444 - A boca seca
Foto: Estadão
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A boca seca
Por Paulo Heuser
O B do teclado está falhando. Será uma migalha de pão? Tenho de bater a tecla, com medo de que ele saia sempre maiúsculo. Ficaria B demais. Sou obrigado a solidarizar-me com alguns atletas dos Jogos Olímpicos, e de quaisquer outros jogos, menos olímpicos, especialmente com aqueles que competem nas modalidades individuais.
Os esportes individuais levam à glória, e à desgraça, sem meios-termos. Se você venceu, a Pátria triunfou. Você será sócio de mais de uma centena de milhões de vencedores, sem falar do patrocinador. Hinos, bandeiras e vinhetas, todos o acompanharão. Se você perder, foi Você quem perdeu. Por falar nisso, quem afinal lhe permitiu representar tal multidão? Sem vencer?
Quem nunca competiu numa modalidade esportiva individual, não sabe daquela sensação estranha que surge antes da prova. Quantos não se questionam, sobre – porcaria do B – o que estão fazendo lá? O coração dispara, a boca fica anormalmente seca, os segundos se transformam em horas, e aí tudo acontece em segundos, muito poucos, às vezes. Não há arrependimento, ou não pode haver. Aquele momento de distração custa uma vida. Para o patrocinador, não há desculpa aceitável. A pressão é grande, mesmo sem patrocinador. A platéia faz as vezes de.
Imitação da vida, em Bs maiúsculos, os Jogos Olímpicos cobram mais. Mais patrocínio, mais cobrança, e mais expectativa. São milhões de olhos, e de dólares, que exigem a perfeição. Afinal, não estão usando aquele banco e aquele remédio em vão. Pagaram por isso, e podem exigir retorno. É o código de defesa do consumidor desportivo. Pagou, ganhou. O patrocinador pagou pela menina bonita, sem voz, que dublou a menina, não tão bonita – segundo o patrocinador -, com voz. O que importa é a imagem. Questionam as imagens da abertura, que seriam produzidas pelo campeão da manipulação das imagens. Questionam os tempos obtidos pelos nadadores. A piscina seria mais curta? Havia correnteza? A água seria quimicamente aditivada? Ou, o que poderia parecer impossível, os nadadores eram melhores, frutos da tecnologia e da fisiologia modernas?
Nas ruas chinesas, jornalistas se revezam em devorar insetos. Como sair de lá sem comer escorpiões? Nem patrocinador, nem telespectador, perdoariam. É o preço cobrado pelo esporte.
Feliz daquele rapaz, o Cielo, que certamente fez por merecer. Rebentou-se durante anos, e triunfou. Foi ao Olimpo, em modalidade individual. Seu choro de glória derramou a tensão que acomete aqueles que ousam desafiar os favoritos, e o próprio Olimpo. Ele foi o mais rápido numa prova que passa num pestanejar. Nem a platéia conseguiu respirar. A mídia fez um show, fazendo ouvir a música que ele teria ouvido durante aqueles vinte e poucos segundos rumo à glória. Quem nada, sabe que a água não permite que se ouça nada, durante uma competição, senão o próprio bater do coração.
Aos outros, os escorpiões, além da boca seca.
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