12.9.08

460 - Os invisíveis

Foto: Wikipedia
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Os invisíveis

Por Paulo Heuser


Eu jogava conversa fora com alguns colegas, após o almoço que não faço, como sempre faço. Uma da tarde, dia nublado e lá veio uma daquelas figuras que colorem o Centro cinza da cidade. Não era pessoa que voltaria. Percebe-se logo quando eles não são da Praça. Vem de algum lugar incerto e longínquo, e partem para outro. Esse parecia fugido da Bolívia, pelas feições marcadamente andinas. Um andarilho miserável, carregando todas suas posses num saco surrado. Nos pés, apenas sandálias havaianas fabricadas no Brasil, apesar da temperatura fortemente declinante. No alto da cabeça, coberta pelos cabelos descuidados, ele usava uma espécie de bandana encardida, em curioso petit-pois branco e preto. Sei que é sinônimo de má educação encarar a bandana dos outros, mas, olhando melhor, aquilo se parecia com uma gravata usada na testa.

Já havia passado um vendedor de santinhos. Preparei-me para o pior, pois o refugiado andino entrava na nossa roda, observando quem estava à esquerda e à direita, sem mover a cabeça, graças a uma estranha independência móvel ocular. Ou seja, os olhos dele não funcionavam aos pares. Era cada um por si, nenhum por todos. O medo aumentou quando a língua dele se esgueirou em meio aos zagueiros laterais ausentes. Aquele era um retrato complicado da imprevisibilidade. Dalí poderia sair qualquer coisa.

O diferente gera o inevitável preconceito. Algo lá no fundo manda acautelar-se frente a esses tipos muito exóticos. Pressenti o bote, provavelmente em espanhol, ou talvez nas línguas aimará ou quíchua, muito faladas nos Andes. Nem sempre um “não” é bem recebido pelos pedintes estrangeiros que visitam nosso país entre o Sete e os 20 de Setembro. Fora deste período, também não. Já estamos habituados com os índios apaches bolivianos que tocam tambores na Rua da Praia, acompanhados pela harpa paraguaia, e com os peruanos que tocam flautas acompanhando as melodias melosas de Kenny G. Porém, esse da bandana era novo. Ele nada tocava, aparentemente.

Do nada, apesar dos nossos olhares desconfiados, ele abriu um grande sorriso que permitiu à língua perscrutar os flancos, enquanto os olhos autônomos varriam as redondezas sem sincronismo aparente, nem horizontal, nem vertical. Então ele disse, em bom português:
- Vocês por acaso não seriam vereadores de Sapucaia?

- Não! – respondemos, quase em uníssono, ainda não refeitos da surpresa.

- Ah, eu percebi, pois posso vê-los!

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