Travessa Venezianos
Foto: Paulo Heuser
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Travessa Venezianos
Por Paulo Heuser
Cultivo o hábito, talvez incomum, de fotografar portas e janelas. Também fotografo prédios inteiros, ocasionalmente. Porém, as portas e janelas traduzem o rosto da casa. São bocas e olhos das casas. Conhecemos as pessoas, em parte, pela sua expressão. Assim são as casas. Rachaduras são as rugas, marcas do tempo, marcas de expressão, como muitos preferem. As fachadas das casas são rostos. Fachadas decadentes não necessariamente traduzem abandono. Podem ser fruto do sofrimento ou das dificuldades enfrentadas pelos que vivem lá.
Por Paulo Heuser
Cultivo o hábito, talvez incomum, de fotografar portas e janelas. Também fotografo prédios inteiros, ocasionalmente. Porém, as portas e janelas traduzem o rosto da casa. São bocas e olhos das casas. Conhecemos as pessoas, em parte, pela sua expressão. Assim são as casas. Rachaduras são as rugas, marcas do tempo, marcas de expressão, como muitos preferem. As fachadas das casas são rostos. Fachadas decadentes não necessariamente traduzem abandono. Podem ser fruto do sofrimento ou das dificuldades enfrentadas pelos que vivem lá.
As casas que apresentam marcas de expressão são as mais fotografáveis, pois aparentam ter história. O que haverá por trás daquelas portas decadentes e das venezianas que já não fecham mais? Ali nasceram, ali morreram. Alguém ainda viverá naquela casa, apesar da evidente aparência de abandono?
Talvez nenhum outro (jamais, diria o Presidente) bairro de Porto Alegre tenha casas com a expressão daquelas da Cidade Baixa. Lá as rugas estão aparentes, propositadamente ou não. Rugas podem dar charme ao rosto. Das casas, inclusive. Se o bairro hoje vive noites de inferno, bem diferentes daquelas noites do tempo do Chão de Estrelas, da boemia que se foi, as manhãs de domingo convidam à caminhada pelas ruelas que se confundem e se cruzam. Morei na Cidade Baixa na década de 70. Pensei que conhecia aquele universo oculto atrás das principais ruas e avenidas. Ledo engano.
Aventurei-me sem rumo, neste domingo. Larguei o carro numa rua, cujo nome não sei, e caminhei a esmo, de câmera em punho. Já havia clicado inúmeras fotos, quando cheguei na esquina da rua que desconheço com a Travessa Venezianos. Lembrei-me do nome porque um amigo fotógrafo insistia em mandar-me para lá. Sabedor do meu fetiche fotográfico por portas e janelas, dizia para que eu fosse a tal travessa. Como cheguei lá, não sei. Apenas cheguei. Virei na esquina e parei, abobalhado com o cenário que se descortinava perante minhas lentes. Alguém poderia imaginar uma quadra inteira de casas impecavelmente pintadas, sem nenhum tipo de pichação? Todas rentes ao passeio, o que torna o fato ainda mais improvável. Quem fotografa casas em Porto Alegre sabe que devemos puxar para o lado da decadência, pela pichação. Contudo, naquela abençoada travessa todas as casas açorianas se apresentam perfeitamente pintadas, em cores incríveis, cítricas e alegres. Lembrei-me da Colônia de Sacramento, no Uruguai. Forrei o poncho, com fotos. Saí dali extasiado. Nenhuma rua de Porto Alegre apresenta semelhante atmosfera. Voltamos ao início do século XX, numa rua povoada por imigrantes italianos, boleiros, consertadores de guarda-chuvas e carvoeiros. Foi a zona pobre da Rua dos Venezianos. Pois hoje é um raro reduto de limpeza e civilização em meio à decadência generalizada da grande cidade. Dezessete casas compõem o acervo tombado pelo Patrimônio Histórico. Dezessete casas que assombram pela simplicidade arquitetônica, de total despojamento, que provam que o belo pode ser minimalista. Casas sem eiras, beiras nem tribeiras. Casas de porta e janela que são mais belas que qualquer mansão. São como os rostos que são apenas belos, com maquiagem, sem maquiagem. Lembram a Isabella Rossellini.
Finda a quadra, voltei à cidade. Ficaram para trás as casas da Travessa Venezianos. Voltei ao Brasil, tão carente de coisas simples e limpas como aquela travessa de 17 casas.
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