23.8.08

448 - A classe média XI - O estrangeiro


Cachaçaria Fingerhut. Foto: Paulo Heuser
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A classe média XI – O Estrangeiro

Por Paulo Heuser


A vida corria tranqüila, no Lado de Cá do Cinamomo. Nada denunciava o que estava por vir. Aquele dia seria diferente de qualquer outro, e seria contado em prosa - pois em verso seria coisa de frouxo - para as gerações seguintes.

O crescido terneiro mugia de tédio, quando Padre Antão foi se espreguiçar defronte a igreja. Dona Clotilde vinha levantando poeira, a bordo do seu poderoso Renault Dauphine, que um dia foi verde esmeralda, percorrendo intrepidamente os 87 metros que separam sua casa da Paróquia do Lado de Cá do Cinamomo.

- OVNI, OVNI, OVNI!!! – gritava o sétimo dos 12 irmãos, proprietários do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos, enquanto apontava para o céu. Padre Antão olhou na direção para onde o Sétimo apontava, sobre o telhado do salão paroquial, e viu algo que refletia o sol da manhã. Algo metálico, com certeza. O padre apressou-se em buscar o binóculo Carl Zeiss, que seu avô trouxera como lembrança das trincheiras da Alsácia. Através de uma pequena área clara, em meio aos fungos que dominavam as lentes, Padre Antão conseguiu vislumbrar algo que se assemelhava com um balão prateado. Sob ele, dependurava-se uma espécie de cabine esférica, fazendo as vezes de gôndola. A nuvem da poeira levantada pelo bólido da Dona Clotilde encobriu a cena.

- Não é um OVNI! É um balão! – declarou Padre Antão.

Quando a poeira assentou, já se via o balão em detalhes, inclusive a bandeira dos EUA que cobria a lateral da cabine esférica. Logo pareceu evidente que a trajetória o levaria ao alambique do Sétimo, que saiu em louca disparada, temendo pelo pior.

O crescido terneiro mugia, talvez de admiração, talvez de apreensão.

Padre Antão passou a tocar o sino da igreja, chamando o pessoal que estava na roça, como Linoberto. Para alívio de todos, principalmente dos 12 irmãos, a cabine do balão passou raspando sobre o telhado do alambique, indo estatelar-se no potreiro do Sétimo. O pessoal apareceu de todas as direções. Aquilo era um grande evento, sem dúvida. Muitos deles nunca haviam visto um balão. Ainda mais assim, todo prateado.

A abertura da porta da cabine ofuscou muita abertura de porta de nave de ET. “Fsssss...”. A equalização das pressões interna e externa foi audível. Todos recuaram, quando um homem vestindo traje prateado surgiu pela porta. O Sétimo não se conteve:

- Cuidado, pode ser um ET americano! O homem sorria e mostrava as palmas das mãos. Linoberto pensou que o Estrangeiro os considerava aborígenes, pois fazia o gesto intergaláctico de paz.

- Mim Steve! – disse o sorridente Estrangeiro.

- Mim Linoberto! – devolveu-lhe o próprio.

Linoberto e o Padre Antão arranhavam o inglês de colégio, suficiente para entabularem uma conversa sem pronomes pessoais regidos de preposição. O Estrangeiro explicou que tentava dar a volta ao mundo, quando uma corrente de altitude falhou, e ele acabou no chão. Ele tentou comunicação por rádio, com sua base, em Chattanooga Tennessee, mas não teve êxito, pois estava muito baixo. Linoberto tranqüilizou-o, pois o rapaz do leite iria à cidade, e lhe daria uma carona. De lá o Estrangeiro poderia chamar a equipe de socorro, para transportarem a cabine. O invólucro do balão estava perdido, pelos inúmeros rasgos. O Estrangeiro doou o balão à igreja. Padre Antão ficou muito feliz, pois Dona Clotilde poderia confeccionar diversas roupas, para darem aos pobres, no dia em que encontrassem algum do Lado de Cá do Cinamomo.

O rapaz do leite fez um mapa para que o Estrangeiro pudesse voltar ao Lado de Cá do Cinamomo, quando sua equipe chegasse. A cabine de vôo virou atração turística. Contaram mais de dez visitas, somente na primeira semana. Decorrido esse prazo, Linoberto ficou preocupado. Por que o Estrangeiro demorava tanto a voltar? Talvez sua equipe demorasse. O homem parecia ter gostado dali, pois chegara a provar da “boa”, produto do alambique que quase destruíra inadvertidamente. Será que o rapaz do leite errara o mapa?

Decorridas duas semanas, Linoberto já pensava em tentar alguma comunicação com o Governo. Pareceram adivinhar seus pensamentos, pois o Estranho apareceu no horizonte, acompanhado de uma tropa, a bordo de um grande caminhão do Exército. Dirigiram-se diretamente ao 12 Irmãos, onde o Estranho estranhamente recusou a “boa”. Ele confidenciou ao Linoberto que não podia beber em serviço, diante das testemunhas do Exército.

- Sua vinda tem algo a ver com o balão? – Linoberto juntara alhos com bugalhos.

- Sim, completamente! – o Estranho olhava estranhamente para o copo servido a sua frente. Quando viu que os soldados olhavam pela janela, procurando a origem daqueles estranhos mugidos, ele entornou o copo, de um só gole. Uma imensa sensação de queimadura tomou conta das suas mucosas superiores.

- Vieram buscar a cabine? – Linoberto estranhou a ausência do dono dela.

- Sim, será apreendida como objeto de descaminho. O americano já foi preso.

- Por quê? – Linoberto tentava adivinhar qual era o argumento besta que havia enquadrado o Estrangeiro em algum artigo de alguma nova lei besta.

- Por ordem, ele introduziu aeronave no País, sem pagamento das taxas e emolumentos de importação, e ele cometeu crime contra a segurança nacional, ao introduzir e divulgar em território nacional mapa ou qualquer documento que o retrate ou descreva sem parte dele integrante!

- Você está falando do mapa que o rapaz do leite traçou, para que o Estrangeiro pudesse voltar, e pegar sua cabine? – Linoberto ficou boquiaberto.

O crescido terneiro mugiu, talvez de indignação, talvez de obnunciação.

- Sim, aquele mapa só apresenta o Lado de Cá do Cinamomo e a Capital. Falta-lhe todo o resto do País, inclusive, ou melhor, exclusive, a Amazônia. Ou seria exclusive, inclusive? Bem seja como for, a CPI das ONGs constatou que “tais informações enganosas são capazes de gerar desgaste nas relações bilaterais dos países afetados, bem como percepções mutuamente enganosas acerca das expectativas e da forma como os atores estatais se enxergam” (sic).

- Saúde! - desejou o Sétimo.

- Como, saúde? – nem Linoberto, nem o Estranho haviam entendido.

- Bem, ele está com soluço, não viu o sic? – Eles fingiram não ouvir a resposta, e o estrangeiro continuou:

- Estamos aqui também para intimá-los a hastear a Bandeira diariamente, conforme determinação normativa de que a regra seja cumprida em todos os núcleos habitacionais da Amazônia Legal.

- Mas, aqui não é a Amazônia Legal! – protestou Linoberto.

- Não é, mais foi incluída no substitutivo do Sen. Epitáfio Chaleira, por se tratar de área inatingível do Território Nacional, como as reservas indígenas já que ninguém mais consegue chegar até aqui.

- Que coisa mais besta! – reagiu Linoberto.

- Sim, Besta Lex, sed Lex!

O crescido terneiro mugiu, talvez de abnuição, talvez de abobalhação.

Maria ordenhava a vaca Antonieta, quando Linoberto chegou.

- Que confusão, Lino!

- É, a coisa ficou preta para o lado do Estrangeiro. Pelo visto, vão expulsá-lo do outro lado do cinamomo. Melhor assim, pois ele corre o risco de pegar quatro anos de prisão por causa do raio do mapa que o rapaz do leite fez.

- Parece coisa daquele filme, passado naquela praia daquela ilha onde plantavam aquele fumo diferente. – Maria cantarolou a música Voices.

- Teremos de hastear a bandeira todos os dias, no 12 Irmãos, em obediência a nova lei besta. O Sétimo até gostou desta, pois ele aparecerá todos os dias nas cerimônias de hasteamento e arriamento, a preparar-se para a Eleição.

- E o balão? O Estranho levou?

- Não, Maria. O Sétimo juntou coisa alguma com coisa nenhuma e teve o primeiro lampejo de raciocínio lógico em toda a sua vida. Ele pegou o gancho da lei do Sen. Epitáfio Chaleira e questionou a presença de tropas, e do próprio Estranho, em reserva territorial. Se tivermos de fazer a mesma coisa que os núcleos habitacionais indígenas fazem, teremos também os mesmos direitos. O Estranho consultou o pessoal do Minterra – Ministério dos Territórios Amazônicos e eles confirmaram que ninguém pode entrar aqui, sem autorização, nem o Sting, nem o Papa.

- Eles poderão voltar para buscar o balão, depois que arrumarem autorização?

- Poderão, mas o Sétimo preparará um processo a ser protocolado junto ao Minterra, que deverá tramitar durante anos, de gabinete em gabinete. Até lá, o Sétimo terá feito bom uso dele.

- Como, Lino?

- Ele pretende fazer umas mudanças na cabine, e utilizá-la como caldeira do alambique. Poderá aumentar muito a produção da “boa”.

O crescido terneiro mugiu, talvez de obcecação, talvez de obduração.


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1 Comments:

At sábado, 23 agosto, 2008, Blogger José Elesbán said...

abnuição, obnunciação, obduração... Puxa! Tu estás te puxando, hein?

 

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