7.8.08

438 - A classe Média VIII - A queda do cinamomo


Foto: Wikipedia
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A classe média VIII – A queda do cinamomo

Por Paulo Heuser


O pacato município do Lado de Cá do Cinamomo não ouvia o sino da igreja, fora dos horários litúrgicos, há muitos anos. Nem Padre Antão lembrava-se da última vez. O sino limitava-se ao anúncio das missas, das horas de entrada e saída da roça, e dos óbitos, todos os três, registrados nesta década. O toque às 16h49 causou o retorno prematuro do pessoal da roça. E o mugido do crescido terneiro. Linoberto não precisou observar a sombra projetada pelos pés de milho, para constatar que ainda não chegara a hora usual do retorno para casa, antecedido pela passagem no Bar, Churrascaria e Borracharia 12 Irmãos.

Quando Linoberto chegou ao 12 Irmãos, este estava às moscas. Eufemismo desnecessário, pois o bar sempre estava cheio de moscas. Havia apenas um cartaz, aviso para que todos se dirigissem ao cinamomo que deu nome ao Município, ao lado da pinguela. Quando chegaram lá, havia grande agitação. Dona Clotilde, beata e ex-presidiária, por ter sido flagrada após consagrar com o vinho de missa, brandia uma foice, na direção de um homem vestindo macacão, e empunhando a motosserra. Padre Antão, revivendo Eúde – Juízes 3.27 - estava sobre um galho do cinamomo, tocando a versão moderna da Trombeta de Gideão, enquanto conclamava o povo do Lado de Cá do Cinamomo para abraçarem a árvore ameaçada. Os 12 irmãos formaram uma corrente ao redor do caule.

Linoberto não entendia o que provocara tamanha convulsão, pois não sabia que o Ministério da Estatística havia decretado o fim da árvore. O agora crescido terneiro mugia desesperadamente, contagiado pelo caos reinante. Linoberto sentiu uma mão colocar-se cuidadosamente sobre o seu ombro. Era o Estranho, único representante do Governo que conseguia encontrar a pinguela que dá passagem ao Lado de Cá do Cinamomo. Era exatamente esse cinamomo, que dava nome ao Município, que dificultava a visualização da pinguela.

- O que, afinal, está havendo aqui? – perguntou Linoberto.

O estranho fez sinal para que o agente da motosserra desligasse a máquina, e acompanhou Linoberto ao 12 Irmãos. Padre Antão, Dona Clotilde, e seis dos 12 irmãos ficaram ao lado do cinamomo, em vigília cívico-eclesiástica.

- Linoberto, sinto muito pela confusão que causamos, mas estamos apenas cumprindo um Decreto Ministerial. – O Estranho parecia especialmente estranho, constrangido mesmo.

- Decreto? Não é uma Lei Besta, desta vez – Besta Lex, sed Lex! – A lei é besta, mas é a lei?

- Não, Linoberto, desta vez é um Decreto, do próprio Ministério!

- Entendi: Bestum decretum, sed decretum! – O decreto é besta, mas é o decreto!

- Ora, Linoberto, devemos apenas cortar o cinamomo...

- Mas, este é o problema! O cinamomo é o que nos resguarda dos do lado de lá do cinamomo. Sem ele, todos poderão cruzar a pinguela. Em pouco tempo, isto aqui deixará de ser o último bastião da classe média!

O Estranho já não estranhava mais a “boa”, bebendo um longo trago, sem fazer caretas.

- Eu sei que vocês gostam muito desse cinamomo, mas ele está atrapalhando a estatística.

- Por quê? – Linoberto não entendia por que o tal do ministério queria pôr abaixo o cinamomo. – É ele que nos mantém como minoria.

- Ahá! Agora nós chegamos ao fulcro do problema! Vocês não são mais a minoria! O Ministério da Estatística decretou o fim da classe média como minoria. Agora, vocês fazem parte da maioria! Portanto, não poderão ficar separados do resto do País. Vocês ficarão diluídos nessa formidável classe média global! Basta que arranquemos o maldito cinamomo!

O crescido terneiro mugiu, solenemente.

- Estranho, você nos conhece há muito, e já deve ter percebido que isto aqui é o último reduto da classe média, mais por questões de atitude do que de renda. Essas atitudes certamente têm a ver com a distribuição de renda, mas a simples derrubada do cinamomo, e a conseqüente invasão do Lado de Cá do Cinamomo, não nos trará nenhum benefício, muito antes pelo contrário. Basta uma olhada superficial, no que acontece no lado de lá do cinamomo, para se constatar que algo está errado com a estatística de vocês. Ou, aquele não é o tipo de classe média com a qual sonhamos!

O piloto da motosserra fez uma careta pavorosa, ao provar da “boa”. Em solidariedade, o crescido terneiro mugiu.

- Mas, os números falam por si só, Linoberto! Veja só o Índice de Gini, que indica a distribuição de renda. Melhoramos 6,5%!

- Pode ser, mas não é o que se vê, andando pelas ruas do lado de lá do cinamomo...

- O que é visto, não tem valor estatístico! O que importa é o que é tabulado, planilhado, calculado, impresso e divulgado!

O crescido terneiro mugiu.

Linoberto chegou em casa após o pôr-do-sol. Maria só havia deixado a guarda do cinamomo quando o Estranho e o piloto de motosserra sumiram no horizonte, em meio a uma enorme nuvem de poeira. Até o sol nascer, a árvore estaria a salvo, pois nem o Estranho se aventurava por aquela estrada, à noite.

- E aí, Lino, como ficou a história?

- Tudo bem, nós vencemos, por enquanto.

- Como foi, Lino? O cinamomo ficará? – Maria não continha a ansiedade.

- Sim, Maria, ficará. Por enquanto, está protegido.

- Como conseguiram?

- Bem, Maria. Enquanto o Estranho discursava sobre aquelas estatísticas deles, eu escrevi um decreto, no papel da mesa, e declarei o cinamomo tombado como peça do patrimônio histórico e cultural do Lado de Cá do Cinamomo. Como acumulo o cargo de Secretário De Patrimônio Histórico e Cultural, tenho poder para tanto.

- E eles têm de obedecer ao decreto?

- Têm, Maria, pois eles mesmos aprovaram uma lei que protege tudo aquilo que é fruto da manifestação religiosa ou cultural. Por via das dúvidas, o Padre Antão abençoou o cinamomo.

Maria ficou quieta, pensativa, por um momento. Olhando para o ocaso, disse:

- Entendo por que é ruim deixarmos de ser minoria. A história mostra que, há 508 anos, a maioria só se rala, no País.

- Bestum decretum, sed decretum!, apoiado pela Besta Lex, sed Lex! Lutamos com as armas deles!


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