16.10.08

477 - A classe média XV - Um minuto

Foto: Wikipedia
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A classe média XV – Um minuto

Por Paulo Heuser


A chuva constante não dava trégua a Linoberto, e ele passou boa parte da manhã desatolando o crescido terneiro, que insistia em voltar ao brejo. Por outro lado, não havia como trabalhar na roça, pois estava tudo empapado. Nesses dias havia uma quietude anormal no emergente município do Lado de Cá do Cinamomo – o último bastião da classe média não-estatística do IBGE. Os únicos sons que eventualmente quebravam o silêncio vinham do sino da igreja, do veloz Renault Dauphine da beata Dona Clotilde ou dos mugidos extemporâneos do atolado e crescido terneiro. Os habitantes dedicavam-se às lides da casa e ao trato dos animais. Com aquela chuva, tanto os animais quanto as pessoas recolhiam-se ao aconchego de casa. Das chaminés saíam rolos de fumo, indicando que, ou acederam o fogão à lenha, ou alguém acendeu o palheiro de fumo em corda.

Linoberto largou o teimoso e crescido terneiro e foi até o Bar, Churrascaria e Borracharia 12 Irmãos, onde já se encontravam o Padre Antão e os 11 irmãos vivos do 12 Irmãos. O Sétimo – o prefeito – recebera ligação da Capital informando da chegada iminente do Estranho – o único representante do Governo capaz de encontrar o Lado de Cá do Cinamomo. A chegada estava prevista para as 11 horas, porém já era meio-dia e nada do homem, que certamente ficara preso em algum atoleiro na estrada infame. O grupo almoçou por ali mesmo. Foi somente às 14h27 que o jipe do MinCaC – Ministério dos Call Centers apareceu espalhando barro. Não só o jipe estava embarrado, condição estendida aos tripulantes. O Estranho veio acompanhado do Secretário Nacional de Temporização do Atendimento – Sr. Fernando Orlando.

Após as apresentações iniciais, o Sétimo serviu o resto do almoço aos visitantes. O Fernando Orlando olhava desconfiado para o prato e perguntou sobre aquele cilindro recoberto com pequenas pastilhas amarelas.

- É milho. – respondeu-lhe o Sétimo.

- Ah, bem que achei estas coisinhas amarelas familiares, mas o que é o cilindro do meio?

- É um sabugo! –respondeu-lhe Linoberto, enquanto o Sétimo tentava descobrir o que seria um cilindro.

- E para que serve?

O Sétimo já ia discorrer sobre as múltiplas utilidades do sabugo, mas foi interrompido pelo Linoberto.

- Dá suporte ao milho, digamos assim.

- Oh, que coisa inteligente! – assombrou-se Fernando Orlando.

Após mais algumas singelas explicações a respeito daqueles grãos pretos servidos com o arroz, o homem usou o enorme guardanapo xadrez que cobria a mesa e revelou o motivo da sua visita:

- O Ministro assinou portaria limitando o tempo de acesso aos call centers em um minuto! Estamos fazendo a divulgação da portaria porque soubemos que o Diário Oficial não chega aqui.

- Chega, trazido pelo rapaz que leva o leite à Capital. – disse o Sétimo, e completou: - Mas é muito chato. Está cheio de coisas miúdas que sempre dizem a mesma coisa.

- Bem, de qualquer forma, vocês terão de estar adaptando seus call centers à nova realidade. Além do tempo, deverão estar observando outras normativas sobre os menus de opções e o atendimento humano!

- Isso é um refrigerante? – perguntou o Sétimo.

Do brejo veio um longo mugido do crescido e atolado terneiro, talvez de frustração, talvez de imobilização.

Linoberto esperou o fim do longo mugido e falou:

- Não temos call centers do Lado de Cá do Cinamomo.

- Percebo. Vocês estão chamando os call centers de CACs. – disse Fernando Orlando.

- Não, nós não temos nenhum tipo de atendimento por telefone.

- Impossível! Como vocês estão pedindo pizzas? – o homem não cabia no seu gerúndico espanto.

- Nós não pedimos pizzas, as fazemos em casa.

- Como vocês movimentam seus cartões de crédito?

- Aqui não tem cartão de crédito. – disse o Sétimo – Aqui chamamos de caderneta do armazém. Como o único armazém é este, o caderno é meu. Quando querem movimentar, eu escrevo.

- E os serviços das operadoras de telefonia? – o homem já demonstrava nervosismo.

- Aqui só há esse telefone do balcão do 12 Irmãos. Quando estraga, o que acontece o tempo todo, o rapaz do leite pede o conserto lá na Capital. – disse o Sétimo.

Fernando já estava demonstrando irritação por não conseguir finalizar sua missão de enquadramento do Lado de Cá do Cinamomo na nova portaria ministerial.

- Devo lembrá-los de que a multa para quem ultrapassar o minuto poderá chegar a um milhão de reais!

- Certo, porém não há o que enquadrar nessa portaria. – alegou Linoberto.

- Lamento, mas uma portaria é uma portaria e deve ser aplicada!

- Entendi. A portaria é besta, mas é uma portaria. – disse Linoberto.

Maria ouvia o mugido ao longe, quando Linoberto chegou a casa. Ela ouvira falar da reunião no 12 Irmãos e esperava notícias.

- E então, Lino? Corremos algum risco com a tal de portaria?

- Corríamos. Agora, não mais.

- O que houve?

- Eu perguntei ao sujeito do Ministério e ao Estranho sobre a fiscalização da nova portaria. Ele disse que qualquer cidadão poderá denunciar a violação da portaria ao SNDC, ao MP, ao Procon ou à DP.

- Nossa, quanta sigla! E daí, Lino?

- Eu lhes perguntei sobre as penalidades aplicáveis àqueles órgãos, caso não atendam em um minuto.

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