17.3.09

509 - O enxofre do Rio Aqueronte

Ilustração: Gustave Doré
para a Divina Comédia
O enxofre do Rio Aqueronte

Por Paulo Heuser


Que Ele me perdoe, pois usei Seu nome em vão. Usei várias vezes, não o nego. Pedro negou a Jesus três vezes. Eu usei diversas vezes o nome Dele em vão. Aconteceu por acaso, sem premeditação. Eu havia ficado sem armas na minha interminável e solitária cruzada contra os call centers. Os famigerados vendedores de qualquer coisa já estavam levando vantagem, pois eu havia exaurido meu acervo de desculpas inesperadas para a não-adesão a seja lá o que fosse. Eu precisava desesperadamente de novos argumentos. Uma mudança para a Nova Zelândia já não era argumento, pois a globalização levou os provedores a qualquer lugar.

Aconteceu, simplesmente. Eu estava sozinho em casa. Bem, não exatamente sozinho. Havia o cachorro. A noite já avançava sobre o último resquício do crepúsculo, e Vênus já triunfava sobre o Sol. Acendi a lâmpada do abajur para continuar minha despretensiosa leitura das novidades do Almanaque Iza. Quem lê almanaque Iza não liga a luz, a acende. O tique-taque do relógio de quartzo abafava o ronco suave do cachorro, enquanto a brisa morna do fim de tarde banhava o ambiente.

A atmosfera de tranqüilidade tremada foi subitamente agitada pela campainha digital do telefone. Quebrou-se a redoma de paz. Atendi, a contragosto. O cachorro deixou de roncar, e o tique-taque do relógio se desvaneceu. Era a moça d’água. Não a sereia. Era a moça que queria me demover de cancelar o contrato de provimento de água purificada. Supus tratar-se de moça, pela voz e pela profissão. Eles não põem velhas em call center, pois elas se apiedam das vítimas.
O “não” não era resposta que a fizesse esmorecer. Havia de ter uma razão para não querer. Minhas razões não eram suficientes e bastantes para fazê-la desistir. Eu já temia ter de comprar ar, tal era a insistência dela. Ela me explicava que, depois do oxigênio, a água seria a coisa mais importante para a manutenção da vida. Eu me sentia sufocado e desidratado. Foi então que aconteceu. Foi algo espontâneo, nada planejado. Gritei:

- Aleluiah! – com agá e tudo.

Silêncio, do outro lado da linha. Silêncio é sinônimo de despreparo, quando o assunto é call center. Significa que a operadora não estava preparada para lidar com essa informação. Aproveitei a momentânea vantagem e emendei:

- Louvado seja!

- (?)

- Afaste de mim esse cálice! – urrei com voz de profeta de Hollywood.

- Bem, senhor, nós oferecemos um sistema de purificação que dispensa cálices, e a água poderá ser servida onde quiser. – ela aparentemente se refez do susto.

- Enxofre! Essa água contém o enxofre do Rio Aqueronte, coisa do Indizível Inominável! – terminei quase em sussurro, como que fazendo secreta denúncia.

Ela não se deixou abalar, dessa vez:

- Não é enxofre, senhor, é flúor...

- Flúor, enxofre, são todos parentes próximos! Halogênios, calcogênios, são todos muito próximos na tabela periódica dos elementos do Senhor!

A partir de então se travou um diálogo de loucos e insanos. A coitada tentava encontrar argumentos, no seu manual, e eu fazia descer o enxofre do Inferno, através da pregação de um suposto Pastor Aramar, nome emprestado do simpático motorista do táxi que eu tomara pela manhã. Entre aleluias e louvações, triunfei. Inferi que, contra argumentos religiosos, futebolísticos e políticos, ninguém tem argumentos. São questões de fé.

A paz retornou, o cachorro voltou a roncar, o tique-taque do relógio ficou novamente audível e a tranqüilidade tremada encheu o ambiente, que se esvaziou instantaneamente, ao novo soar da campainha do telefone. Novamente atendi, a renovado contragosto. Era o Pastor Aramar.

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13.11.08

491 - A vida em dois turnos


Foto: Wikipedia
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A vida em dois turnos

Por Paulo Heuser


Eu desconfio que o aumento expressivo do consumo de antidepressivos, observado nos últimos quatro anos, tem a ver com os serviços que o pessoal contrata. As pessoas não têm mais tempo para nada. Levantam-se, comem, correm, trabalham, correm, comem,.... e dormem. As agendas estão excessivamente preenchidas. Há quem administrem bem essa rotina, mas ninguém consegue administrá-la quando é forçado a solicitar serviços dos provedores destes.

Problemas com provedores de Internet, TV, água, e a entrega de móveis e outros trastes passou a ser feita por agendamento em turnos. Quem solicita os serviços é obrigado a permanecer em casa, por turnos inteiros, à espera de técnicos ou entregadores, que às vezes não vêm. Não há como agendar visitas com horário determinado. Os limites dos turnos não ajudam. Há turnos da manhã que iniciam às nove horas e se encerram às 13 horas. Os turnos da tarde podem iniciar às 11 horas e terminar às 19 horas. Ou seja, há turnos de oito horas! Quem ainda pode se dar ao luxo de permanecer oito horas à espera de um técnico? Sempre há como deixar outra pessoa, mas esta nem sempre saberá dar as informações necessárias ou fiscalizar a execução do serviço. Além do que, eles não aceitam que fique apenas o cachorro.

A moda do agendamento em turnos iniciou com os provedores de serviços de telecomunicações e estendeu-se a uma gama enorme de outros serviços. Até se entende que todos busquem a maximização dos lucros, mas há limites para tanto. O que vemos é a plena utilização dos recursos do provedor e a plena ociosidade dos clientes. Estes só podem mesmo ficar deprimidos. Senão vejamos, o sinal da Internet passa a cair na segunda-feira. Ligo para o 4 mil-e-tanto e consigo agendamento para quarta-feira, no turno da manhã. Viro daqui e dali e consigo que o cunhado do zelador fique de campana. Na terça-feira dá problema no sinal da TV. Sem problema, há horário para agendamento na quinta-feira à tarde. Tarde que vai até as 19 horas, mas inicia às 11 horas. O cunhado do zelador não pode ficar, pois comprou uma geladeira que será entregue no mesmo turno. Ele lembrou que o filho do quitandeiro não tem aula à tarde. Se a geladeira estiver abastecida, ele fica. Há solução para tudo. Droga, o ar-condicionado pifa na terça-feira à noite. Os técnicos poderão buscá-lo na sexta-feira, no turno da manhã, que inicia às 7 horas e se encerra às 14 horas. O filho do quitandeiro não poderá ficar porque entregará o rancho do cunhado do zelador. Este não poderá ficar porque deverá esperar pelo rancho. Ainda bem que a sogra do síndico pode. O problema é que ela sofre de Alzheimer e poderá se esquecer de onde mora. Será necessário arrumar alguém que lhe fique lembrando do endereço.

Só há uma solução. Contratarei um pintor para passar uma demão de tinta na sala de estar. Ele poderá esperar pelos demais. Bem, ainda restou um problema. Quem esperará pelo pintor?


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16.10.08

477 - A classe média XV - Um minuto

Foto: Wikipedia
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A classe média XV – Um minuto

Por Paulo Heuser


A chuva constante não dava trégua a Linoberto, e ele passou boa parte da manhã desatolando o crescido terneiro, que insistia em voltar ao brejo. Por outro lado, não havia como trabalhar na roça, pois estava tudo empapado. Nesses dias havia uma quietude anormal no emergente município do Lado de Cá do Cinamomo – o último bastião da classe média não-estatística do IBGE. Os únicos sons que eventualmente quebravam o silêncio vinham do sino da igreja, do veloz Renault Dauphine da beata Dona Clotilde ou dos mugidos extemporâneos do atolado e crescido terneiro. Os habitantes dedicavam-se às lides da casa e ao trato dos animais. Com aquela chuva, tanto os animais quanto as pessoas recolhiam-se ao aconchego de casa. Das chaminés saíam rolos de fumo, indicando que, ou acederam o fogão à lenha, ou alguém acendeu o palheiro de fumo em corda.

Linoberto largou o teimoso e crescido terneiro e foi até o Bar, Churrascaria e Borracharia 12 Irmãos, onde já se encontravam o Padre Antão e os 11 irmãos vivos do 12 Irmãos. O Sétimo – o prefeito – recebera ligação da Capital informando da chegada iminente do Estranho – o único representante do Governo capaz de encontrar o Lado de Cá do Cinamomo. A chegada estava prevista para as 11 horas, porém já era meio-dia e nada do homem, que certamente ficara preso em algum atoleiro na estrada infame. O grupo almoçou por ali mesmo. Foi somente às 14h27 que o jipe do MinCaC – Ministério dos Call Centers apareceu espalhando barro. Não só o jipe estava embarrado, condição estendida aos tripulantes. O Estranho veio acompanhado do Secretário Nacional de Temporização do Atendimento – Sr. Fernando Orlando.

Após as apresentações iniciais, o Sétimo serviu o resto do almoço aos visitantes. O Fernando Orlando olhava desconfiado para o prato e perguntou sobre aquele cilindro recoberto com pequenas pastilhas amarelas.

- É milho. – respondeu-lhe o Sétimo.

- Ah, bem que achei estas coisinhas amarelas familiares, mas o que é o cilindro do meio?

- É um sabugo! –respondeu-lhe Linoberto, enquanto o Sétimo tentava descobrir o que seria um cilindro.

- E para que serve?

O Sétimo já ia discorrer sobre as múltiplas utilidades do sabugo, mas foi interrompido pelo Linoberto.

- Dá suporte ao milho, digamos assim.

- Oh, que coisa inteligente! – assombrou-se Fernando Orlando.

Após mais algumas singelas explicações a respeito daqueles grãos pretos servidos com o arroz, o homem usou o enorme guardanapo xadrez que cobria a mesa e revelou o motivo da sua visita:

- O Ministro assinou portaria limitando o tempo de acesso aos call centers em um minuto! Estamos fazendo a divulgação da portaria porque soubemos que o Diário Oficial não chega aqui.

- Chega, trazido pelo rapaz que leva o leite à Capital. – disse o Sétimo, e completou: - Mas é muito chato. Está cheio de coisas miúdas que sempre dizem a mesma coisa.

- Bem, de qualquer forma, vocês terão de estar adaptando seus call centers à nova realidade. Além do tempo, deverão estar observando outras normativas sobre os menus de opções e o atendimento humano!

- Isso é um refrigerante? – perguntou o Sétimo.

Do brejo veio um longo mugido do crescido e atolado terneiro, talvez de frustração, talvez de imobilização.

Linoberto esperou o fim do longo mugido e falou:

- Não temos call centers do Lado de Cá do Cinamomo.

- Percebo. Vocês estão chamando os call centers de CACs. – disse Fernando Orlando.

- Não, nós não temos nenhum tipo de atendimento por telefone.

- Impossível! Como vocês estão pedindo pizzas? – o homem não cabia no seu gerúndico espanto.

- Nós não pedimos pizzas, as fazemos em casa.

- Como vocês movimentam seus cartões de crédito?

- Aqui não tem cartão de crédito. – disse o Sétimo – Aqui chamamos de caderneta do armazém. Como o único armazém é este, o caderno é meu. Quando querem movimentar, eu escrevo.

- E os serviços das operadoras de telefonia? – o homem já demonstrava nervosismo.

- Aqui só há esse telefone do balcão do 12 Irmãos. Quando estraga, o que acontece o tempo todo, o rapaz do leite pede o conserto lá na Capital. – disse o Sétimo.

Fernando já estava demonstrando irritação por não conseguir finalizar sua missão de enquadramento do Lado de Cá do Cinamomo na nova portaria ministerial.

- Devo lembrá-los de que a multa para quem ultrapassar o minuto poderá chegar a um milhão de reais!

- Certo, porém não há o que enquadrar nessa portaria. – alegou Linoberto.

- Lamento, mas uma portaria é uma portaria e deve ser aplicada!

- Entendi. A portaria é besta, mas é uma portaria. – disse Linoberto.

Maria ouvia o mugido ao longe, quando Linoberto chegou a casa. Ela ouvira falar da reunião no 12 Irmãos e esperava notícias.

- E então, Lino? Corremos algum risco com a tal de portaria?

- Corríamos. Agora, não mais.

- O que houve?

- Eu perguntei ao sujeito do Ministério e ao Estranho sobre a fiscalização da nova portaria. Ele disse que qualquer cidadão poderá denunciar a violação da portaria ao SNDC, ao MP, ao Procon ou à DP.

- Nossa, quanta sigla! E daí, Lino?

- Eu lhes perguntei sobre as penalidades aplicáveis àqueles órgãos, caso não atendam em um minuto.

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8.9.08

457 - 2391-0010



Fonte: Wikipedia
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2391-0010

Por Paulo Heuser


Ah, como esperei por esta manhã de sábado! Ansiava por uma hora a mais de sono, que fosse. Apenas uma hora a mais. O maldito resfriado veio forte, e com esse clima nada melhor do que curtir a cama. Nestes dias a cama se parece com o paraíso, principalmente quando a chuva bate na janela. Então o maldito telefone tocou. Quem ligaria a essa hora da manhã? Seriam más notícias ou engano. Ninguém me acordaria a essa hora se não tivesse um assunto muito importante a tratar. Era uma máquina.

Uma máquina me ligou! Já sou obrigado a falar com máquinas quando utilizo os serviços dos maravilhosos SACs, Call Centers ou seja lá que nomes lhes dão. Porém, desde que o Lula ligou, na eleição anterior, nenhuma outra máquina me ligou. Desta vez não foi o Presidente pedindo votos. Foi a 2391-0010. A máquina de voz feminina não queria comprar votos. Ela queria me vender novas amizades pelo preço de uma ligação local. Acordei, a contragosto.

O Lula eu ainda posso xingar, ligando para alguma ouvidoria. Posso alegar que nunca ninguém antes neste País me ligou tão cedo para pedir voto. Mas, contra uma máquina anônima, o que posso fazer? Ela não tem nome nem endereço. Tenho o número do telefone dela – 2391-0010 -, o que em nada me ajudaria, pois seu eu ligasse para ela, cairia na armadilha. É exatamente o que ela queria que eu fizesse. Faria novos amigos, seu eu ligasse? Amigos baratos, sem dúvida, pois custam o mesmo que custa uma ligação local. Novos amigos em promoção, portanto.

Já que eu estava acordado, resolvi tentar encontrar o dono da máquina. Foi então que descobri que o Tio Google não estava nem aí. Culpa do meu acesso Internet que apresentava forte soluço, fazendo eco a minha tosse. De nada adiantou segurar a tosse, pois o soluço continuava. Fazer o quê! Disquei para o SAC do provedor e segui o menu apresentado pela... pela... máquina! Outra máquina, esta muito simpática.

- Disque 1 para problema de sinal da Internet... Disque 2 para problema com o sinal da TV... Disque 3 para problema com o telefone... (esta é curiosa, discar como?)... Disque 4 para problema com mais de um dos anteriores... Disque 5 para problema com todos os anteriores... Disque 6 se você é deficiente auditivo... Disque 7 se você esqueceu o que eu falei antes... Disque 8 para ouvir musiquinha... Disque 9 para falar com alguém, após ouvir a musiquinha, é claro.

Teclei 1 e descobri que outra máquina me atenderia. Essa bem mais informal que a anterior, pois veio falando direto na íntima demais segunda pessoa do singular. Íntima demais para uma máquina. Foi também uma máquina esperta, pois captou logo o problema. Ela intercalou alguns “entendo” no diálogo (?). A coisa terminou por aí. As ligações foram interrompidas pelo tu-tu-tu-tu. Fiquei sem atendimento, mas não fiquei sem Internet. Tenho uma vizinha muito prestativa. Ela empresta xícaras de açúcar, farinha, ovos e sinal de Internet sem fio.

Vida moderna é assim, não sei o nome dela, apenas o sobrenome. Algo como dlink.

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