoura era acompanhado pelo movimento dos cabelos, em estranha harmonia. A quem passava, ela respondia, mesmo antes de qualquer pergunta:

- Varro porque me mandaram varrer. Não olho o que varro, apenas varro. Fui paga para varrer, portanto varro. Quem ficar no caminho, varrido será!

Varre há muito. Só trocaram o nome das flores, a da caliandra deu lugar a do ipê, que deu lugar a do jacarandá, que deu lugar a da caliandra. Outros nomes, mesma flor, apesar de diferentes. É a flor que dá tombo. A mulher continuou varrendo as flores da primavera da república que nunca vê verão. Ela varre as flores, desde a Velha República, as comunistas à esquerda, as integralistas à direita. Nada lhe escapa. Varreu as flores da Intentona, as do Plano Cohen e as do Estado Novo. Vez por outra, ela deixa escapar frases desconexas, do nada:

- O Brasil está em pé, vigilante e disposto a tudo empenhado na conquista de seu destino imortal!

Sempre houve flores a varrer, flores que dão tombo se não varridas. Ela não sabia para onde varrer as flores do Eixo e deixou a cobra fumar. As flores da República Nova ficaram para trás, as de Vargas para um lado, as de Dutra para outro. Em 50, varreu as espinhosas flores do Maracanazo. Em 54, varreu as flores do luto, na calçada do Catete. Em 55, varreu 50 anos em 5, e passou, em 60, às novas calçadas cobertas pelas caliandras da República do cerrado. Nova casa, novas flores, porém as mesmas, as que dão tombo se não varridas.

E assim ela seguiu a varrer. Aquilo não se parece apenas com um emprego, e sim uma compulsão. O que leva aquela mulher a varrer daquele jeito? Apenas o salário? Não. Há algo mais. Como que a responder, ela passou a cantar:

Varre, varre, varre, varre vassourinha
varre, varre a bandalheira
que o povo já tá cansado
de sofrer dessa maneira
Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado!

Varreu biquínis para um lado, Che Guevara o para outro. Não lhe escaparam as flores do parlamentarismo nem do presidencialismo. De Goulart a Magalhães Pinto, a vassoura continuou a varrer impiedosamente as flores da nova Arena e do MDB. AI-5 e Araguaia, tudo ficou no caminho da mulher que varria porque a mandaram varrer. Em 68, varreu à esquerda as flores proibidas de Geraldo Vandré, para não dizer que não falava de flores, e varreu à direita, em 70, as flores ufanistas de Dom e Ravel enquanto cantava:

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Ninguém segura a juventude do Brasil

A incansável vassoura seguiu pelos 80, abrindo um trilho sem flores através dos formidáveis anos 80, com Maluf à direita, e o finado Tancredo à esquerda. Varrida a ditadura, surgiram as flores da Nova República e da Constituição Cidadã. A mulher que varria tropeçou, pois não sabia para onde varrer as flores do impedimento de Collor, clamadas tanto pela esquerda como pela direita. Tropeçou, mas continuou a varrer as flores dos repetentes da nova era, um à esquerda, outro também, porém ambos à direita.

Quando a calçada termina, a mulher que varre vira-se e volta a varrer, pois o caminho que trilhou a varrer já exibe as novas flores que o vento da primavera varreu dos galhos da história. Ipês, jacarandás ou caliandras, todas são flores que dão tombos se não varridas.

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1.12.08

497 - A Ruína


Foto: Paulo Heuser
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A Ruína

Por Paulo Heuser


A idéia surgiu por acaso. Eu caminhava pelo bairro, quando passei pelo prédio da pizzaria que me traz ótimas lembranças. Apenas lembranças, pois a pizzaria fechou após muitos anos de existência. Não sei se foi pela mudança de nome, pela falta de estacionamento ou pelo caroço da azeitona preta, mas fechou. A pizza mafiosa era imperdível.

Talvez o melhor da pizzaria era mesmo a decoração, em tons de vermelho que faziam fundo às cores intensas dos quadros e demais objetos. Grandes janelas internas completavam o ambiente. O que me surpreendeu, mesmo, foi a placa de aluga-se, colocada na fachada do prédio semi-destruído. Arrancaram-lhe as aberturas e parte do telhado, restando madeiramentos a céu aberto. Quem alugaria aquele prédio vermelho que parecia saído da Dresden de 14 de fevereiro de 1945, após as 14 horas do maior bombardeio da história? Se queriam alugá-lo, por que destruíram-no primeiro? A resposta poderia estar nas aberturas, de algum valor. Eu nunca imaginei que seria eu a alugá-lo.

Enquanto eu caminhava, aquele prédio não me saía da cabeça. A idéia desabou sobre mim, feito piano de cauda. O povo anda meio estranho nas suas preferências de diversão. Fazem fila para comer fast food e adoram tudo que diz respeito à decadência das instituições. Por que não explorar essa decrepitude social?

O prédio caiu como uma luva. Uma luva rota, mas ainda assim uma luva. Ele me levou ao tema, pois transformei aquilo num restaurante temático, a Ruína. Restaurantes temáticos atraem públicos também temáticos. A Ruína explora exatamente a destruição, a decrepitude e a decadência da civilização, a começar pelo prédio. Não investi nem um tostão em reformas ou adaptações. Para quê? Aquilo lembra perfeitamente um ambiente de guerra no pós-bombardeio. Tampouco investi em infra-estrutura de cozinha, pois a terceirizei. Não há mesas nem cadeiras, nem onde sentar.

O cliente não é recebido pelo maitre, no que um dia foi a entrada, porque não há maitre. Quem chega, entra simplesmente e senta-se, se quiser, no chão cheio de escombros. Um eterno cheiro de cordite impregna o ambiente, graças a um perfume de bombardeio importado do Afeganistão. Apenas uma gota garante o fedor do disparo de 100 obuses de alto calibre. Há fumaça por todo o lado.

Recrutei os garçons, se é que se pode chamá-los assim, após uma briga de gangues de carecas e não-carecas. Eles concordaram em vestir uniformes de campanha, andam pesadamente armados e cospem no chão. Não há cardápio. Quem chega, senta e aguarda. Os combatentes passam pelos salões em ruínas e jogam latas estilo marmita que contêm fast food fornecida pela tele-entrega que oferecer o menor preço do dia. O conteúdo sempre é surpresa e vai do xis-coração ao cachorro quente de salsicha de patê de galinha. Para beber, há apenas duas opções, ou a cerveja pilsen quente, ou o vinho tinto suave de tetrapac. Sem escolha, naturalmente. Tudo servido em cantis de alumínio cobertos por uma lona fedorenta e suja. Os combatentes estão autorizados a hostilizar os clientes que reclamam.

Não há luz elétrica, apenas a luz proveniente de fumarentos lampiões de querosene. Em cada canto dos salões, um soldado abatido geme entre os trapos de bandagem que lhe cobrem a cabeça. É um gemido sofrido, pois não há morfina no cardápio inexistente. Vez por outra, uma enfermeira manca, com as vestes brancas manchadas de sangue, cruza os salões. A sirene de bombardeio é um sucesso total, menos com os vizinhos, infelizmente. Não há reservas, pois quanto maior o caos, melhor. Os fregueses superlotam os ambientes, pisando uns sobre os outros. E gostam!

Chamaram-me de louco, quando inaugurei a Ruína. Riram até. Pelo estrondoso sucesso, eu riria por último, se não houvesse acordado.

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