17.11.08

492 - Quinze de Novembro

Foto: Paulo Heuser
.
Quinze de novembro
Por Paulo Heuser

Passava um pouco das 13 horas do sábado, em Garibaldi, na Serra Gaucha. Garibaldi – como a maioria das cidades montanhosas da colonização italiana – apresenta um centro histórico com ruas cujos cruzamentos não formam ângulos retos. Pitágoras ficaria louco naquele sistema viário sem ângulos opostos à hipotenusa. De nada adiantaria falar em hipotenusas, pois nenhuma rua daquele centro poderia ser representada pelas retas. Tampouco há ângulos retos.

Procurávamos um restaurante para almoçar, que ficaria exatamente no centro da cidade. Não havia como errar o caminho, diziam, bastaria entrarmos na segunda à esquerda e na primeira à direita. Só que não havia segunda à esquerda. Havia até uma terceira, porém a segunda era contramão. Parecia simples, bastaria entrarmos na terceira à esquerda e depois mais duas vezes à esquerda, descobrindo depois o que faríamos com aquela direita que ficaria, em tese, entre a segunda e a terceira. Aparentemente, a segunda era uma dupla contramão, uma rua por onde não se entrava, somente se saía - uma versão viária e inversa dos buracos negros do Universo. Rodamos por uns vinte minutos, subindo, descendo e dobrando nas esquinas que formam os ângulos inimagináveis que rejeitam o axioma do paralelismo de Euclides. Talvez a geometria elíptica e a hiperbólica tragam alguma luz ao problema. Percebemos que estávamos numa sinuca de bico – com um bico hiperbólico – quando o navegador GPS começou a gaguejar e, por fim, chorar. Choro é eufemismo, para descrever o que a pobre máquina sentia. Aquilo era um profundo lamento de total desespero. O GPS não foi útil, desde o início, pois o tal do restaurante aparentemente não tinha endereço, apenas pontos de referências de localização - defronte ao banco.

O que mais me intrigava era que todos aos quais perguntávamos sobre a localização sabiam explicar detalhadamente como chegar lá. Após mais algumas voltas, paramos. Discutíamos sobre o que faríamos, quando ele chegou. Homem na casa dos 70, muito bem-humorado, ele pareceu adivinhar a razão da nossa perplexidade. Falava com forte sotaque italiano, enquanto se debruçava sobre a janela do carro.

- Buongiorno! Piacere! Sou Giuseppe! Vocês estão procurando o restaurante. Percebi logo, pois vocês já passaram treze vezes por aqui. Vou ensiná-los a chegar lá, não se preocupem. Se hoje não fosse 15 de novembro, eu também estaria lá. Mas, como é, estou aqui.

Após essa frase muito esclarecedora, ele parou de falar e permaneceu escorado na porta do carro, apenas sorrindo. Esperávamos pela orientação, quando ele continuou:

- Vocês devem estar se perguntando sobre a razão pela qual estou aqui, afinal.

- Porque hoje é 15 de Novembro? – arrisquei.

- Sim, sim, todos sabem que hoje é 15 de Novembro e que comemoram a Proclamação da República, mas o que talvez vocês não sabem, é que estou aqui, porque as mulheres estão lá.

Minúsculas gotas de salivam brilhavam ao sol, enquanto ele falava. Ele aquietou-se novamente, talvez esperando pela nossa reação, que foi:

- Que ótimo, mas qual seria mesmo o caminho até o restaurante?

Ele pareceu ignorar a pergunta e continuou a falar:

- Sou membro da Associação. Lá não entram mulheres, a não ser em 15 de Novembro. Então, é o dia delas, e nós não podemos entrar lá. Nós ficamos o dia todo sem ter o que fazer. Por isso vocês me encontraram. Sorte de vocês, pois do contrário nunca encontrariam o restaurante. Ainda bem que vou lhes mostrar o caminho.

Ele calou-se novamente e permaneceu escorado no carro, sorrindo, enquanto as últimas gotículas de saliva caíam lentamente.

- O senhor nos levará até lá?

- Antes pudesse! Com elas lá, não posso. Mas vou explicar-lhes como chegar lá. Não há como errar. É só entrar na segunda à esquerda e na primeira à direita.

O GPS riu o riso histérico dos dementes, enquanto as gotículas de saliva do Giuseppe brilhavam ao sol de 15 de Novembro, dia em que as mulheres estavam lá, e ele, ali.

Marcadores: , , , , , , , , ,