7.10.08

473 - Vocês mantêm convênios?



Foto: Wikipedia
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Vocês mantêm convênios?

Por Paulo Heuser


Zé acordou cedo, como de hábito, para descobrir que não havia luz, nem do dia, nem das lâmpadas que teimavam em continuar apagadas. Ele tivera a brilhante idéia de comprar um moderno aquecedor de água a gás que apresentava uma peculiaridade: utilizava energia elétrica para controlar o fluxo de gás. Sempre havia o vestiário do clube para oferecer um bom banho quente. Aquela primavera começou de forma estranha, pois geava nos campos que deveriam estar floridos. O joão-de-barro veio dar uma olhada na casa, levou um pito da joana-de-barro, e desistiu da reforma do que sobrou da casa.

Chegar ao banheiro, para fazer a barba, não seria muito problema, pois ele sabia o número exato de passos que o separavam da porta. Só não sabia que aquela gaveta ficara aberta na altura exata da sua canela. Ele só conseguiu gritar um palavrão abafado. O interessante em se tropeçar em algo no escuro é a sensação de total desamparo que isso provoca. Mais interessante ainda é observar alguém tentando agarrar-se a algo que não está lá. Para sorte dele estava escuro, assim ninguém viu. Com a canela latejando, ele chegou ao banheiro. Fazer a barba no escuro não seria tão difícil, mesmo sem a água quente. Ele não notou logo que aquele não era um creme de barba. Tampouco era creme dental, pois seu rosto passou a arder. Mas, como tinha forma de creme de barba e tampa de creme de barba, foi. A ardência começava a sumir quando ele passou a lâmina no rosto. Algo de muito ruim acontecera com ela, pois literalmente tosquiava seu rosto. Bem que ele achou, na noite anterior, que o cachorro pareceu recém-tosado. Só conseguiu gritar outro palavrão abafado. Ele sentia que algum sangue escorria no rosto, mas de certo pararia em seguida. Grudou um pedaço de lenço de papel no rosto e desistiu da barba. Quando o sangue coagulasse, o papel cairia. Era sempre assim. Lembrou-se do celular, a lanterna de plantão. À luz pálida do visor permitiu que ele escolhesse e vestisse a roupa.

Descer as escadas no escuro foi tranqüilo, pois havia iluminação de emergência que durou até o terceiro andar. Depois, tirando aquela tropeçada na caixa que alguém esqueceu no segundo andar, foi tudo bem. Encontrou o carro com facilidade. Após acordar o porteiro, e conseguir que ele abrisse o portão, Zé partiu em direção ao clube. Lá descobriu que haviam interditado os vestiários para troca do sistema de aquecimento d’água. Poderia utilizá-los para tudo, menos para banho quente. Zé não suportava a Idéia de chegar ao trabalho sem haver tomado banho. Portanto, foi ao banho frio. A água gelada doeu no corpo. Porém, ele saiu de lá revigorado, pronto para enfrentar o restante daquele dia que começara tão ruim. Nada que começasse tão ruim poderia piorar.

Ninguém havia lhe avisado da Marcha dos Cem – 100 entidades de classe se reuniam na avenida, representando os Sem Qualquer Coisa, para marcharem em direção a qualquer lugar, pois pareciam vir de qualquer direção e ir a qualquer direção. Parado em meio ao congestionamento ele lembrou-se de algo que poderia ter feito no escuro, mas não fez. E não como fazê-lo no interior do carro. Como o trânsito não andava mesmo, ele correu para o interior de uma lanchonete onde fritavam os primeiros croquetes da manhã. Foi direto à porta que ostentava uma bengala e uma luva. O sujeito que fritava croquetes bem que tentou avisá-lo, mas ele passou célere na direção do toalete em reforma. Do lugar onde ficava o vaso sanitário, restou um pedaço de cano solitário. Claro, restou também a pia. Do que se passou ali, melhor não saber. Antes de retornar ao carro ele teve de se esconder atrás de uma banca de revistas. Havia um sujeito de escumadeira na mão querendo pegá-lo. O homem gritava palavrões nada abafados em alto em bom som, se é que isso pode ser bom. Zé já atravessara o canteiro central daquela avenida várias vezes, porém nunca perseguido pelo ensandecido homem da escumadeira. Por isso ele não percebeu a corrente estendida ao longo do canteiro central adotado pela clínica de traumatologia. Foi demais para a canela direita e para a mão esquerda. A atendente da clínica olhou para a figura cambaleante que adentrou portas e disse:

- É para não pisarem nos canteiros, mas mantemos convênios!

Ele só conseguiu balbuciar um palavrão resignado.

A manhã já seguia longe quando Zé chegou à rua do trabalho. Ressabiado, atravessou na faixa. Bem na hora que o carro preto de vidros pretos vinha de ré pela contramão. Ele sentiu algo elevá-lo do solo enquanto tentava apoiar-se com a única mão livre de tipóias. O carro preto não parou nem para ver a cor de quem havia atropelado.

Aquele dia foi longo, muito longo, excessivamente e extraordinariamente longo. A moça de plantão na funerária pintava as unhas, quando ele entrou e perguntou:

- Vocês mantêm convênios?

- Sim, certamente, seria para algum parente?

- Não, é para mim!

Aquele realmente não foi um bom dia.

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