446 - Classe média X - A grande revolução
.
.
A classe média X – A grande reforma
Por Paulo Heuser
Linoberto desatolava o terneiro mugidor, quando viu o jipe enlameado que trazia o cada vez mais familiar Estranho – único representante do Poder Central a encontrar o caminho para o Lado de Cá do Cinamomo - último bastião da classe média. O barro voava para todos os lados, denunciando um motorista mais afeito ao asfalto do outro lado do cinamomo. Numa das raras comunicações com o governo do estado, informaram da impossibilidade das máquinas melhorarem a estrada, pelo simples fato de não conseguirem encontrá-la.
O Estranho desceu sorridente do jipe que trazia identificação do Ministério da Cultura. Ele trouxe um passageiro, homem de estatura média, cabelos castanhos, aparência comum e vestido discretamente. Aguardaram que Linoberto acabasse de desatolar o terneiro, que mugiu de alívio, e acompanharam-no ao Bar Restaurante e Borracharia 12 Irmãos, onde já lhes esperava uma garrafa da “boa”. Linoberto não se conteve, e atropelou o protocolo:
- O que foi desta vez? Seremos forçados a aprender uma dança típica do Quirguistão, só porque aprovaram uma lei para tanto?
- Calma, Linoberto. Nada disso. Antes de mais nada, deixe-me apresentá-lo ao Secretário Extraordinário Para Assuntos Lingüísticos, Sr. Manuel Vaz Cascais.
- Prazer! – Linoberto apertou a mão dele, com firmeza, enquanto pensava que, pela aparência, o sujeito nada apresentava de extraordinário.
- Przer! – o nada extraordinário lhe devolveu o cumprimento, com forte sotaque d’além Atlântico.
- Português? – Linoberto ficou curioso.
- Não, na vrdad não! Sou brsleiro.
- Mas, por que fala desse jeito?
- Bem, stou a me prprar para rprsntar o gverno na rnião dos países de poplação lsófna. Assm, já stou a trnar o staque.
- Ele não fala o Português daqui? – Linoberto olhava para o Estranho, que consultava um livro intitulado Dicionário Português-Português.
- É um pouco diferente, mas dá para se entender. – disse o Estranho – Depois de algum tempo, e de ler os 8816 versos dos Lusíadas.
- Bem, sja cmo for, stá a contcer a VII Cmeira – Cimeira - dã Cmnidade de Países de Lngua Prtguesa. Como o gverno prtguês crou um fundo de 30 mlhões de Euros, stamos prveitando pr dvlgar a rforma rtogrfica da Lngua Prtguesa.
Por incrível que pareça, Linoberto começou a entender o homem. Havia uma regra que permitia a tradução do português para o português. Era suficiente acrescentar algumas vogais em meio às primeiras consoantes. Ele passou a traduzir o que o lusófono falava, para o Sétimo, que acumulava os cargos de Prefeito do Lado de Cá do Cinamomo, garçom e borracheiro do 12 Irmãos. O Sétimo confundiu cimeira com cinamomo.
- Onde eles falam essa língua, também tem cinamomo?
Linoberto tentava descobrir qual seria a nova lei idiota que haviam votado do outro lado do cinamomo.
- Certo, mas o que nós temos a ver com isso, do Lado de Cá do Cinamomo?
- Exclente prgunta, gajo! – o Vaz Cascais ficou tão entusiasmado que o terneiro mugiu em resposta. Um mugido estranho, sem vogais. Apenas “Mmmmmmmm!”.
- O Gvrno Brsleiro assnou o Trtado dã Rforma Rtogrfica dã Lngua Prtguesa. Todos trão dã prnder a scrver dã frma pdrnizada.
O Sétimo parecia entusiasmado:
- Eles darão curso dessa língua, de graça? Aí estava uma realização a ser colocada no seu currículo, para a próxima eleição.
- Todos terão de reaprender nossa língua. Todos os livros serão reescritos, usando a nova Língua Portuguesa, que será escrita por 210 milhões de pessoas no mundo, que têm o português como língua pátria – foi a vez do Estranho se entusiasmar.
- Todos falarão a mesma língua, no Brasil, em Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
Linoberto logo percebeu que Portugal seria o grande beneficiado, pois venderia mais livros ao Brasil. Os outros apenas fariam número, pois sua população, ou é analfabeta, ou não tem recursos para comprar livros. E o Brasil pagará a conta, é claro.
- Que coisa mais besta! – Linoberto não se conteve.
- Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – afirmou o estranho.
Quando Linoberto chegou a casa, Maria esperava na porta.
- E aí, Lino, soube que o estranho esteve aqui, e trouxe um estrangeiro com ele.
- Era um estrangeiro de idéias, vendendo uma ridícula reforma ortográfica, fruto de um tratado que seremos forçados a engolir, graças à outra lei besta.
- Por que nós, Lino, se os do lado de lá do cinamomo nunca nos encontram para outras coisas.
- Porque aqui não tem a tal de Internet.
- Não entendi a relação. – Maria franziu a testa.
- É simples, Maria. Aqui o pessoal ainda sabe ler e escrever. O pessoal do lado de lá do cinamomo já não sabe ler muito bem. Os que ainda poderiam saber, não usam mais a Língua Portuguesa. Eles usam uma linguagem truncada, o Internetiquês, de onde os acentos e as vogais sumiram faz muito tempo. Outros vão ao shopping, aproveitar que é time de sales off, e aproveitam para fazer um upgrade do ROI – Return Of Investiment. Tudo dentro do budget, é claro. Por isso nos escolheram, para iniciar a conversão dos professores.
- E agora, Lino? O que acontecerá se converterem professores e o tal do tratado não der certo?
- Não vai dar problema. Falei com o Sétimo e pedi para mandarem o Décimo para aprender a nova ortografia. Aquele que dá aulas de História Antiga.
- O que caiu do cinamomo?
- Esse mesmo. Depois do tombo de cabeça, ele perdeu a memória recente. Não se lembra de nada que aconteceu no dia anterior. Os alunos dele adoram essa característica. A reforma ortográfica entrará por um ouvido, e sairá pelo outro. Ele não consegue aprender nada novo, por isso dá aulas de História Antiga.
- E então, Lino?
- Então os do outro lado do cinamomo, deverão adiar novamente a implantação dessa besteira. E nós escreveremos num dialeto português que só será conhecido do Lado de Cá do Cinamomo.
prheuser@gmail.com
www.pauloheuser.blogspot.com
www.sulmix.com.br
Marcadores: 2009, Angola, Big Brother Brasil, Camões, cinamomo, classe média, Moçambique, Portugal, português, reforma ortográfica, Timor Leste, VII Cimeira
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home