13.9.08

461 - Sangue! Olha o sangue!


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Sangue! Olha o sangue!

Por Paulo Heuser


A Lei Seca resiste, apesar de todas tentativas para descaracterizá-la. Os benefícios já se fazem presentes, basta que se fale com os profissionais da saúde que trabalham nas emergências hospitalares. Fala-se muito da ausência de fiscalização, que só seria efetuada nos casos envolvendo acidentes ou quando algum motorista apresenta sinais evidentes de embriaguez, como quando dirige em ziguezague. Enquanto juízes discutem a constitucionalidade da lei, torna-se cada vez mais claro que ela é necessária. É uma lei boa para a saúde, ruim para os negócios dos bares e restaurantes. Mesmo o Nestor, expoente máximo da mendicância alfandegária – ele reside e labuta na Praça da Alfândega -, percebeu o dilema.

Nestor lembrou-se das aulas de Economia, dos tempos em que ainda não era um Alfandegário, quando investia pesado na bolsa de telefones. Então o dilema se traduzia na dicotomia da transformação das armas em arados, ou seria dos arames em tarados? Seja como fosse, ele percebeu a nova dicotomia da saúde e da renda dos bares e restaurantes. Não é sempre que o cérebro do Nestor funciona de forma tão normal, digamos assim. Chegaram a levá-lo ao neurologista. O homem de branco lhe explicou sobre o problema surgido nas suas sinapses nervosas. Os neurônios do Nestor passaram a realizar sinapses diferenciadas. Nos seres humanos normais os axônios interagem com os dendritos, separados apenas pela fenda sináptica. Assim transmitem os impulsos nervosos, através dos neurotransmissores. Os neurônios do Nestor apresentam detritos, no lugar dos dendritos, e a fenda sináptica transformou-se em fossa sináptica. Pouco passa por ali. De tudo que o homem de branco falou, sobre uma confusão de agonistas e antagonistas colinérgicos, Nestor só entendeu uma coisa, que repetia à exaustão para sua Mulher Número 1:

- Ãh, ele disse que meu cérebro se parece com geléia de mocotó...

A fossa sináptica impedia a leitura dos restos de jornais jogados pelos canteiros da Praça. Nestor esteve na Itália quando era jovem, e ainda apresentava apenas a fenda sináptica pré-abissal - que nada tem a ver com o pré-sal. Os italianos entendiam de praças para mendigos. Nada de gramados e canteiros, havia apenas lajes e pedras. Na Alfândega, os jornais jogados nos canteiros ficam cheios de barro. Voltando ao jornal, a Mulher Número Dois - a alfabetizada - lia as quase novas do dia para o Nestor, quando surgiu a notícia sobre uma juíza que exigia exame de sangue para a comprovação da embriaguez dos motoristas. Sem sangue, sem cana. Ou melhor, sem xilindró, já que a cana pode estar presente.

Ninguém entendeu quando Nestor passou a oferecer líquidos avermelhados, contidos em duas garrafas pet transparentes.

- Sangue! Olha o sangue! – balbuciava Nestor.

O pessoal que lagarteia por lá estranhou. O Funério trazia um cartaz no peito onde se lia: “Vendo meu voto”. Ele perguntou ao Nestor sobre o estranho líquido vermelho.

- Ãh, é sangue! – respondeu-lhe Nestor – Tem de 5 e tem de 10!

- Cinco e 10 o quê?

- Cinco e 10 reais.

- Vá vender atrás do cemitério, para o pessoal que prepara aqueles trabalhos.

- Ãh, este é para os motoristas usarem, quando a fiscalização pegá-los. Eles já podem levar o sangue para o exame.

- Por que a diferença de preço?

- Ãh, o de 5 é meu, e o de 10 é da Mulher Número 2...

- Por que o dela custa mais?

- Ãh, é que ela não bebe...

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