12.11.08

490 - Catarse ou catar-se?


Fonte: Wikipedia
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Catarse ou catar-se?

Por Paulo Heuser


Certa vez li um texto do médico e escritor Moacyr Scliar, no qual ele sugeria que escrevemos como forma de catarse – o que nada tem a ver com a forma reflexiva do verbo catar. Catarse é sinônimo de purgação - método de purificação mental que consiste em revocar à consciência os estados afetivos recalcados, para aliviar o doente dos desarranjos físicos e mentais oriundos do recalcamento. Portanto, purgação não deve ser confundida necessariamente com laxação, mesmo com a presença da palavra desarranjo na definição. Trocando em miúdos, escrevemos para não ter um treco.

Se, mesmo escrevendo, temos um treco - mesmo que um treco muito pequeno -vamos ao médico. Neste admirável mundo novo, ir ao médico é o mesmo que buscar requisições de exames sofisticados. Marcamos consulta e esperamos pacientemente, já que efetivamente somos pacientes. Depois de uma conversa primordial, que servirá para identificar a região do corpo a ser analisada, saímos de lá com uma requisição de exames que espantariam Albert Einstein. Com sorte, fazemos uma tomografia computadorizada, com muita sorte, uma ressonância magnética nuclear, o mais alto píncaro dos exames ditos não-intrusivos. Se submeter o sujeito a um campo magnético muito maior do que o do planeta inteiro, e a pulsos de radiofreqüência que provocam a ressonância de todos os seus átomos de hidrogênio é método não-intrusivo, sou mico de circo nuclear.

Esses exames sofisticados exigem a imobilidade total do paciente, que, por sinal, fica impaciente. As posições estranhas as quais somos submetidos não ajudam muito.

- Deite-se de bruços sobre a maca, estendendo o punho esquerdo em ângulo de 125 graus Celsius a partir da mediatriz perpendicular ao rádio e ao úmero, sem que o escafóide fuja do campo central do colimador. A perna esquerda deverá ficar dobrada sobre a direita, em ângulo reto, com o pé direito paralelo ao chão, considerado o versor x, enquanto o pé esquerdo forma ângulo reto com a origem do Universo. Ah, lembre-se de não respirar durante o exame.

- Quanto tempo leva o exame?

- Pouco. De cinco a 40 minutos.

Feitos os exames, interpretados os resultados, lá vamos nós, felizes da vida, por sobrevivermos ao exame, a cantar pelo shopping, enquanto carregamos uma sacola enorme com o nome do laboratório impresso em fonte Arial 40. Bem, devo concordar que, em pelo menos um aspecto, as coisas melhoraram. Não pedem mais exames de fezes, como antigamente. Aquilo era desumano, a começar pelo tamanho do pote. Aqueles potes eram inconfundíveis, mesmo quando escondidos no interior do saco de papel pardo. Resfriado, apoplexia, hérnia de disco, escoliose, unha encravada, esquizofrenia, tudo levava ao exame das fezes. Pelo menos não escreviam o nome do laboratório no envelope pardo. O pessoal fingia que não sabia o que havia lá dentro.

A insegurança vem modificando os hábitos clínico-analíticos das pessoas. Hoje conheci um sujeito que carrega um notebook numa sacola com nome de laboratório e com os dizeres: Exame de Fezes Coletivo.

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