436 - Pipoca com chutney?
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Pipoca com chutney?
Por Paulo Heuser
Meu amigo Raimundo ficou muito impressionado, ao ver um sujeito comendo brownies com fricassée, não o contrário. Ele percebeu logo, que não há limites para a imaginação culinária humana. Os brownies haviam sido servidos como sobremesa, após o fricassée. Talvez por influência da intolerância zero ao álcool, o homem abria os brownies ao meio, e os recheava com generosas colheradas de fricassée. E, o que é mais incrível, ele parecia deliciar-se. Raimundo acabou anotando a combinação. Ficou anotada ao lado de outro clássico da culinária de vanguarda, a tradicional sopa de capeletti - versão local do tortellini in brodo italiano – temperada com bastante cketchup. Imaginou a cara de uma autêntica nona, quando visse seus netos enfiando cketchup sopa adentro. Sobrariam vassouradas para todos os lados.
Raimundo não anota essas coisas por hobby. Tampouco quer escrever uma versão culinária do Guinness Book. Dele, prefere a cerveja, com sua indefectível – porém misteriosa - esfera. Na verdade, ele faz planos, para o futuro, evidentemente, pois de nada adiantaria fazê-los para o passado. Pensa na aposentadoria. O dia há de chegar, e tem de estar preparado. Nada de ser surpreendido pelo dia D, em chinelos e pantufas. Já vem pensando nisso há muito. O pessoal também dá sugestões e idéias. Muitos palpites giram em torno da culinária. – Abra um restaurante! – opinam. Alguns se esquecem de que um restaurante é uma empresa como qualquer outra. Para montar um restaurante de sucesso, faz-se necessário percorrer uma longa trilha. Ele deve estar bem localizado, inserido em nicho apropriado de mercado, ter divulgação, boa cozinha, um ótimo RP, e, acima de tudo, apresentar uma proposta diferenciada. Há restaurantes demais, muitos a sucumbir à mesmice. Não basta serem corretos, devem ser ousadamente corretos.
Alguns dos restaurantes de maior sucesso da cidade trilharam rotas alternativas, caracterizando-se por algo que não pode ser classificado exatamente como virtude. No restaurante alemão de maior sucesso que a cidade já teve, o proprietário mudava os pedidos dos clientes, ao sabor do seu humor. E metia pimenta moída em tudo, mesmo que os clientes implorassem pelo contrário. E o pessoal adorava! Os freqüentadores de outro, da culinária chinesa, recebiam a conta junto com os pratos. A partir de então, os clientes tinham sete minutos para mandar a comida goela abaixo, antes de serem expulsos. E sempre voltavam. Um belo dia, passaram a tratar os clientes de forma mais ortodoxa. Ficaram às moscas – e as moscas. Numa cantina que já teve dias melhores, um garçom sempre tentava somar números aleatórios à conta. Era o preferido do lugar. Adoravam pegá-lo no flagra. E assim os clientes estabeleceram uma relação de amor e ódio com essas casas, ou seus proprietários. Esses restaurantes pitorescos passam a fazer parte do folclore da cidade.
Raimundo não quer abrir apenas outro restaurante competente, focado em um nicho específico do mercado. A cidade já está repleta deles. Por outro lado, ele não deixa de se espantar com a quantidade de restaurantes que afrontam diretamente qualquer bom senso gastronômico. As pizzarias de rodízio, de longe, são as campeãs. E estão sempre repletas de gente que enfrenta longas filas. Como Raimundo não dominava os segredos milenares da arte de produzir esses pratos, de altíssima vanguarda, pediu socorro ao Zé Tongo, sócio e apreciador contumaz de pizzas de rodízio. Zé Tongo não consegue entender o que o Raimundo não consegue entender: como gostar daquelas pizzas.
Zé Tongo convenceu Raimundo a acompanhá-lo em algumas noitadas de culinária alternativa de vanguarda. O que era prazer para Zé Tongo, era suplício para o Raimundo. Porém, negócios são negócios. E se há algo que Raimundo sabe fazer, são negócios. Ele observou que essas pizzarias primam pela comida estranha, pitoresca, chegando às raias do bizarro. Por outro lado, são restaurantes muito baratos, que tiram o lucro nas bebidas. Raimundo pensa em atrair um público um pouco diferente, de poder aquisitivo maior. Uma dessas pizzarias conseguiu impressioná-lo sobremaneira. Além das infinitas pizzas de estranhas combinações de sabores, há também rodízio de massas, grelhados e frutos do mar. O restaurante é especializado em nada. Puro nada. O lema deles era “Generalistas, graças a Deus!”. Essa panacéia de pratos impressiona, porém não choca. Raimundo sabia que o pessoal mais abonado gosta do choque chique, ou inusitado cult.
Das incursões pela noite, e da consultoria gastronômica do Zé Tongo, nascerá a Pizzeria Panacea – Pizzaria Panacéia. O choque iniciará na entrada do prédio no melhor estilo enxaimel, combinado com um enorme dragão chinês. Logo após a entrada, os clientes serão recebidos pelo coral de bávaros que cantará tarantelas animadas pelo trombone. Os garçons vestirão trajes ninjas. As paredes serão decoradas com rodas de carretas e miniaturas de moinhos de vento.
Raimundo observou que muitos clientes das pizzarias de rodízio insistem em pedir um sabor específico, enquanto os garçons servem todos os outros. Um sujeito gritava que havia ido até lá especialmente para comer a pizza de ovo em conserva com sorvete de menta. Somando alhos com pizzas, Raimundo percebeu que algo está errado com a dinâmica dessas pizzarias. O pessoal gosta de bufês porque pode se servir daquilo que desejam comer, tudo ao mesmo tempo.
Após mais algumas incursões, desta vez aos maiores bufês, Raimundo já tem uma boa idéia de como será o serviço na Panacea. Será uma panacéia, porém com alguma organização. Ele achou interessante a distribuição dos pratos em ilhas temáticas. Ilhas de pizzas alemãs, de pizzas orientais, de pizza gaúcha, etc. Assim os clientes poderão fazer outra coisa que adoram: ficar na fila do bufê. Um bufê com ilhas permite entrarem em diversas filas, discutindo sobre o que há nas outras ilhas. Fila de bufê é um evento social. A Pizzeria Panacea terá ilhas temáticas, e os clientes se servirão diretamente, sem dependerem de garçons que sempre ignoram a mesa deles, quando finalmente passa a pizza de ovo em conserva com sorvete de menta. Algumas ilhas já estão definidas. A de pizzas vegetarianas, por exemplo. Cobertas com carne de soja, queijo de soja, óleo de soja, e sabe-se lá mais o quê, de soja. Claro, não faltarão as de rúcula, alface, escarola e a de cinco folhas.
Raimundo ainda não se definiu quanto à instalação, ou não, de uma ilha de pizzas italianas. Afinal, pizza italiana há em qualquer lugar, até na Itália. O pessoal já cansou das margheritas, napolitanas e mafiosas. Raimundo pensa em abrir uma exceção. Recomendaram-lhe a pizza de ossobuco. Dá certo trabalho comê-la, mas dizem que vale a pena. Ele está considerando também a inclusão de algumas pizzas regionais italianas, como a milanese, coberta com risoto, e a napolitana alternativa, coberta com um esplêndido spaghetti. A ilha germânica será fantástica. As pizzas de chucrute chocarão até os mais ecléticos clientes de pizzaria de rodízio. O que falar, então, da de joelho de porco? E da de cerveja? Meia branca, meia preta, o maior sucesso. Possivelmente, será a primeira pizza pega pelo bafômetro. Outras germânicas ainda estão no prelo, como a exclusivíssima pizza de spetzel – versão prussiana dos gnocchi italianos.
Especial atenção será dada à ilha de pizzas gaúchas, coisa da terra. Como resistir à pizza de costela gorda? E a de arroz de carreteiro? Completam a ilha as de moranga caramelada e aipim. Na ilha oriental o destaque fica por conta da pizza de sushi. Quem resistirá à de arroz shop suey? Na ilha ao lado, a norte-americana, as atenções se voltarão para as pizzas de doughnuts e de sucrilhos. Sem esquecer as de batata chips. Das Minas Gerais virá a inspiração para a ilha brasileira. Pizzas de feijoada, feijão tropeiro, e de leitão à pururuca. As de sabugo de milho de pipoca e de pamonha terão lugar de destaque. O Nordeste terá representantes de peso, com as pizzas de sarapatel, de buchada de bode e de farofa, a mais minimalista.
Ponto alto será a ilha basca, com as clássicas pizzas de mondongo, língua e tripa grossa. Ao lado dela, ficará a ilha de picadinhos em geral, como strogonoff, fricassée e goulash. Ah, e a de brownie com fricassée, é claro. Terá uma plaqueta identificando-a: fricassée d’aileron de volaille - fricassée de asas de frango. Fica mais chique, assim. A grande surpresa ficará por conta Ilha Espontânea. O pizzaiolo pegará dois ou três ingredientes, de olhos vendados, e os jogará sobre a massa que será levada ao forno. Serão 256 ingredientes surpresa! Cuca de framboesa com filé de anchovas? Pipoca com chutney de manga? Haverá limite?
Marcadores: brownie, bufê, carreterio, chutney, feijão, feijoada, fricassée, goulash, italia, pizza, rodízio, strogonoff, tropeiro
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