21.10.08

479 - Trancas para quebra-vento

Foto: Paulo Heuser
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Trancas para quebra-vento

Por Paulo Heuser


Pobre do Torto. Não sei se ele já nasceu torto ou foi entortando aos poucos. Mas, desde que eu me lembro por gente, o Torto anda torto. Ele marcha pela rua num estranho passo de ganso unilateral. O resultado é muito curioso. A meninada corria atrás dele, em outros tempos, imitando o passo. Vinha o Torro, na frente, capitaneando aquele séquito de falsos tortinhos. Hoje o Torto anda sozinho. A meninada não faz mais esse tipo de traquinagem, talvez por medo, talvez por não acharem mais graça. O Torto anda bem-vestido, sempre usando gravata sobre camisa impecavelmente branca. As calças sociais e os sapatos remetem aos executivos dos anos 60. Dizem que o Torto mora com uma tia velha. Alguém precisa cuidar dele, pois não é somente o andar dele que é torto. Algo também não funciona bem na cachola dele. Ele é diferente. Não sei o que o Torto fazia antigamente, mas sei que hoje ele vende trancas para quebra-vento dos carros. Fuscas, Brasílias e Opalas. Passa o dia marchando pela rua com o mostruário de trancas. Não consegue vendê-las, porém se ocupa. O pensamento do Torto é alternativo, digamos assim, mas ninguém pode chamá-lo de pouco inteligente. Ele é apenas diferente, torto.

Pois o Torto vinha marchando torto quando viu uma multidão parada em frente a uma vitrina. Assistiam pela TV ao discurso do Presidente, que informava ao povo da necessidade de compra de parte das empresas em dificuldades econômicas devido à crise da bolsa. O Torto parou e esticou o pescoço, tentando ver algo sobre aquela massa. Um a um foram dando lugar, quando viram que era o Torto. Os tortos têm certos privilégios. Logo o Torto se viu cara a cara com o Presidente.

- Essa crise é momentânea e em nada afetará nosso País, pois fizemos a lição de casa. Não há o menor motivo para preocupação, já que nada temos a ver com a turbulência dos mercados externos. Porém, apenas como medida de extrema precaução contra uma muito pouco provável interferência externa na nossa economia, vamos comprar parte das empresas em dificuldades. A platéia dividiu-se como sempre. Metade do pessoal protestou contra o uso do dinheiro público para salvar empresas privadas, e o restante apoiou o que consideraram medida imprescindível para preservar a economia nacional. Uma mulher mais exaltada distribuía bolsadas nos adversários ideológicos. Foi a bolsa digladiando no eterno conflito entre o capital e o trabalho.

O Torto permaneceu lá. Desligou-se do que ocorria ao redor. Não chegou a perceber a chegada do choque, que dispersou a multidão. Ninguém bateu no Torto porque torto tem certos privilégios. Então, do nada, o Torto falou a primeira frase da sua vida:

- Ah, que pena! Assim o Governo não poderá mais se dedicar tanto àquilo que sabe fazer tão bem: cuidar de saúde, segurança e educação.


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