485 - O lado B da Feira do Livro - 1a. Parte
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O lado B da Feira do Livro – 1ª Parte
Por Paulo Heuser
Minha primeira Feira do Livro não foi essa da Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Foi a FIEL – Feira Intercolegial Estudantil do Livro, em Santa Cruz do Sul, lá pelos idos de 1970, se não me falha a memória. Essa feira – como o próprio nome indica – agregava pessoal de todos os colégios da cidade. Era uma feira tocada pelo trabalho voluntário dos estudantes coordenados pelo Padre Silvério Schneiders.
Até hoje não sei por que me escolheram para fazer as vezes de gestor de pessoal da dita empreitada. Eu deveria escolher os voluntários para trabalharem nas bancas de venda dos livros. Logo descobri que não seriam os voluntários, e sim, as voluntárias. Não que não houvesse candidatos. O problema foi a terrível pressão que sofri por parte dos rapazes. – põe a Fulana, põe a Cicrana, põe sei lá quem! – diziam. Fui perseguido pela rua pelos adoradores de uma ou de outra, que queriam vê-las ali, atrás do balcão, durante horas. Confesso que me deixei levar pela pressão, e aquela FIEL deve ter sido a mais fiel da história ao sexo feminino.
O que parecia ser barbada, não foi. Eu deveria anunciar a escalação das equipes. Subitamente, me vi perante uma multidão de adolescentes ansiosos, em pleno salão nobre do Colégio Sagrado Coração de Jesus – o das freiras -, tendo que falar para toda aquela gente. Eu, um luterano, em pleno Colégio das Freiras! Eu tinha a forte impressão de que as freiras ao fundo me olhavam de modo estranho, como se dissessem: Vade retro! Até aquele dia, minha experiência de falar em público se resumia às aulas de Português do Prof. Osvino, que promovia eventos onde os alunos do Colégio Mauá liam textos para os demais alunos da mesma série. Ajudou muito, mas lá no Colégio das Freiras eu estava entre estranhos, em sua maioria, e, o que era mais aterrador: eram católicos. As freiras continuavam me olhando de modo estranho. Estaria a Rosa de Lutero estampada na minha testa?
Enquanto alguém dava os avisos gerais, tentei me preparar psicologicamente para falar àquela multidão. Porém, eu estava nervoso, muuuuito nervoso. Meus joelhos tremiam, o papel entre meus dedos servia para abanar todos à mesa. Meu rosto deveria estar extremamente rubro. Pessoas nervosas costumam manipular objetos como forma de descarregar a tensão. Eu fiz o mesmo e escolhi um enorme grampeador de papéis, que estava sobre a mesa, para aliviar minha tensão. Eu grampeava o ar sob a mesa. Pessoas nervosas fazem coisas estúpidas. O grampeador escorregou da minha mão suada e quase caiu. Num ato reflexo consegui segurá-lo. Pena que grampeei meu dedão da mão direita. Uma dor lancinante subiu desde o dedão grampeado. Para piorar tudo, o grampo permaneceu gravado no infeliz dedão. Alguém pode imaginar mico maior do que grampear o próprio dedão, no palco do Colégio das Freiras, na frente daquela multidão? Com freiras e tudo? Doía muito, mas eu tentei manter a pose.
Uma jovem que andava de Lambretta – uma predecessora italiana da scooter japonesa –, de cujo nome não me recordo, me salvou. Ela percebeu a situação e me levou para uma sala ao lado. Uma freira providenciou um alicate e retiraram o grampo do meu inchado dedão. O alívio foi tanto, que voltei e dei meu recado àquela platéia, sem maiores dificuldades.
Acreditam que o ecumenismo surgiu da Conferência Mundial de Edimburgo, em 1910. Para mim, começou em 1970, no Colégio das Freiras. Uma jovem e uma freira me despregaram da cruz do meu pavor de falar ante àquela multidão.
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