25.9.08

468 - A classe média XIV - O dia em que o mundo deveria ter acabado



Fonte: Wikipedia
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A classe média XIV – O dia em que o mundo deveria ter acabado

Por Paulo Heuser


Padre Antão tentava descobrir o que seriam as hóstias diet mencionadas na carta recebida da Capital. Tampouco entendera o que seriam as hóstias sabor pizza mencionadas na correspondência anterior. Quem entendia de hóstias era a beata Dona Clotilde. Era da casa dela que saíam as ditas cujas. O padre jogou a carta no arquivo, junto com as anteriores que ofereciam vinho de missa sem álcool. Se o Jota lá de cima quisesse que o vinho não tivesse álcool, teriam servido suco de uva aos treze à mesa. A liturgia da Paróquia do Município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média não-estatística, não agregava modernidades dessa espécie. Noutro dia chegara uma carta oferecendo um purificador de água benta. Se for benta, por que purificá-la?

O crescido terneiro mugiu, talvez de purificação, talvez de fermentação.

Às 11 horas o padre dirigiu-se ao Bar, Restaurante e Borracharia 12 Irmãos, onde o Estranho era esperado. Traria comunicado urgente do MINES – Ministério da Especulação. Pontual feito relógio quebrado, o jipe do MINES adentrou a vila, espalhando barro para todos os lados. A bordo, além do Estranho, dois homens de terno e gravata. Eles entraram no 12 Irmãos e foram recebidos pelo Sétimo, o Prefeito, os 10 irmãos sobreviventes - secretários e vereadores -, pelo Padre Antão e pelo Linoberto, atual Secretário Especial Para Assuntos Estranhos. O Sétimo serviu da “boa”, para todos os presentes. Cortesia da casa, insistiu ele.

- O que os traz para o Lado de Cá do Cinamomo? – perguntou Linoberto.

- Em primeiro lugar, eu gostaria de lhes apresentar o Mr. Alan Shitspan, representante do governo norte-americano, e o Sr. Macro Econômio, Ministro da Especulação do Governo. Vamos diretamente ao assunto que nos trouxe até aqui. Como vocês já devem ter visto, houve um movimento atípico por parte dos agentes financeiros norte-americanos, que apontam para uma não-realização do retorno dos dividendos das ações. – respondeu-lhe o Estranho.

O representante do MINES tomou a palavra:

- Estamos aqui para tranqüilizá-los. Viemos pessoalmente porque não foi possível contatar qualquer agente intermediário do mercado. Não há corretoras de valores mobiliários por aqui?
- Não, não há, pois o pessoal não aplica em ações. – disse Linoberto.

- Não é possível, nem em fundos de ações? – os engravatados estavam perplexos.

- Não, não há nem banco por aqui.
- (?) – Os visitantes pareciam não acreditar.

- Mas, mas, como vocês pagam suas contas? Onde depositam o dinheiro? – até o Estranho olhava estranhamente, enquanto o crescido terneiro mugia, talvez de captação, talvez de liquidação.

- O rapaz do leite movimenta as contas da Prefeitura, lá na cidade, e aqui, não há contas. Pagamos em dinheiro ou mercadorias. – Linoberto divertia-se com o olhar de espanto deles.

- Vocês trocam commodities (mercadorias)? – Mr. Shitspan formulava as perguntas traduzidas pelo Econômio.

- Sim, aqui chamamos isso de escambo.

- Bem, de qualquer forma, estamos aqui para tranqüilizá-los em nome do Governo e do governo norte-americano. O Governo garante que não seremos atingidos pela crise! – continuou Econômio.

- Então por que estão aqui? – perguntou-lhe marotamente Linoberto.

- Para garantir, em caso de um impossível reflexo local do cenário norte-americano, que nada atingirá nossa economia. Nós garantimos. - Econômio começou a transpirar.

- Repito, nada poderá nos atingir, pois essa crise ficará circunscrita ao mercado global, no qual não estamos inseridos, de forma nenhuma!

O Sétimo interveio:

- Ah, o rapaz do leite também nasceu com aquele negócio meio apertado, então fizeram a tal de circunscrita nele. – ele mostrou que estava por dentro do assunto.

Nem o Estranho nem o Econômio conseguiram traduzir isso para o Mr. Shitspan.

- Vocês não participam de nenhum pregão? – Econômio insistia.

O Sétimo já se sentia mais à vontade para opinar. Era sempre assim, ele começava meio tímido e depois ia liberando o verbo, agregando muito à conversa.

- A gente guarda alguns no almoxarifado, para quando alguém precisa pregar o telhado. Senão, o rapaz do leite compra na cidade e traz.

Mr. Shitspan já estava impaciente, pois a tradução simultânea falhava.

- Não posso acreditar que vocês não investem em SAs, pois todo mundo faz isso! – Econômio já aparentava indignação.

- Ésse o quê? – perguntou o cada vez mais à vontade Sétimo.

- SA - Sociedade Anônima! – o homem de terno estava próximo de perder a paciência.

- Ah, não, nós até tínhamos a SCELCC – Sociedade Cultural Esportiva do Lado de Cá do Cinamomo -, mas não foi adiante, pois o pessoal não se interessou. – o Sétimo fora presidente da SCELDCC.

O Estranho havia distribuído em guia para investimento seguro na bolsa de valores. O Sétimo colocou os óculos e leu em voz alta e arrastada:

- Valor venal. Venal. – ele parecia ponderar a expressão, quando lhe ocorreu algo, pois levantou as sobrancelhas, enquanto exclamava:

- Ah, foi aquela pereba que o rapaz do leite pegou no dia em que dormiu na cidade. Foi uma doença venal, coisa muito feia de se ver. O bicho pingava e ele gemia.

O crescido terneiro mugiu, talvez de aplicação, talvez de indexação.

Mr. Shitspan exigiu explicações dos seus anfitriões, pois nada entendia, e precisava retornar aos EUA para fazer o relatório ao Barrac O’Brama. Não as obteve antes de o Sétimo ler outra coisa no livrinho da bolsa.

- Underwriting, como é que se pronuncia isso? – ele ouviu a resposta e arriscou umas três vezes, antes de tentar novamente:

- Anderrráitin... Esse é o barulho que a moça da margarina fazia quando lançava pela janela, enjoada que estava. Parece que ela teve gêmeos.

Ao meio-dia interromperam a reunião para o almoço de negócios. Arroz, feijão, carne de panela e salada. Mr. Shitspan perguntava o que era aquilo, que ele nunca havia comido.

- É comida. – respondeu-lhe o Estranho.

Linoberto encontrou Maria ao lado da paróquia. Ela o esperou com aquele sorriso que fazia a vida valer a pena. O Sol já varria a meia-tarde e dava brilho especial aos cabelos dela, que balançavam ao vento.

- E ai, Lino, qual foi o assunto de hoje?

- O Estranho trouxe mais dois estranhos, um era do Governo, outro do governo dos EUA. Eles vieram falar da crise que destruiu a economia deles.

- O que eles queriam?

- O estranho do Governo queria nos tranqüilizar. Disse que a crise de lá não chegara até aqui.

- Você acha que chegará?

- Alguma coisa deve chegar. Talvez comprem menos leite, mas no geral, não devemos sofrer muito, desde que não façamos negócios com o outro lado do cinamomo. Eles têm um jeito estranho de fazer negócios. É uma espécie de loteria em que compram e vendem papéis que nada valem. Depois, choram como crianças quando descobrem que os papéis não valem nada.

- Gente esquisita, não é, Lino?

- É, Maria, temos que manter o cinamomo de pé, assim eles não contaminam nossa economia.

- O que o norte-americano veio fazer aqui?

- Não sei, mas pelo que sei de inglês, o homem queria voltar logo à Capital para telefonar ao tal de Barrac O’Brama, para avisá-lo de que encontrou um novo modelo econômico que resolverá todos os problemas deles.

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