5.12.08

499 - Nada vem de graça



Foto: Paulo Heuser
.
Nada vem de graça

Por Paulo Heuser


O Zé é meio paranóico. Meio não, muito. Ele sempre desconfia de favores e de brindes. Se estiverem dando algo é porque querem algo em troca, este é seu lema. Ele desconfia de tudo e de todos, e nem ele mesmo escapa da sua desconfiança. É considerado o terror do condomínio, pois examina aqueles balanços com lupa. Graças a sua paranóia ele conseguiu desbaratar a quadrilha de donas de casa do condomínio que lançava despesas com festins secretos na rubrica de despesas gerais. Elas promoviam regabofes etílico-pantagruélicos disfarçados de festas infantis e lançavam as despesas sob rubricas como sabão em pó liquido ou esfregão automático. Hoje o Zé é convidado certo nos congressos de auditoria condominial. Contudo, não é mais convidado às reuniões do condomínio, cuja administração insiste em presenteá-lo com diárias em Comandatuba, coincidentemente na data das assembléias. Desconfiado, ele recusa.

Pois o Zé andava desconfiado com essa história de email grátis. Nada era gratuito! Se alguém ganhava, alguém perdia - lei econômica natural ignorada pela maioria dos apostadores da grande loteria acionária, conhecida nos meios econômicos como Lei de Zé. Nos últimos tempos, ao ver o Zé, o pessoal fala à boca pequena que ali vai o responsável pela queda das bolsas. Tudo ia bem com o mercado, até que o megainvestidor Psoros Pérmico encontrou-se casualmente com o Zé, durante um coquetel, e ouviu deste o enunciado da Lei de Zé. Psoros apressou-se em vender todos os seus bilhetes da loteria acionária e derrubou as cotações. As bolsas asiáticas Prada-like desabaram, na abertura do pregão que coincidiu com o fechamento daquelas, e vice-versa, seja como for. Então começou o círculo pavoroso retroalimentado do cai aqui e cai lá, cai lá e cai aqui. Desde aquele fatídico dia, Zé deixou de ser convidado para coquetéis de megainvestidores.

Zé observou que o provedor do email gratuito começou a colocar publicidade temática nos lados da janela do navegador, que, por sinal, nada tem a ver com as escotilhas do capitão. Aquele navegador é o Internet Explorer, o Mozilla Firefox ou qualquer outro da preferência do freguês virtual. Quando o Zé recebia mensagem com as ofertas relâmpago dos hotéis da Suazilândia, as laterais da janela começavam a exibir anúncios que ofertavam carvão de Shishelweni, esposas de Hhohho e cana de Lumombo. Tudo em oferta, e tudo indicado pelo rei Mswati III. Leve cinco esposas e pague por três! Era muita coincidência. Estariam a minerar os emails recebidos pelo Zé para ofertar coisas pelas quais ele poderia se interessar? Ele deixou de acessar seu provedor de email e voltou a mandar cartas. Para quem não se lembra delas, são aquelas mensagens escritas em papel - uma espécie de email real - que se manda pelo correio, dentro de um envelope real com endereço real. As cartas recebem endereços. Os mais jovens podem entender esses endereços de rua e número como uma espécie de MAC Address, já que, como este, não podem ser alterados, ao contrário do endereço IP que pode ser alterado a qualquer momento.

Após duas semanas sem acessar o email, Zé ficou curioso e deu uma olhadinha na caixa postal virtual. Nos lados da tela havia inúmeras janelas que já não ofertavam carvão ou esposas. Elas ofertavam espátulas para a abertura de cartas e línguas artificiais para lamber selos de cartas. O Zé quase enfartou. Estariam espiando pelas janelas? Haveria câmeras ocultas que vigiavam seus passos? Zé não conseguiu dormir. Fechou todas as cortinas e não mandou mais cartas. Aliás, ele não se comunicou mais, nem por telefone. Virou um ermitão urbano entrincheirado num apartamento com janelas e frestas tapadas. Retirou até a luz da geladeira. Ficou lá, no escuro, por um mês, período que ele julgou suficiente para que sumissem os anúncios temáticos no seu navegador. Foi duro agüentar a solidão, pois não assistiu à TV nem ligou o rádio.

No 31º dia, Zé ligou o computador antes mesmo de abrir as cortinas. Esperou pela inicialização e entrou no email, letra ante letra, sem fazer alarde. A tela exibiu a relação de mensagens recebidas e uma série de janelas com ofertas de velas, lampiões e baralhos de paciência.

Marcadores: , , , , , , , , , , , ,