19.9.08

464 - O tesouro toscano


Foto: Paulo Heuser
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O tesouro toscano

Por Paulo Heuser


Para se conhecer uma terra, deve-se saboreá-la. Antes que alguém coma um punhado dela, esclareço: coma dos pratos típicos da região. A Toscana é uma região que merece ser conhecida não apenas pelas artes, mas também pela mesa. E haja mesa! Entre paisagens bucólicas, duomos, museus e torres retas ou tortas, a culinária toscana sobressai-se, e traz de arrasto os vinhos chianti e montalcini.

Uma das lembranças que tenho da infância é a do meu pai vindo à Capital. Ele dava uma passada no finado Armazém Riograndense, loja de especiarias que ficava na Otávio Rocha. Naqueles tempos pré-supermercado, os mercados vendiam arroz, feijão e batatas, tudo na tulha. Qualquer coisa diferente vinha do Armazém Riograndense. Acompanhei meu pai numa dessas incursões, quando ele comprou um vidro de champignons. Eu passei toda viagem de volta imaginando o sabor daquelas pequenas coisinhas levemente amareladas. Em casa, veio a prova. Foi ato solene. E foi uma das maiores decepções da minha vida. Achei pavoroso o gosto daquelas coisas. Com o tempo, pude provar os cogumelos Paris frescos que surgiram por aqui no final dos anos 70. E gostei. O que antes era estranho, passou a ser lugar comum. O consumo de cogumelos no Brasil é de 30g per capita ao ano. Na Itália ultrapassa 1,3 kg e na Alemanha alcança 4 kg ao ano por pessoa.

Um dos pratos típicos da toscana é o fungo (cogumelo) porcino – Boletus edulis -, considerado o Rei dos Cogumelos. Na França, onde também é apreciadíssimo, chama-se cèpe de Bordeaux. O porcino acompanha principalmente as massas e risotos, mas pode também ser encontrado nos molhos de carnes. Os italianos têm a felicidade de encontrá-los frescos, principalmente em outubro. Nós encontramos esses cogumelos apenas na forma desidratada, os funghi secchi porcini. Esses cogumelos apresentam aroma e sabor característicos, levemente adocicados. São completamente diferentes dos funghi secchi chilenos, de aparência escura e gosto mais amargo. Infelizmente, não se diferenciam somente em aroma e sabor, diferenciam-se muito também no preço. Esta é a má notícia. A boa, é que com 50g de funghi já se pode fazer um bom prato para seis pessoas, devido aos intensos aroma e sabor apresentados pelo cogumelo italiano.

Noite dessas tirei meu tesouro toscano do armário da cozinha. Foi trazido por alguém que cruzou o Mar Tirreno, o Oceano Atlântico e aquele brejo que fica atrás do Salgado Filho. Preparei apenas dois pratos, bavette al pesto genovese e penne ai funghi. Na Itália, seriam due primi piatti – dois primeiros pratos -, pois seriam seguidos pelos segundos pratos, à base de carne ou de frutos do mar. O interessante é observar que o primo não é o primeiro, pois antes servem os antipastti - entradas. Como o segundo prato, que é na verdade o terceiro, não é o último, depois dele servem os contorni – geralmente saladas -, e, ufa!, dessert – sobremesa. E lá se vão três ou quatro horas à mesa da mamma ou da nonna. Então é quase hora do jantar. Entende-se porque nada funciona na Itália aos domingos. Nem nos outros dias da semana, por sinal. Porém, me limitei a dois primi piatti. Servi primeiro o penne ai funghi secchi porcini, temeroso de que o manjericão do pesto matasse o sabor delicado do prato seguinte.

Cometi um pecado que me levaria à fogueira dos hereges, na opinião da nonna. Só que a nonna recebe a pensão dela em Euros. Eu, não. Com um número maior de convivas, estendi os funghi secchi porcini através de um recurso herege, porém válido. Acrescentei duas bandejas de cogumelos ostra (Pleurotus ostreatus), encontráveis em qualquer supermercado, a preços acessíveis. São cogumelos frescos, também conhecidos como shimeji branco. Eles apresentam aroma e sabor muito suaves, não competindo com os porcini. Porém, dão volume ao molho. Ninguém se queixou do resultado. Se interessar, segue a receita, só não deixem a nonna saber:

Ingredientes:

Massa de grano duro penne, ou outra da preferência;
50g de funghi secchi porcini;
2 bandejas de cogumelos ostra (shimeji branco) frescos;
1 cebola pequena;
2 dentes de alho;
Manteiga;
Azeite puro de oliva;
Salsinha;
Sal;
Pimenta do reino;
Creme de leite fresco (nata).


Modo de preparo:
Deixar os funghi secchi porcini de molho em água morna suficiente para encobri-los, para reidratá-los, por 30 minutos. Nesse ponto, o aroma já encherá o ambiente. Findo esse período, retirá-los da água e espremê-los com a mão, de modo que o excesso de líquido escorra no recipiente onde estiveram de molho. Pelo amor de Deus! Não jogue fora aquela água! Aquele é o pipi dos deuses! Esse líquido milagroso pode ter variados destinos, se coado através de um pano para retirar eventuais resquícios de terra trazidos pelos funghi. Eu optei, naquela noite, por preparar um creme de cogumelos, que servi como primo di tutti primi – primeiro dos primeiros. O sabor é incrível, ainda mais quando se pinga um pouco de azeite de oliva lá dentro.

Voltando à massa, picar bem a cebola e refogá-la na manteiga com um fio de azeite. Quando ela estiver no ponto de dourar, acrescentar o alho picado e pimenta do reino moída. Cuidado para não deixar o alho queimar. Em seguida, acrescentar os cogumelos, tanto os porcini como os shimeji, e deixar refogar por 3 minutos. Salgar a gosto. Se ficar muito seco, acrescentar um pouco da água onde os cogumelos foram reidratados (o pipi dos deuses). Acrescentar uma ou duas colheres de sopa do creme de leite fresco, conforme desejar um molho mais ou menos aveludado. O creme de leito fresco não talha ao ferver. Pronto. Acrescentar a massa cozida al dente, espalhar um pouco de salsinha e parmesão, ou grana, sobre o prato. A seguir, feche os olhos e vá comer numa mesa ao ar livre do Da Gherardo, na Via dell’Anfiteatro, em Lucca, na Toscana. Não estranhe se houver um chinês sentado ao lado. É o shimeji.



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1 Comments:

At sexta-feira, 19 setembro, 2008, Blogger José Elesbán said...

Eis uma crônica saborosa em mais de um sentido!

 

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