470 - Brócolos com o quê?
Foto: Wikipedia
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Brócolos com o quê?
Por Paulo Heuser
Miriam conseguiu esse emprego na agência que avalia a conformidade dos alimentos com as normas técnicas aplicáveis. Pudera, estudou feito uma louca - Engenharia de Alimentos, MBA em marketing e todos aqueles cursos de extensão em desinibição oral, biofidbéc, programação nervolingüística, etc. Ela tirou o primeiro lugar no concurso, e superou 214.369 candidatos à vaga.
Colocaram Miriam a trabalhar com Rodolfo, o velho lobo do mar de substâncias simples e compostas que compõem nossa saudável alimentação do dia a dia. Rodolfo conseguia distinguir quase que qualquer meleca só pelo cheiro. Ele chegou cedo ao laboratório, naquela manhã de segunda-feira, dia de receber a nova funcionária que já o aguardava. Após as formalidades e apresentações de praxe, Rodolfo mostrou para Miriam o que realmente interessava: a máquina de café. Encerrado o que interessava, foram ao trabalho. Analisariam um novo modelo de lasanha de brócolos pronta para o consumo. A coisa vinha numa caixa vermelha muito bonita.
- Tem manual de instruções! – surpreendeu-se Rodolfo.
Rodolfo nunca havia visto um alimento com manual de instruções intitulado como tal. Às vezes a fábrica anexava um folhetinho mercadológico, mas nunca um manual.
Miriam tentou mostrar confiança quando disse:
- O mercado está a exigir maior comprometimento com a qualidade.
Rodolfo lhe devolveu um olhar que falava por si só. Primeiro dia, tudo bem. Ela comentou, com a voz um pouco trêmula:
- Na caixa há um alerta em grandes letras amarelas. Avisa para não abrir a caixa antes de ler atentamente o manual de instruções.
- Curioso. Por falar nisso, como se abre essa caixa? Não há abas laterais... – Rodolfo virava a caixa inspecionando-a por todos os lados.
- Aqui está! Na página 29 do manual o texto explica que as aqueles ressaltos no lado direito da caixa devem ser pressionados ao mesmo tempo. Ao ouvir um sibilo suave, desencaixar a tampa para trás e removê-la. Se o sibilo for forte, de forma alguma, nunca mesmo, retire a tampa. Nesse caso chame 0800-cól-naine-uan-uan.
- Humpf... Essa é nova.
- Menina, veja a composição química.
Miriam não sabia se ficava lisonjeada ou ofendida por chamarem-na de menina.
- Na página 97 há uma tabela de especificações técnicas. Eu não pensei que fosse tão completa, pois traz até o ponto de fusão e a meia-vida (?) dos componentes.
- Deve ser alguma nova norma xenofóbica européia. – disse Rodolfo.
Ele abriu a caixa, conforme as instruções, e ia colocá-la no forno de microondas, para descongelamento.
- Pare! – ordenou Miriam, num tom de voz que surpreendeu Rodolfo.
- O que ouve? – Não era comum uma nova funcionária dar um grito desses.
- Na página 2 há um alerta quanto aos riscos de se aquecer o produto à temperatura superior a 150⁰C.
- Como se descongela isso? – Rodolfo parecia intrigado.
- Na página 3 mandam armazená-la em local seco e seguro, observando espaçamento mínimo de 332 mm entre caixas. Estranho, não é?
Colocaram a lasanha em banho-maria, a 40⁰C, e foram à máquina do café. Quando retornaram, a lasanha já estava aparentemente descongelada. Mais do que isso, ela já estava quente.
- Nooossa! Essa é novidade! – Rodolfo havia de reconhecer que o pessoal andava mais criativo.
- A tampa interna abriu-se sozinha. – comentou Miriam. – Na página 18 consta que a tampa interna é feita de zircaloy-4. Mais um daqueles nomes criados pelo marketing!
Rodolfo colocou a lasanha num prato e a posicionou em frente a si para a prova do cheiro. Ele fechou os olhos, trouxe o vapor com a mão em concha, inspirou profundamente e demorou apenas três segundos para sentenciar:
- Que diabo é isso?
- Na caixa dizem que é lasanha de brócolos. – disse Miriam.
- Vamos fazer uma análise do que há aí dentro.
- O manual tem um desenho que descreve a lasanha, camada por camada.
- Ótimo, a primeira é do quê?
- Aqui diz que é um anteparo de proteção.
- Para proteger quem, contra o quê? – Rodolfo tentou cheirar novamente a coisa.
- Na página 19 dizem que é uma camada feita de samário, um moderador que absorve nêutrons... Não dizem se protege a lasanha ou o ambiente...
- Essas coisas verdes, logo a seguir, são os brócolos?
- Hum... página 20... aqui diz que é um revestimento térmico feito com dióxidos de silício e zircônio e com trióxido de alumínio.
- Céus! Inventam cada coisa... O que é aquela camada amarela, no meio da lasanha?
- Está descrito na página... Cá está, na página 22. É o elemento físsil.
- Elemento físsil?! Tem certeza de que isto é uma lasanha de brócolos?
- Bem, o manual, na página 1, descreve isso como sendo uma pastilha de combustível para o submarino nuclear nacional.
- Mas a caixa não diz que é uma lasanha?
- Dizer, diz, mas a fábrica é a mesma, a Nuclemassas. Talvez tenham trocado as embalagens. Colocaram a pastinha de urânio na caixa de lasanha de brócolos. E agora? O que faremos?
- Calma, muita calma! – Rodolfo parecia querer controlar o pânico.
- A quem devemos avisar?
- Calma! O manual não descreve exatamente o que há dentro da caixa?
- Bem, sim.
- Então está em conformidade com a norma técnica. Pode liberá-la, e vamos ao café!
Marcadores: alumínio, brócolos, dióxido, Fissão nuclear, lasanha, pastilha de combustível, samário, silício, trióxido, urânio, zircaloy, zircônio
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