432 - Os filhos de quem?
João Cândido - O Almirante Negro
Cenário I – Praça da Alfândega, Porto Alegre, RS.
A mulher número 2 do Nestor lê o jornal, jogado fora por algum passante da madrugada. Esta madrugada foi dura, na Praça da Alfândega. O jornal veio a calhar como proteção adicional contra o frio. Antigamente havia os sacos de leite, que formavam uma boa forração no interior da roupa. Depois, trocaram tudo por caixas.
Nestor fica orgulhoso, quando vê a mulher número 2 lendo. A mulher número 1 finge que não vê, pois lhe bate forte ciúme. Os primeiros raios do sol só trazem esperança. O calor ainda não vem. Nestor tem duplo cobertor humano, a número 1 pela direita, e a número 2 pela esquerda. Esta lê devagar, entorpecida pelo frio e pela ressaca da coisa que espanta o frio.
- Viu essa, do tal de João Cândido, Bem?
- Ahã. – arrisca ele, apesar de não saber do que se trata.
- Bem, o que é veto? – ela faz cara de dúvida.
- É aquela coisa, sabe como é... Assim, sabe? Aquele negócio para votar nos manda-chuvas.
- Ah, tá certo. Aí diz que o Lula vetou uma grana preta prá família do tal de João Cândido. O cara ia começar uma guerra contra o Rio de Janeiro, em 1910 – a Revolta da Chibata. Parece que esse João fez uma revolta contra as chibatadas que os marinheiros levavam quando faziam besteira. Que nem tu, Bem, quando a outra aí te deu a surra, outro dia.
A número 1 finge que não ouve.
- Quanto é essa grana preta? – arrisca Nestor.
- Um bilhão! Nem sei quanto dá isso, mas enche a boca só de dizer!
A número 1 parece interessada:
- Por que eles querem pagar tudo isso pro cara?
- Não é pra ele, é prá família dele. Ele já foi prá banha, depois de ficar que nem tu, só que lá no Rio.
- Mas, por que eles querem pagar, se o cara nem tá mais aí prá ver a cor da grana?
- É indenização, Bem. É prá pagar pelo sofrimento deles. Aí diz que esse negócio de pagar indenização pelas coisas de antigamente virou moda. Os homens do voto dão essa grana, uns para os outros. Brigam para ver quem sofreu mais.
Nestor fica quieto, por um momento.
- Mas, e nós? A gente sofre prá caramba. Rala o dia todo na mendicância, e racha de frio à noite. Também quero essa tal de indenização.
Cenário II – Esplanada dos Ministérios, Brasília, DF
- Ministra, há um tal de Nestor, de Porto Alegre, que insiste em falar com a senhora.
- O que ele quer?
- Ele não fala coisa com coisa, mas parece querer uma indenização.
- Por quê? – indaga a Ministra.
- Ele diz ser descendente do Abel.
- Abel, qual Abel?
- O que foi assassinado pelo Caim, Ministra.
- Abel teve filhos, antes de morrer? Peça um exame de DNA! Vetaram o outro, por muito menos.
prheuser@gmail.com
http://www.pauloheuser.blogspot.com/
http://www.sulmix.com.br/
Os filhos de quem?
Por Paulo Heuser
Cenário I – Praça da Alfândega, Porto Alegre, RS.
A mulher número 2 do Nestor lê o jornal, jogado fora por algum passante da madrugada. Esta madrugada foi dura, na Praça da Alfândega. O jornal veio a calhar como proteção adicional contra o frio. Antigamente havia os sacos de leite, que formavam uma boa forração no interior da roupa. Depois, trocaram tudo por caixas.
Nestor fica orgulhoso, quando vê a mulher número 2 lendo. A mulher número 1 finge que não vê, pois lhe bate forte ciúme. Os primeiros raios do sol só trazem esperança. O calor ainda não vem. Nestor tem duplo cobertor humano, a número 1 pela direita, e a número 2 pela esquerda. Esta lê devagar, entorpecida pelo frio e pela ressaca da coisa que espanta o frio.
- Viu essa, do tal de João Cândido, Bem?
- Ahã. – arrisca ele, apesar de não saber do que se trata.
- Bem, o que é veto? – ela faz cara de dúvida.
- É aquela coisa, sabe como é... Assim, sabe? Aquele negócio para votar nos manda-chuvas.
- Ah, tá certo. Aí diz que o Lula vetou uma grana preta prá família do tal de João Cândido. O cara ia começar uma guerra contra o Rio de Janeiro, em 1910 – a Revolta da Chibata. Parece que esse João fez uma revolta contra as chibatadas que os marinheiros levavam quando faziam besteira. Que nem tu, Bem, quando a outra aí te deu a surra, outro dia.
A número 1 finge que não ouve.
- Quanto é essa grana preta? – arrisca Nestor.
- Um bilhão! Nem sei quanto dá isso, mas enche a boca só de dizer!
A número 1 parece interessada:
- Por que eles querem pagar tudo isso pro cara?
- Não é pra ele, é prá família dele. Ele já foi prá banha, depois de ficar que nem tu, só que lá no Rio.
- Mas, por que eles querem pagar, se o cara nem tá mais aí prá ver a cor da grana?
- É indenização, Bem. É prá pagar pelo sofrimento deles. Aí diz que esse negócio de pagar indenização pelas coisas de antigamente virou moda. Os homens do voto dão essa grana, uns para os outros. Brigam para ver quem sofreu mais.
Nestor fica quieto, por um momento.
- Mas, e nós? A gente sofre prá caramba. Rala o dia todo na mendicância, e racha de frio à noite. Também quero essa tal de indenização.
Cenário II – Esplanada dos Ministérios, Brasília, DF
- Ministra, há um tal de Nestor, de Porto Alegre, que insiste em falar com a senhora.
- O que ele quer?
- Ele não fala coisa com coisa, mas parece querer uma indenização.
- Por quê? – indaga a Ministra.
- Ele diz ser descendente do Abel.
- Abel, qual Abel?
- O que foi assassinado pelo Caim, Ministra.
- Abel teve filhos, antes de morrer? Peça um exame de DNA! Vetaram o outro, por muito menos.
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