29.11.07

O pesadelo



O Pesadelo, Henry Fuseli

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O pesadelo

Por Paulo Heuser


Pesadelo é como montanha russa. Podemos apenas rezar para que termine logo. O que incomoda mesmo nos pesadelos é o papel de meros passageiros, que assumimos. Os piores pesadelos ocorrem após os rodízios de pizza, já que dificilmente alguém comeria feijoada durante o jantar. Descobri que os mexilhões ao alho e óleo não causam pesadelos. Eles simplesmente impedem o sono. E sem sono, não há pesadelo. De qualquer forma, após o rodízio de pizzas aos 28 queijos, vem aquele sono irresistível.

Mal caímos no sono e já estamos descendo as Cataratas do Iguaçu a bordo de um pedalinho em forma de cisne, com o Pee-Wee Herman ao timão. E, como num pesadelo tudo sempre pode piorar, o aquecimento global secou as cataratas. Não há escapatória, sem acordarmos. Há pesadelos tão doidos que, mesmo dormindo, percebemos que estamos sonhando. Imagine o Chávez dançando uma valsa com o Evo, enquanto o Bush e o Ahmadinejad – do Irã – trocam receitas de bombas atômicas. Sabe como é, um prefere as de urânio, o outro, as de plutônio.

Estamos quase entrando no mês das compras de Natal. Milhões de consumidores natalinos só pensam na mesma coisa: comprar, comprar e comprar. E comprar. Poucos sabem sequer por que estão comprando. Mas, se todos compram, por que não comprar também? Todos vão às compras exatamente na hora em que também vamos. Essas coincidências são incríveis. Esse é um pesadelo acordado. Os pesadelos acordados podem ser minimizados, com algum planejamento. Contudo, podemos nos lembrar, na última hora, daquele celular de conta, por um real, para a vovó. Damos o celular, e a conta é por conta da vovó. Sábio presente, bolado por um grego chamado Odisseu. Da versão eqüina original, evoluiu para essa pequena maravilha da comunicação. O espírito do presente, porém, restou intacto.

Um célebre pesadelo acordado foi o grupo musical Menudo. Dizia-se que mesmo os homens mais treinados na tolerância à tortura confessariam qualquer coisa após ficarem trancados numa sala ouvindo Menudos ininterruptamente. Semelhante pesadelo ocorre nos bailes de Carnaval infantis, com o célebre Atirei o Pau no Gato, agora em versões politicamente corretas.

Meu mais novo pesadelo vem pela TV a cabo. Não consigo mais ligá-la. Suo frio, começo a tremer e desisto. Comprei uma antena interna, do camelô, aquela que tem um encaixe que não se encaixa em lugar nenhum, e passei a assistir à TV aberta. Troquei o Chávez pelo Chaves. Ambos são divertidos, porém o segundo não é perigoso. E não corro mais o risco de enlouquecer com o pesadelo da TV a cabo. Nem sei o nome daquela mulher que me enlouquece. Ela começa a falar quando aperto a tecla que liga o decodificador. Depois, não pára mais. Após a ducentésima quadragésima oitava vez que ela me mandou apertar a tecla vermelha após apertar... - Qual era mesmo? Ou seria a azul, após o asterisco? -, não suportei mais.
À medida que a repulsa provocada pela voz crescia, tentei diversas formas para abafá-la. Usei a clássica técnica adotada pelas crianças que não querem ouvir alguma coisa. Tapei os ouvidos e comecei a falar ininterruptamente, em voz alta. Porém, com as duas mãos ocupadas, não consegui apertar a tecla que me levaria a um canal seguro. Procurei alguma configuração que me permitisse atalhar diretamente a outro canal. Nada, em vão. Liguei fones de ouvido ao aparelho de som que, por sua vez, estava desgraçadamente ligado àquela caixinha de onde provém a tal da voz que nos instrui sem parar. Ouvi aquela voz amplificada, pesadelo também amplificado.

Por fim, comprei um daqueles abafadores acústicos para flanelinhas de Boeing 747. Funcionou, porém descobri um mundo silencioso que invariavelmente me levava ao sono recheado de pesadelos com mulheres que mandavam pressionar o * após do vermelho, ou seria o amarelo após o verde?


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25.11.07

Travessa Venezianos


Foto: Paulo Heuser
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Travessa Venezianos

Por Paulo Heuser


Cultivo o hábito, talvez incomum, de fotografar portas e janelas. Também fotografo prédios inteiros, ocasionalmente. Porém, as portas e janelas traduzem o rosto da casa. São bocas e olhos das casas. Conhecemos as pessoas, em parte, pela sua expressão. Assim são as casas. Rachaduras são as rugas, marcas do tempo, marcas de expressão, como muitos preferem. As fachadas das casas são rostos. Fachadas decadentes não necessariamente traduzem abandono. Podem ser fruto do sofrimento ou das dificuldades enfrentadas pelos que vivem lá.

As casas que apresentam marcas de expressão são as mais fotografáveis, pois aparentam ter história. O que haverá por trás daquelas portas decadentes e das venezianas que já não fecham mais? Ali nasceram, ali morreram. Alguém ainda viverá naquela casa, apesar da evidente aparência de abandono?

Talvez nenhum outro (jamais, diria o Presidente) bairro de Porto Alegre tenha casas com a expressão daquelas da Cidade Baixa. Lá as rugas estão aparentes, propositadamente ou não. Rugas podem dar charme ao rosto. Das casas, inclusive. Se o bairro hoje vive noites de inferno, bem diferentes daquelas noites do tempo do Chão de Estrelas, da boemia que se foi, as manhãs de domingo convidam à caminhada pelas ruelas que se confundem e se cruzam. Morei na Cidade Baixa na década de 70. Pensei que conhecia aquele universo oculto atrás das principais ruas e avenidas. Ledo engano.

Aventurei-me sem rumo, neste domingo. Larguei o carro numa rua, cujo nome não sei, e caminhei a esmo, de câmera em punho. Já havia clicado inúmeras fotos, quando cheguei na esquina da rua que desconheço com a Travessa Venezianos. Lembrei-me do nome porque um amigo fotógrafo insistia em mandar-me para lá. Sabedor do meu fetiche fotográfico por portas e janelas, dizia para que eu fosse a tal travessa. Como cheguei lá, não sei. Apenas cheguei. Virei na esquina e parei, abobalhado com o cenário que se descortinava perante minhas lentes. Alguém poderia imaginar uma quadra inteira de casas impecavelmente pintadas, sem nenhum tipo de pichação? Todas rentes ao passeio, o que torna o fato ainda mais improvável. Quem fotografa casas em Porto Alegre sabe que devemos puxar para o lado da decadência, pela pichação. Contudo, naquela abençoada travessa todas as casas açorianas se apresentam perfeitamente pintadas, em cores incríveis, cítricas e alegres. Lembrei-me da Colônia de Sacramento, no Uruguai. Forrei o poncho, com fotos. Saí dali extasiado. Nenhuma rua de Porto Alegre apresenta semelhante atmosfera. Voltamos ao início do século XX, numa rua povoada por imigrantes italianos, boleiros, consertadores de guarda-chuvas e carvoeiros. Foi a zona pobre da Rua dos Venezianos. Pois hoje é um raro reduto de limpeza e civilização em meio à decadência generalizada da grande cidade. Dezessete casas compõem o acervo tombado pelo Patrimônio Histórico. Dezessete casas que assombram pela simplicidade arquitetônica, de total despojamento, que provam que o belo pode ser minimalista. Casas sem eiras, beiras nem tribeiras. Casas de porta e janela que são mais belas que qualquer mansão. São como os rostos que são apenas belos, com maquiagem, sem maquiagem. Lembram a Isabella Rossellini.

Finda a quadra, voltei à cidade. Ficaram para trás as casas da Travessa Venezianos. Voltei ao Brasil, tão carente de coisas simples e limpas como aquela travessa de 17 casas.


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21.11.07

A classe média III - Besta lex, sed lex!



Foto: Wikipedia

A classe média III – Besta lex, sed lex!


Por Paulo Heuser




Foi na terça-feira. Já crescido, o terneiro mugia alegremente. Linoberto não percebeu a chegada do novo estranho, o terceiro em onze anos, pois estava ocupado com as lides campeiras, não necessariamente campesinas. Aquele não era um estranho qualquer. Era um estranho oficial, enviado pelo Governo. Um Estranho (maiúsculo), portanto. Esse não bebia, pois estava em missão oficial. Aguardava a chegada do Linoberto, sentado na sombra sob a parreira. O sol já nem incomodava mais, pois já se punha, prevendo a volta do Linoberto. Ele passara, como de hábito, pelo Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos.

O Estranho estivera na prefeitura. O prefeito, sétimo irmão dos 12, ouviu todo o palavrório oficial, não entendeu nada, e mandou o Estranho falar com o Secretário de Administração e Outros Assuntos Extraordinários em Geral: Linoberto. A presença de alguém do governo era um assunto definitivamente extraordinário. Fazia 11 anos desde a última vez em que tentaram trazer alguém do Governo, por ocasião do nascimento do terneiro. Mandaram convite oficial para a festa. Não veio nem resposta. E agora surgia alguém, espontaneamente.

- Boa tarde, Seu Linoberto! Sou representante da ONG Vaca Feliz e fui enviado pelo órgão que trata da saúde da população. – disse o Estranho, apresentando um vistoso crachá.

Linoberto chegou a acreditar, por um femtossegundo, que finalmente conseguiriam verba para contratar um veterinário. Porém, a esperança desvaneceu-se logo, mesmo antes do homem continuar a falar. Lembrou-se de que não acreditava mais em Papai Noel. Seus pensamentos voltaram da Lapônia, quando o Estranho voltou a falar.

- O senhor deve ter acompanhado o noticiário sobre a fraude do leite, pois vejo que tem antena parabólica.

- Sim. – respondeu-lhe enquanto começava a pensar onde o Estranho queria chegar.

- Pois então, Seu Linoberto, descobrimos que vocês bebem do próprio leite que produzem aqui. Soubemos através do rapaz que leva o leite de vocês para a indústria.

- Claro, o leite fresco é outra coisa! Dá para bebê-lo ainda morno. Melhor que isso, só se for com pão com banha!

- O Governo está preocupado com a saúde de vocês, Seu Linoberto. Por isso estou aqui. Nossa ONG foi contatada para elaborar, aprovar e fazer cumprir a Lei de Responsabilidade Láctea. – o Estranho manteve tom de seriedade.

- Que lei é essa? – perguntou Linoberto, intrigado?

- É a lei que regula o consumo de leite. Para garantir a saúde da população, só é permitido o consumo de leite de caixinha.

Como que percebendo a gravidade da situação, o terneiro, já crescido, mugiu.

- Mas essa lei é muito besta! – Linoberto não se conteve.

- Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – disse o Estranho, deixando transparecer a desaprovação da conduta de Linoberto.

- Ora, o leite foi adulterado depois que saiu dos produtores. A maracutaia foi feita para lá do cinamomo. Aqui nós só tomamos leite da vaca que conhecemos, olho no olho.

- Olhares enganam! A vaca pode estar enganando vocês...

- É, e ela vai misturar soda cáustica e água oxigenada no leite? – Linoberto estava realmente indignado.

- Nunca se sabe, nunca se sabe. Pode haver um complô conta vocês... sussurrou o estranho, em tom de conspiração. E continuou:

- De qualquer forma, lei é lei. Terão de cumpri-la. O governo está disponibilizando uma verba para auxiliá-los na compra do leite de caixinha para os carentes. A única forma que o Governo encontrou para garantir a qualidade do leite foi essa. Todos deverão beber do leite padronizado e aprovado pela fiscalização na fábrica.

- Mas, aqui não há carentes, todo mundo é da classe média. O carente mais próximo está do outro lado do cinamomo.

Já crescido, o terneiro mugiu novamente.

- O senhor parece não entender, numa típica atitude de classe média. Se a lei diz que há carentes, é porque há carentes. Ponto. Se o município não cadastrar pelo menos um carente no programa, estarão descumprindo a lei. E há severas penalidades para os refratários. Besta lex, sed lex!

Linoberto precisava de tempo para pensar. Pediu a Maria que trouxesse uma garrafa da “boa”, para oferecerem ao Estranho.

- O que é isso? Estou em serviço, portanto não bebo! – o Estranho parecia indignado.

- Ora, é apenas um licorzinho digestivo, de losna e carqueja, coisa local, boa para as vísceras. Além do quê, o sol já se pôs, portanto o senhor já deve ter saído do serviço.

- Bem, pensando assim, que mal faz? – o Estranho pareceu aliviado.

O alívio desfez-se no primeiro gole. – a expressão mudou do alívio ao desespero. Enquanto o Estranho tentava se recompor, Linoberto pensou numa saída para aquele problema importado do lado de lá do cinamomo.

Alívio é o que transpareceu no rosto de Linoberto, quando o Estranho partiu, aparentemente satisfeito, apesar da boca torta, ao som do mugido do já crescido terneiro. Maria, que perdera o final da conversa, pois fora tratar os animais, perguntou ao marido sobre o estrebuchar do problema.

- E aí, Lino, como é que vamos nos livrar dessa? – ela parecia preocupada, apesar da expressão tranqüilizadora do marido.

- Foi meio complicado, mas logo vi que precisávamos resolver o problema de trás para diante. Primeiro, cadastrei o estranho (minúsculo), o do sindicato, como carente. Com aquele discurso contra as elites, colchão imperialista da classe media, etc, o Estranho acreditou na condição de carente do estranho. Atendida a lei, nesse aspecto, concordei em receber a verba para o leite de caixinha.

- Mas, teremos de tomar aquela droga? – Maria parecia perplexa.

- Não necessariamente. Com a verba para o leite de caixinha, compraremos o produto direto da fábrica. Aí abriremos as caixinhas e derramaremos tudo nos tarros onde levamos o leite para a fábrica, vendendo-lhes de volta, in natura, como se fosse leite das nossas vacas.

- Maria parecia meio confusa:

- Mas, quem abrirá as caixinhas?

- Contratei o estranho (minúsculo), o do sindicato. Ele andava rondando o sacristão, tentando convencê-lo a fundar o sindicato dos sacristãos. Foi bom para todo mundo. O sacristão está badalando sossegado, o padre ficou aliviado e o estranho conseguiu um emprego. Além disso, a lei será cumprida, o João Louco ganhará um bom dinheiro, o Estranho não voltará e o Governo terá cumprido sua missão. Sem falar da ONG, que receberá pelo serviço.

- O que faremos com o leite das vacas? – perguntou Maria.

- Ora, vamos bebê-lo!

Já crescido, o terneiro mugiu. Besta lex, sed lex!

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20.11.07

A classe média II - O sindicato

Foto: Wikipedia

A classe média II – O sindicato


Por Paulo Heuser


Linoberto Classe Média viu-se novamente sentado numa das desconfortáveis cadeiras do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. Viu-se, pois havia um espelho na parede oposta. O copo com a dose da “boa” repousava sobre a mesa, entre um e outro gole, prudentemente espaçados. Repetiu-se o ritual da chegada do estranho, o mesmo do colchão imperialista. O estranho pediu novamente o mesmo que Linoberto bebia, e assim por diante.

- E aí, já conseguiu mostrar a verdade para alguém?

- Quase, quase! Vocês são meio cabeças-duras, por aqui! – disse o estranho, enquanto fitava o copo, desconfiado.

- É que nós cultivamos a cultura dos nossos antepassados. Não gostamos de novidades. O que está para lá do cinamomo, não nos interessa muito, além do comércio.

O estranho fez uma careta estranha, talvez pela última frase do Linoberto, talvez pela amargura da “boa”. E continuou:

- Esse é o problema! Vocês impedem a revolução proletária! – O estranho elevou o tom de voz. O terneiro, já crescido, mugiu em resposta.

- Hoje ouvi no noticiário o tal de Jabor dizendo que nós somos a classe média confusa e desinformada. – disse Linoberto.

- Não gosto daquele jornalista, pois escreve textos contra a única verdade. É um servo do imperialismo bushista-sarkozysta. Porém, quanto à classe média, tem razão. Dou a mão à palmatória.

- Ou seja, apanhamos de cima e de baixo. – disse Linoberto.

- Pudera, vocês não são pobres nem ricos. Compram ingressos para o canadense Cirque du Soleil (cúmulo do bushismo-sarkozysmo) em prestações. Os proletários não vão, ficam manobrando os carros das elites que vão, e pagam à vista. Vocês vão ao bistrô do Pierre e perguntam se aceitam vale-refeição. Suas mulheres se enchem de cremes contra rugas, enquanto as elites mandam trocar a cara no Pitangy. Vocês põem o lixo em sacos de supermercado. Proletário junta o lixo, enquanto a elite joga fora lagosta vincenda hoje, em sacos de lixo com propaganda de uísque escocês. Vocês põem película escura no vidro do carro, para não serem multados por falar ao celular. Pobre anda de Kadet com todos os vidros abertos, bombando som, enquanto as elites andam com os vidros fechados, falando pelos handsfree.

O terneiro, já crescido, aproveitou a deixa, para mugir. O estranho começou a acreditar que aquilo fazia parte de uma espécie de claque para ridicularizá-lo.

- Pois aqui nós não temos dessas coisas, não. – disse Linoberto, enquanto saboreava mais um gole daquele elixir da amargura.

- Ah, não têm? E o que é aquele sujeito parado do outro lado do balcão? Proletário, não é! É um proprietário, com certeza! Portanto, membro da elite local, que explora a classe média como você, que impede a ascensão das minorias proletárias oprimidas, como aquele sujeito que você mantém trabalhando na sua terra, de sol a sol. – o estranho estava cada vez mais alterado.

O sexto dos 12 irmãos achou que o estranho passara da conta, expulsando-o do bar, restaurante e borracharia. Chamá-lo de proprietário, tudo bem. Porém, chamá-lo de elite local? Ele nem entendia direito o que seria isso. Por via das dúvidas, melhor mandá-lo pastar, desde que não incomodasse o terneiro, já crescido, que mugiu.

Linoberto chegou em casa, com aquele ar de preocupação que Maria bem conhecia. Vira aquela expressão por duas vezes, nos últimos 11 anos. A primeira, quando o terneiro nasceu e o cunhado não pode levar o leite para lá do cinamomo. A segunda, no dia em que o estranho chegou, lhes dizendo que fariam parte da classe média, o colchão de proteção das elites imperialistas degeneradas, bushistas-sarkozystas, com certeza.

- O que foi, Lino? O estranho, novamente?

- É Maria, o Sexto o botou para fora do bar, armazém e borracharia. Aí o estranho procurou teu pai para convencê-lo a fazer greve.

- Meu pai?

- Sim, ele disse que o teu pai é um proletário explorado pelas elites, através de nós, classe média, colchão imperialista decadente.

- Mas, meu pai trabalha na terra que nos deixou, conosco, como família!

- Sei, mas ele disse que isso não muda nada. Camponês sempre é explorado, parente ou não. Estava tentando convencê-lo a fundar um sindicato. Ele traria todo o material necessário, do outro lado do cinamomo.

- Meu pai não aceitou, não é?

- Não, Maria.

- Graças a Deus!

- Bem, tive de lhe fazer algumas concessões. A partir de amanhã, quando assinaremos o acordo coletivo de trabalho, o velho poderá fumar escondido quantas vezes quiser e poderá ir oito vezes por dia até o 12 Irmãos.

O terneiro, já crescido, mugiu.

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14.11.07

A classe média


Vilanova - Tinta China (http://www.grafar.blogspot.com/)
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A classe média


Por Paulo Heuser


Linoberto jogou-se na cadeira do Bar Armazém e Borracharia 12 Irmãos, como fazia em todos os finais de tarde. Esticou os braços e as pernas, no alongamento inconsciente. Foi a senha para um dos 12 irmãos trazer o martelo de losna e carqueja. Aquela bebida deixaria qualquer um com os beiços virados para dentro, feito velha desdentada que chupou limão azedo. Todo mundo, menos o Linoberto e seus colegas de bar. Ele bebeu daquela coisa pela primeira vez quando completou 18 anos. A avô o levou ao 12 Irmãos e pediu dois tragos, solenemente. Reinou o silêncio, enquanto todos esperavam para ver a cara do Linoberto, após o primeiro gole. A reação foi aquela esperada. Desesperou-se, tanto pela queimação quanto pela amargura da bebida. Todos riram, inclusive o avô, e a vida voltou ao normal. Quem inventou a bebida foi o primeiro irmão, dos doze, já falecido. A tradição se manteve. Os fregueses pedem da “boa”. Agora é o sétimo irmão, dos 12, o encarregado pela “boa”.

Distraído pelo amargor do primeiro gole, Linoberto não chegou a perceber a entrada do estranho. O primeiro, desde que a vaca do cunhado dera cria. Não que o estranho anterior viesse ver o terneiro. É que o cunhado do Linoberto não pôde levar o leite, pela primeira vez em 11 anos. Então mandaram o estranho buscá-lo. E o estranho entrou no 12 Irmãos, pediu o mesmo que Linoberto bebia, todo mundo fez silêncio, na expectativa da cara do..., etc, etc. Pois esse novo estranho também perguntou o que Linoberto bebia e pediu o mesmo. Novo silêncio, todos riram, etc. O homem fez a esperada cara de desespero, tão esperada pelos freqüentadores. Essa cara só era vista quando alguém na vila completava 18 anos, ou quando aparecia um novo estranho, o que, pelo visto, não ocorria com muita freqüência.

- Ahnmf... Coisinha fortinha essa! – o estranho conseguiu falar, com a boca retorcida.

- É a especialidade da casa – disse Linoberto.

A conversa iniciou meio mole, com as trivialidades habituais. Linoberto ficou curioso. O que fazia ali aquele novo estranho, já que o seu cunhado não ficava doente desde o nascimento do terneiro.

- Vim mostrar-lhes a verdade. – disse o estranho, enquanto decidia se bebia outro gole da “boa”.

- Ah, já entendi! É um pregador. De qual igreja?

- Não tem nada a ver com igreja! Venho mostrar-lhes a dura realidade sociopolítica deste momento delicado da vida política nacional.

- Ah, agora entendi! Está vendendo plano de saúde... – Linoberto bebeu um longo gole, para espanto do estranho, que ainda não se recuperara do primeiro.

- Não! Venho lhes mostrar o caminho para a verdadeira revolução camponesa!

- Um vendedor de veneno, adubo, arado? - Linoberto estava cada vez mais curioso.

- Vim tirá-los das garras das elites dominantes. Notamos que vocês ignoram completamente o fato de estarem sendo explorados e escravizados pelas elites imperialistas retrógradas. – os olhos do estranho faiscavam.

- Olhe, moço. Nós podemos ser um pouco grossos, sem muito refinamento, completamente dispensável por aqui, mas não somos burros nem ignorantes. Temos antena parabólica, e vemos tudo que acontece depois do cinamomo.

- Antena parabólica? Isso é coisa da burguesia decadente! – a boca do estranho contorceu-se novamente, pois tomou outro gole da “boa”.

- Pode ser, mas a gente precisa ficar sabendo das coisas. Por isso mandamos os filhos à escola. Eu também estudei.

- Então, como podem ignorar a única verdade? Vocês passam fome, enquanto as elites se lambuzam naqueles festins decadentes dos capitalistas imperialistas, vassalos do Bush e do Sarkozy?

- Ninguém passa fome aqui. Nós comemos o que produzimos. Vocês que moram para lá do cinamomo é que passam fome, mesmo comendo. Vocês passam o dia tomando porcarias de refrigerantes, leite de vaca-química e cerveja de fábrica. Vocês comem verduras envenenadas e aqueles lanches, sabe-se lá do quê.
- Veja só o que você está bebendo. Lá há coisa semelhante?

O estranho concordou com Linoberto, pelo menos nesse ponto. Qualquer um que ousasse fabricar esse negócio, para lá do cinamomo, seria preso - elite, burguês ou proletário.

- Sua peremptória negação da única realidade autêntica, proletária, progressista, campesina e... e... democrática - vá lá -, me leva a conclusão que você não passa de outro classe média, único culpado pela manutenção do estado em que se encontra o País. Fonte e sorvedouro de todos os males. A classe média é composta pelos sociopatas que mantêm o colchão de proteção das elites imperialistas contra as ações progressistas das minorias majoritárias que buscam a revolução autêntica, agente restaurador da conformidade das instituições sociopolíticas, tão brutalmente diferenciadas, antes mesmo do descobrimento do Brasil!

- Não sei o que querem restaurar. As coisas para lá do cinamomo sempre foram uma bagunça, antes mesmo de plantarem o cinamomo.

O estranho ficou tão indignado, que bebeu o resto da “boa”, de um só gole. Saiu porta afora, iniciando um discurso defronte o 12 Irmãos. O terneiro, já crescido, mugiu. Linoberto foi para casa, preocupado. Relatou o ocorrido a Maria, sua mulher.

- Ficou muito preocupado, Lino?

- Fiquei, Maria. Fiquei...

- Por quê? O problema não está para lá do cinamomo?

- Hoje está. Mas estou com medo de que cortem o cinamomo, noite dessas.

- E aí as coisas mudarão, por aqui?

- Sim, Maria. Então seremos classe média.

- O que faremos, Lino?

- Sei não. Estive pensando, no caminho do 12 Irmãos até aqui. Hoje descobri que as coisas estão tão ruins, para lá do cinamomo, por nossa culpa. O estranho falou que somos o colchão imperialista acomodado. Somos culpados, desde sempre, pela desgraça dos outros, sei lá de que outros. Mas, não somos tão acomodados como ele pensa.

- Vamos trocar o colchão de molas por outro mais moderno, do tal viscoelástico!

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13.11.07

Santos Antônios



Foto: Wikipedia

Santos Antônios


Por Paulo Heuser




Aconteceu no sábado à tarde, no Mercado. Eu havia ido até lá para comprar camarões e outras coisinhas, como a lingüiça calabresa que faria um calabrês beber a metade do Mar Tirreno para aplacar a ardência. A chuva caia, como seria de se esperar. Encontrei os camarões na peixaria, como também seria de se esperar. Crus, simpáticos, só não consegui olhá-los olho no olho porque alguém lhes arrancara os olhos.

- Boa tarde!
- Boa tarde! Oitocentos gramas desse camarão cru, por favor.

- O senhor já conhece este camarão?
- Errr...Bem, não... – se eu já o conhecesse, fresco não seria, com certeza.

- Este é o camarão Santo Antônio.
- É de Santo Antônio da Patrulha? – pergunte-lhe, admirado.

- Não, o nome é Santo Antônio!
- Ah, bom. Não, não o conhecia.

- Devo avisá-lo, o cheiro dele é mais forte. Porém, o sabor também é.
- Bem, limão deve tirar o cheiro, não é?

- Sim, tira a maior parte.

Na dúvida, levei. Um estranho odor, no interior do carro, já se fez sentir antes mesmo de deixarmos o Centro. Tive que abrir os vidros, apesar da chuva. Chegando em casa, apressei-me em espremer um limão sobre os Santos Antônios, na área de serviço. Pela antecedência, e pela quantidade de limão, teríamos Santos Antônios marinados, para o jantar - por que não? Por precaução, fechei a porta que leva à área de serviço. Também tomei um banho demorado, pois aquele cheiro – eufemismo - parecia ter se impregnado nas roupas e na pele. O porteiro interrompeu meu banho para avisar que alguns gatos rondavam meu carro. Avisou também para tomarmos cuidado com três enormes aves pretas que rondavam a área de serviço. O vizinho tocou a campainha.

- Olá, morreu algum animal doméstico aqui, na semana passada?
- Na semana passada?

- É, para feder tanto, não pode ter morrido hoje, nem ontem!
- Foram os Santos Antônios...

- Céus, de santo casamenteiro passou a santo do divórcio. Ninguém consegue permanecer casado, com esse fedor!

Senti que chegara a hora de uma ação mais drástica. Resolvi refogar os Santos Antônios, na esperança de eliminar o fedor. Se funcionou, não sei. Já estava tudo tão impregnado, que até os sabonetes pareciam cheirar a camarão. Ninguém conseguia encontrar o cachorro. Com os Santos Antônios já refogados, arejei toda a casa. Levei o saco plástico e o embrulho da peixaria para o lixo. Lá pelas sete de noite o cachorro reapareceu. Bom sinal. O porteiro avisou que os gatos e as aves pretas haviam ido embora. Outro bom sinal.

Quando as visitas chegaram, depois das oito, era visível o olhar de espanto delas. Isso que os Santos Antônios já haviam sido refogados há muito. A sinceridade veio da sobrinha-neta, ao ser convidada para entrar na cozinha:

- Eu na entro aí de jeito nenhum! Que fedor!

No fim de contas, tudo deu certo. Os Santos Antônios apresentaram um sabor à altura do cheiro, no bom sentido. Os gatos e as grandes aves pretas não voltaram. Seguiram o caminhão do lixo, naquela noite.




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12.11.07

O rolha


Foto: Wikipedia
O Rolha

Por Paulo Heuser


As rolhas de cortiça vêm da casca do sobreiro, árvore da família do carvalho. O sobreiro deve crescer por 50 anos, para fornecer uma casca com a qual se possam fabricar as melhores rolhas, chamadas amadias. A partir de então, a cada dez anos, a árvore regenera toda a casca, permitindo novas extrações. Os primeiros relatos a respeito da utilização das rolhas para vedação de recipientes originam-se no século I a.C., em Éfeso, Mar Jônico. No século 17, Dom Pierre Pérignon (1638-1715), monge beneditino e tesoureiro da Abadia de Hautvilliers, próxima a Épernay, na região de Champagne, França, criou o vinho espumante que levou o nome da região. Ainda nesse século, o formidável cientista experimental britânico Robert Hooke (1635-1703), da Universidade de Oxford, Inglaterra, publicou, entre outras coisas, um artigo no qual descreveu a célula de cortiça ao microscópio, de sua invenção.

O sobreiro é árvore nativa da Península Ibérica. Portugal concentra aproximadamente 50% da produção mundial de cortiça, em 700 mil hectares de plantações, dividindo-se o resto entre a Espanha e outros países de menor expressão. A partir do século 19 o uso da rolha de cortiça difundiu-se de tal forma que, além dos países ibéricos, França, Itália e Tunísia passaram a plantar e explorar a casca do sobreiro. Mais recentemente, Rússia e EUA também iniciaram o plantio da árvore.

Fico a imaginar como se abriam as garrafas, fechadas com rolhas, antes da invenção do saca-rolha. A solução deve ter passado pela quebra do gargalo. É de se supor que o saca-rolha foi inventado por alguém que queria reaproveitar a ânfora. Dom Pérignon inovou, ao inventar um vinho que dispensava o saca-rolha. Pelo contrário, alguém inventou o segura-rolha, aquele arame que cobre as rolhas das garrafas do champanha.

Hoje a rolha está por toda a parte. Bem como os rolhas. As rolhas vedam garrafas. Os rolhas vedam o acesso aos elevadores e outros locais, alguns bem maiores. O rolha de elevador é a pessoa que descerá por último, mas fica trancando a porta do elevador, impedindo a entrada e a saída. Para facilitar sua ação de fechamento, e dificultar a entrada e a saída dos demais, o rolha vem equipado com mochilas, contendo ou não notebooks, volumosas sacolas de compras, guarda-chuvas semi-abertos e, por que não, lanches. O rolha não olha para trás, parado de frente para a porta, feito piloto italiano que não usa espelho retrovisor – só lhe interessa o que há pela frente. As rolhas são naturalmente surdas. De nada adianta lhes gritar para que saltem das garrafas. Assim também são os rolhas. Surdos, não ouvem os pedidos para que dêem licença a quem quer entrar ou sair do elevador.

Não se sabe exatamente onde e quando surgiram os primeiros rolhas. Há relatos muito antigos, dos fenícios e dos romanos, que narram episódios que sugerem a criação dos primeiros rolhas. Um tal de Salomão escreveu sobre alguns sujeitos que trancavam o embarque nas galeras, aparentemente resistindo ao alistamento para agentes de propulsão dos barcos. Da época da inauguração do Coliseu de Roma vêm os relatos de um sujeito chamado Vespasiano, que descreveu os problemas criados por alguns personagens dos shows, ao trancarem a entrada da arena. Carregavam sacos de ração para leões, espadas, lanças e outras tralhas, impedindo o acesso dos mais afoitos.

Os rolhas - talvez por não encontrarem elevadores suficientes - espalharam-se por outros ambientes, como os bufês de comida. Os autênticos rolhas de bufê são aqueles que sofrem de alguma doença que gera tremedeira compulsiva e tentam servir-se de tomate-cereja usando o garfo, sem perfurá-los, naturalmente. Nos supermercados surgiram os rolhas de corredor e os rolhas de caixa, que se esquecem de pesar a cabeça de alho e resolvem buscar o sorvete, do qual se esqueceram, do outro lado do gigamega-hiper-supermercado, a três quilômetros de distância. Os rolhas também se destacam nos eventos onde há algum tipo de recepção a convidados. Ficam proseando na entrada, relembrando os tempos do jardim de infância dos homenageados que festejam bodas de diamante. Nas festas de casamento, trancam a entrada na recepção, enquanto contam ao noivo as picantes aventuras que viveram, com a noiva dele, nos tempos de colégio.

O alto preço das rolhas de cortiça tem provocado mudanças nas garrafas de vinhos e espumantes não tão sofisticados. Até na França, nota-se o uso das rolhas sintéticas, nas garrafas de vinho que custam até 10 euros (R$ 26,00) nos supermercados. Aí se incluem vinhos bem razoáveis da Borgonha e de Bordô, sem grandes pretensões, porém honestos. Os especialistas torcem o nariz para essas rolhas sintéticas. Sei lá, prefiro um bom vinho com rolha sintética a um vinho ruim com rolha de cortiça natural. Concordo que fica um pouco estranho na hora de se cheirar a rolha, no restaurante. Poderemos encontrar traços fenólicos e de poliésteres?

Das rolhas sintéticas, pouco sabemos. Melhor não cheirá-las. O que dizer dos rolhas sintéticos, então? Os rolhas sintéticos não são necessariamente pessoas. Podem ser aqueles telesserviços atendidos pelas infernais máquinas de auto-atendimento. Quando – e se - finalmente atendidos, nos deparamos com avatares, cuja autonomia decisória se aproxima daquela do sobreiro. Apenas vedam o acesso aos serviços.

Aviso aos estudantes que porventura caíram neste texto, após pesquisa através do Google: Procurem uma enciclopédia decente!


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7.11.07

O passaporte


Foto: Paulo Heuser
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O passaporte

Por Paulo Heuser


Domingo me embrenhei no meio do mato. Adoro estradas vicinais em meio à mata e à serra. Novamente deixei o asfalto para trás e percorri uma dessas trilhas maravilhosas onde o ruído se resume ao chilrear dos pássaros, à água escorrendo entre as pedras dos córregos e ao sussurro do vento nas folhas do mato fechado. O cheiro de mata molhada e o verde intenso da primavera completam o quadro. A estradinha se estreitava cada vez mais, exigindo redobrada atenção no sobe e desce das curvas da serra. Ar-condicionado desligado, sons e cheiros invadiam o carro.

Eu pretendia chegar a Boa Vista, partindo da Vila Nova, junto ao Taquari-Mirim. Porém, errei em alguma encruzilhada, indo à direita onde deveria ter ido à esquerda. Depois fiquei sabendo que deveria ter seguido reto naquela bifurcação ao lado do açude. Perdido sem o saber, segui morro acima e morro abaixo, naquela infinita sucessão de curvas fechadas, cada vez mais fechadas. Temi pela presença de outro carro. Não haveria espaço para dois naquela estrada extremamente estreita.

Convenci-me que estava perdido quando percebi que já deveria ter cruzado pela Linha Boa Vista há mais de hora. Continuava subindo e descendo, serpenteando em meio àquela estrada. Quase colidi com a vaca do Alirípio. Espalhei seixos de rio, que cobriam a estrada, para todos os lados, enquanto desviava da vaca estacionada. Vaca e Alirípio se espantaram igualmente, ao me ver. Apesar do susto, fiquei feliz ao encontrá-los, pois fazia muito que procurava, em vão, alguém para pedir informações sobre meu paradeiro. Repentinamente, todas as casas haviam sumido da beira da estrada. Apenas o rio parecia seguir seu curso, e o da estrada. Em meio à poeira levantada pela frenagem, desci do carro e cumprimentei o Alirípio, tão jovialmente quanto consegui, tento em vista as circunstâncias do encontro. Ele não sorriu, nem respondeu o cumprimento. Limitou-se a pedir meu passaporte.

- Passaporte? Não pode ser a Carteira de Habilitação? – perguntei-lhe, desconcertado.

- Não, ela só é aceita no Brasil. Aqui o senhor precisa apresentar o Passaporte e a Habilitação Internacional para dirigir, além de preencher o formulário da imigração.
Alirípio não apresentava aquele sotaque característico da colônia germânica, apesar do mugido da vaca soar definitivamente autêntico. Pensei, lá com os meus botões da camisa pólo, que era melhor não contrariar o homem, pois a vaca parecia ser ali o único sujeito dominante das plenas faculdades mentais. Assim, apenas perguntei-lhe sobre como poderia voltar a Santa Cruz ou, na pior das hipóteses, chegar até a Linha Boa Vista. A resposta dele foi um pouco desconcertante:

- Ora, volte pelo caminho que fez para chegar aqui!

Disse isso com uma naturalidade que não deixava margens à dúvida. Achei melhor confessar-lhe que estava perdido. Ele abanou a cabeça, e disse, em tom de triunfo:
- Eu sabia! Ninguém até hoje veio até aqui!

- Onde exatamente é aqui? – perguntei-lhe, temendo pela resposta.

- Aqui é a República Positivista do Paredão! – gritou ele, orgulhosamente.

A história do paredão me deixou apreensivo, a princípio, até que me lembrei que havia uma localidade com tal nome, além da Linha Boa Vista, meu destino original. Aceitei, a contragosto, acompanhar o Alirípio até sua casa, sede do governo da RPP. Lá havia uma bandeira desenhada com giz de cera, sobre a lareira. Seria o pavilhão nacional da RPP? Após uma longa conversa, Alirípio convenceu-se da minha situação de imigrante ilegal involuntário, sem dolo. Eu não trouxera meu passaporte por julgá-lo desnecessário. Concordou em deportar-me amigavelmente. Antes de me conduzirem à zona de fronteira, entre o Brasil e a RPP, pedi-lhe explicações sobre seu país, intestinado em meio ao território que eu julgava absolutamente brasileiro.

Alirípio explicou-me que havia sido brasileiro. Após algumas experiências traumatizantes, fundara o próprio país. Ele fora eleito para as mais altas câmaras da antiga pátria. Acreditando no positivismo jurídico, que se resume no Dura Lex Sed Lex – A Lei é dura, mas é a Lei – Alirípio estudou Engenharia Nuclear e acabou, por pressão dos colegas da universidade, candidatando-se aos cargos legislativos. Propôs inúmeros projetos de leis, que foram fulminados pelas teses do direito subjetivista romano-etrusco. Pudera, Alirípio propôs que os advogados da parte perdedora, nas causas judiciais, fossem solidários com aquela. Propôs também que os dirigentes de empresas acusadas de apropriar-se indevidamente das posses pecuniárias (dinheiro) dos seus clientes, fossem igualmente responsabilizados, criminalmente. Em pouco tempo, Alirípio foi visto como fauna exótica alienígena, em relação ao modus pensandi vigente. Coisas ainda mais estranhas saíram do saco jurídico que carregava, como uma lei que obrigaria os condenados à prisão a serem encarcerados. Derrotado pela situação, pela oposição e pelos outros, seja lá quem fossem, Alirípio exilou-se na recém fundada RPP. Como ministro da saúde interino, ele me garantiu que a vaca fornecia leite não-peróxido-alcalino. Leite de vaca mesmo, o legítimo.

Alirípio foi até gentil. Dispensou-me dos procedimentos alfandegários de saída. Nem precisei retirar o cinto e o relógio de pulso. Fez um mapa detalhado de como voltar a Santa Cruz. Por via das dúvidas, peguei um formulário para obtenção de visto. Não consegui esquecer aquelas subidas e descidas ao longo das curvas do Taquari-Mirim. Nem da proposta de emprego, para cuidar da vaca.


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5.11.07

O extintor



Foto: Fabrício Samahá

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O extintor

Por Paulo Heuser


Às vezes passam-se anos antes que algum vigilante rodoviário nos peça os documentos do veículo. Então, sem aviso prévio, não param mais de nos parar. Tenho os atraído, sei lá por quê. Ou melhor, até sei. Foram três interceptações em duas semanas. Quem tripula um, sabe que os agentes da lei preferem os carros mais antigos, para virá-los ao avesso, na procura de algum item que não esteja conforme com a legislação de trânsito. Carros novos têm tudo em dia. Pisca para cá, pisca para lá, pisa no pedal do freio, acende faróis, luzes de placas, limpadores de pára-brisas, nada escapa deles. Porém, há um elemento insidiosamente oculto que poderá trair os mais desavisados. É o elemento oculto, também conhecido como extintor de incêndio. Oculto, porque fica acondicionado nos sítios mais inimagináveis, ou menos imagináveis, dos veículos. Responda sem pensar, onde está o seu? Caso souber, qual é a validade dele? Sim, extintores têm prazo de validade, como os litros de leite peróxidos-alcalinos e, por que não dizer, nós mesmos. Neste caso, a ordem é a inversa. Estamos visíveis. Porém, nosso prazo de validade fica oculto, apenas previsível. E aí, as aparências enganam, graças às recauchutadas que se tornam cada vez mais comuns, financiadas em 12 vezes sem entrada. Lipoaspire e corte agora, pague depois. Se o que foi levantado cair antes do último pagamento, há desconto nas prestações vincendas.

Há uma certa polêmica quanto à utilidade dos extintores de incêndio dos automóveis. Pessoalmente, tenho opinião formada. Prefiro sair correndo, deixando o caso para os bombeiros e para a seguradora, ambos com larga experiência em sinistros. Não considero prudente ler o manual do carro, durante o evento, para descobrir onde esconderam o extintor.

Desde que um diligente agente descobriu que o lacre do extintor do meu carro velho havia sido hipoteticamente rompido, tomo cuidado redobrado. Não que eu tenha um carro velho. Tenho dois. Portanto, tenho redobrado empenho em cuidar dos extintores, mesmo que desconheça suas localizações. O Princípio da Incerteza de Werner Heisenberg (1901-1976), Nobel de Física de 1932, mostra que é impossível determinar tanto a velocidade como a posição do extintor, em um determinado instante. Contudo, há uma probabilidade de que o extintor esteja instalado sob um dos assentos dianteiros do carro. Alguns patrulheiros chegam a dar palpites, como: - É um tubo vermelho.

Descobri uma forma para nunca me pegarem de calças curtas. Ou, pelo menos, sem o extintor na validade. Presenteio-me com dois extintores de incêndio, a cada aniversário. Deixo-os à mão. Faço como fiz no sábado. Vinha lá pela RS-4-qualquer coisa quando um agente me parou. Antes que conseguisse abrir a boca, alcancei-lhe o extintor. Coitado, o homem ficou desolado. Seu lábio inferior caiu perceptivelmente. Pensei que iria chorar.

Há um novo tipo de extintor, bem mais caro, fornecido pelo parente de alguém que chegou a conclusão de que seria muito mais eficiente, caso fosse encontrado, caso o motorista não saísse correndo na hora do sinistro. Houve também a época do ridículo kit de primeiros socorros, também fornecido pelo parente de alguém. Depois que alguém já havia vendido todo o estoque, a obrigatoriedade caiu, inexplicavelmente, pois alguém julgou desnecessário tê-los. Noutro dia comentavam que poderia ser interessante a obrigatoriedade de conduzirem um kit de talas para imobilização dos membros dos animais eventualmente atropelados, do pardal ao elefante. Com prazo de validade, naturalmente.

Deveríamos ostentar nosso prazo de validade, como fazem os extintores. Chega o momento na vida em que os planos de saúde e as seguradoras passam a nos olhar de modo diferente. Querem ver o extintor. De nada adianta sair correndo ou retocar a aparência. Eles querem verificar se estamos na validade. E se o lacre for rompido?


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