455 - Quando a ciência salva a religião
Fonte: Wikipedia
Quando a ciência salva a religião
Por Paulo Heuser
Ciência e religião não trilham caminhos exatamente paralelos. Há a velha briga entre criacionistas e evolucionistas, que lembra a briga entre capitalismo e o comunismo, com suas variantes. Contrariando a Natureza, que sempre procura o equilíbrio, essas doutrinas têm seguidores fanáticos, que nunca chegarão a um acordo.
Recebi um e-mail que parece ter sido escrito por um adepto inconteste da ciência. Esta leva vantagem, em um aspecto insofismável. A metodologia científica evolui desde os tempos da Grécia clássica, com o nascimento da dialética, como precursora da lógica. Galileu, Bacon e Descartes tiveram papéis fundamentais na evolução do pensamento científico que escolhe teorias conforme sua comprovação experimental. Ou seja, não basta imaginá-lo, tem de prová-lo. A estatística aplicada aos métodos experimentais mostra os intervalos de confiança que dão credibilidade aos experimentos. Cabe dizer que sofisma é um pensamento aparentemente válido que leva a conclusões refutáveis.
A religião não apresenta método científico formal, mas conta com a fé. Se por um lado não conseguimos explicar matematicamente um milagre de cura, nem conseguimos reproduzi-lo experimentalmente com estatística aceitável, a crença nele pode parecer insofismável àquele que é objeto da crença. Se o sujeito padecia de um terrível mal, e se vê curado da noite para o dia, pouco lhe importa o intervalo de confiança estatístico. Ele é A amostra. É o ponto único no gráfico. Tampouco lhe interessa qualquer equação matemática que demonstre sua cura.
Então vamos ao e-mail. O texto é o seguinte:
“No início da 1ª guerra sino-soviética (1904) os padres ortodoxos russos reuniram na catedral de São Pedro e pediram à Deus Todo Poderoso a destruição do Japão. Em 1923 aconteceu o 1º Grande Terremoto japonês equivalente à umas 10 Hiroshimas que quase acabou com a vida dos zoinhos. Partindo dessas premissas e do delay da resposta divina os astronomos russos calcularam que Deus, se existisse, mora a 4,0 anos-luz daqui, a meio caminho de Andrômeda. (.....) Ensinem às crianças quando forem para a aula de religião, isto é educação.” (Sic)
Suprimi, propositadamente, por questões de espaço, algumas informações do corpo do texto onde demonstravam como chegaram a tal conclusão. Multiplicaram o número de anos decorridos entre os dois eventos pela velocidade da luz – 300 mil km/s – e obtiveram 3,997 anos-luz como distância que Ele estaria da Terra. Ano-luz é uma medida de distância astronômica que representa a distância percorrida pela luz em um ano, equivalente a 9,46 trilhões de quilômetros.
O método dialético segue a tese, a antítese e a síntese, que é, em última instância, a acomodação das melancias durante o andar da carroça. No caso, a tese afirma que Ele estaria a 4,0 anos-luz da Terra porque a luz levaria metade disto para ir e metade para voltar. Identifico muitas melancias amontoadas de forma instável, num dos cantos da carroça. Assumindo que o Universo iniciou do Big Bang, e que a Lei de Hubble é válida, o que de fato é, sabe-se hoje que a explosão primordial ocorreu a mais ou menos 13,7 bilhões de anos. Nada mais lógico, portanto, supor que Ele estaria lá, pela simples razão de não existir outro local conveniente para estar, pois não havia lugar antes do Big Bang, apenas a singularidade. Supondo que após ela, Ele não tivesse nada a fazer em local específico, já que o Universo era apenas uma gosma de melecas químicas em expansão, é de se supor que Ele ficaria no centro do Universo. Uma antítese desta antítese poderia argumentar que Ele viera olhar de perto a Sua Criação, mantidos apenas uns poucos anos-luz de prudente distância. Em contraponto, eu rebateria que não seríamos nós apenas as criaturas. Seria muita presunção supor que Ele estaria nos dando atenção exclusiva. Assim, a distância até ele seria de 13,7 bilhões de anos-luz menos os 19 anos entre os eventos. Se isto não for suficientemente confuso, há mais.
A idade do Universo passou a ser mensurável a partir da Lei de Hubble (1889-1953), astrônomo norte-americano que demonstrou, em 1929, como calcular a distância até galáxias mais distantes, a partir da velocidade com a qual se afastam de nós. Posteriormente, em 1946, Georgy Gamow (1904-1968), russo naturalizado norte-americano, deu suporte à teoria do Big Bang. Partindo dessas datas, verificamos que os padres russos que oraram em 1904, pela destruição do Japão, não poderiam conhecer nem a Lei de Hubble, nem a teoria do Big Bang. Já Ele, por outro lado, certamente lia a Science e a Nature – revistas científicas que publicam essas teorias. Aliás, para que lê-las, se ele teria riscado o fósforo que gerou a explosão primordial?
Pelo cálculo demonstrado no e-mail, os padres russos teriam se utilizado de rezas eletromagnéticas, que viajariam a velocidade da luz, para atingi-Lo. Ele teria enviado o comando de terremoto no Japão também através de ondas eletromagnéticas, como as da luz. As ondas mecânicas, como o som, não se propagam no vácuo. Se Ele estivesse no centro do Universo, estaria a 126,9 trilhões de quilômetros da Terra, distância percorrida em dobro, entre a reza eletromagnética e o terremoto de ondas mecânicas. Com essa tecnologia Ele levaria 13,7 bilhões de anos para ouvir a reza e outro tanto para sacudir o Japão. Os padres russos estariam esperando até hoje, e continuariam por muito mais. Como algo está bem furado nesta tese, cabe negá-la.
A velocidade do vácuo é constante, disso ninguém duvida, nem Ele que a criou – Fiat lux! Portanto, só há duas explicações para que Ele tenha feito tudo em apenas 19 anos. A primeira, da presença casual Dele na vizinhança, já foi filosoficamente refutada. A outra é mais óbvia. Ele estaria não apenas na vizinhança, mas em toda parte. Ou seja, Ele seria Onipresente.
Os astrônomos russos poderiam questionar as razões para que Ele houvesse esperado 19 anos para atender ao pedido dos padres russos. Então, podemos enumerar algumas hipóteses. Ele poderia estar muito ocupado com outra coisa, em outro lugar, apesar de isto ir de encontro à onipresença. Santo Agostinho (354-430) não salvaria esta tese, pois se limitou a explicar o que Ele fazia antes da criação do Universo. Ora, se não havia Universo, não havia tempo, portanto o conceito de antes não faria sentido. O caso russo-nipônico foi diferente, pois já havia tempo, há muito tempo. Talvez Ele houvesse terceirizado o terremoto. Então as empreiteiras subcontrataram outras, que estouraram várias vezes orçamento e prazos, e deixaram o serviço incompleto.
De certeza nisso tudo, apenas uma: em cima de um grande sofisma pode-se produzir um ainda maior!
Marcadores: antítese, dialética, Edwin Hubble, Georgy Gamov, guerra Russia Japão, idade do Universo, Santo Agostinho, sintese, sofisma, teoria do Big Bang, tese, Universo
2 Comments:
Pois é. O russo-nipônica aqui em baixo, que eu chamaria de russo-japonesa foi aquela guerra no início do século XX.
Quem te enviou o correio veio com uma guerra sino-soviética. Sino, apesar de sino, e dos sinos, que Hemingway perguntou por quem eles dobram, é relativo aqui a originário da China. Bom, e embora devido à derrota dos russos, tenha havido uma insurreição na Rússia, em 1905, dando origem aos "sovietes", a União Soviética só viria a ser fundada em 1917, quando afinal os bolcheviques chegaram ao poder.
[]
Por outro lado, quanta coisa, não?
Postar um comentário
<< Home