14.11.07

A classe média


Vilanova - Tinta China (http://www.grafar.blogspot.com/)
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A classe média


Por Paulo Heuser


Linoberto jogou-se na cadeira do Bar Armazém e Borracharia 12 Irmãos, como fazia em todos os finais de tarde. Esticou os braços e as pernas, no alongamento inconsciente. Foi a senha para um dos 12 irmãos trazer o martelo de losna e carqueja. Aquela bebida deixaria qualquer um com os beiços virados para dentro, feito velha desdentada que chupou limão azedo. Todo mundo, menos o Linoberto e seus colegas de bar. Ele bebeu daquela coisa pela primeira vez quando completou 18 anos. A avô o levou ao 12 Irmãos e pediu dois tragos, solenemente. Reinou o silêncio, enquanto todos esperavam para ver a cara do Linoberto, após o primeiro gole. A reação foi aquela esperada. Desesperou-se, tanto pela queimação quanto pela amargura da bebida. Todos riram, inclusive o avô, e a vida voltou ao normal. Quem inventou a bebida foi o primeiro irmão, dos doze, já falecido. A tradição se manteve. Os fregueses pedem da “boa”. Agora é o sétimo irmão, dos 12, o encarregado pela “boa”.

Distraído pelo amargor do primeiro gole, Linoberto não chegou a perceber a entrada do estranho. O primeiro, desde que a vaca do cunhado dera cria. Não que o estranho anterior viesse ver o terneiro. É que o cunhado do Linoberto não pôde levar o leite, pela primeira vez em 11 anos. Então mandaram o estranho buscá-lo. E o estranho entrou no 12 Irmãos, pediu o mesmo que Linoberto bebia, todo mundo fez silêncio, na expectativa da cara do..., etc, etc. Pois esse novo estranho também perguntou o que Linoberto bebia e pediu o mesmo. Novo silêncio, todos riram, etc. O homem fez a esperada cara de desespero, tão esperada pelos freqüentadores. Essa cara só era vista quando alguém na vila completava 18 anos, ou quando aparecia um novo estranho, o que, pelo visto, não ocorria com muita freqüência.

- Ahnmf... Coisinha fortinha essa! – o estranho conseguiu falar, com a boca retorcida.

- É a especialidade da casa – disse Linoberto.

A conversa iniciou meio mole, com as trivialidades habituais. Linoberto ficou curioso. O que fazia ali aquele novo estranho, já que o seu cunhado não ficava doente desde o nascimento do terneiro.

- Vim mostrar-lhes a verdade. – disse o estranho, enquanto decidia se bebia outro gole da “boa”.

- Ah, já entendi! É um pregador. De qual igreja?

- Não tem nada a ver com igreja! Venho mostrar-lhes a dura realidade sociopolítica deste momento delicado da vida política nacional.

- Ah, agora entendi! Está vendendo plano de saúde... – Linoberto bebeu um longo gole, para espanto do estranho, que ainda não se recuperara do primeiro.

- Não! Venho lhes mostrar o caminho para a verdadeira revolução camponesa!

- Um vendedor de veneno, adubo, arado? - Linoberto estava cada vez mais curioso.

- Vim tirá-los das garras das elites dominantes. Notamos que vocês ignoram completamente o fato de estarem sendo explorados e escravizados pelas elites imperialistas retrógradas. – os olhos do estranho faiscavam.

- Olhe, moço. Nós podemos ser um pouco grossos, sem muito refinamento, completamente dispensável por aqui, mas não somos burros nem ignorantes. Temos antena parabólica, e vemos tudo que acontece depois do cinamomo.

- Antena parabólica? Isso é coisa da burguesia decadente! – a boca do estranho contorceu-se novamente, pois tomou outro gole da “boa”.

- Pode ser, mas a gente precisa ficar sabendo das coisas. Por isso mandamos os filhos à escola. Eu também estudei.

- Então, como podem ignorar a única verdade? Vocês passam fome, enquanto as elites se lambuzam naqueles festins decadentes dos capitalistas imperialistas, vassalos do Bush e do Sarkozy?

- Ninguém passa fome aqui. Nós comemos o que produzimos. Vocês que moram para lá do cinamomo é que passam fome, mesmo comendo. Vocês passam o dia tomando porcarias de refrigerantes, leite de vaca-química e cerveja de fábrica. Vocês comem verduras envenenadas e aqueles lanches, sabe-se lá do quê.
- Veja só o que você está bebendo. Lá há coisa semelhante?

O estranho concordou com Linoberto, pelo menos nesse ponto. Qualquer um que ousasse fabricar esse negócio, para lá do cinamomo, seria preso - elite, burguês ou proletário.

- Sua peremptória negação da única realidade autêntica, proletária, progressista, campesina e... e... democrática - vá lá -, me leva a conclusão que você não passa de outro classe média, único culpado pela manutenção do estado em que se encontra o País. Fonte e sorvedouro de todos os males. A classe média é composta pelos sociopatas que mantêm o colchão de proteção das elites imperialistas contra as ações progressistas das minorias majoritárias que buscam a revolução autêntica, agente restaurador da conformidade das instituições sociopolíticas, tão brutalmente diferenciadas, antes mesmo do descobrimento do Brasil!

- Não sei o que querem restaurar. As coisas para lá do cinamomo sempre foram uma bagunça, antes mesmo de plantarem o cinamomo.

O estranho ficou tão indignado, que bebeu o resto da “boa”, de um só gole. Saiu porta afora, iniciando um discurso defronte o 12 Irmãos. O terneiro, já crescido, mugiu. Linoberto foi para casa, preocupado. Relatou o ocorrido a Maria, sua mulher.

- Ficou muito preocupado, Lino?

- Fiquei, Maria. Fiquei...

- Por quê? O problema não está para lá do cinamomo?

- Hoje está. Mas estou com medo de que cortem o cinamomo, noite dessas.

- E aí as coisas mudarão, por aqui?

- Sim, Maria. Então seremos classe média.

- O que faremos, Lino?

- Sei não. Estive pensando, no caminho do 12 Irmãos até aqui. Hoje descobri que as coisas estão tão ruins, para lá do cinamomo, por nossa culpa. O estranho falou que somos o colchão imperialista acomodado. Somos culpados, desde sempre, pela desgraça dos outros, sei lá de que outros. Mas, não somos tão acomodados como ele pensa.

- Vamos trocar o colchão de molas por outro mais moderno, do tal viscoelástico!

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