7.11.07

O passaporte


Foto: Paulo Heuser
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O passaporte

Por Paulo Heuser


Domingo me embrenhei no meio do mato. Adoro estradas vicinais em meio à mata e à serra. Novamente deixei o asfalto para trás e percorri uma dessas trilhas maravilhosas onde o ruído se resume ao chilrear dos pássaros, à água escorrendo entre as pedras dos córregos e ao sussurro do vento nas folhas do mato fechado. O cheiro de mata molhada e o verde intenso da primavera completam o quadro. A estradinha se estreitava cada vez mais, exigindo redobrada atenção no sobe e desce das curvas da serra. Ar-condicionado desligado, sons e cheiros invadiam o carro.

Eu pretendia chegar a Boa Vista, partindo da Vila Nova, junto ao Taquari-Mirim. Porém, errei em alguma encruzilhada, indo à direita onde deveria ter ido à esquerda. Depois fiquei sabendo que deveria ter seguido reto naquela bifurcação ao lado do açude. Perdido sem o saber, segui morro acima e morro abaixo, naquela infinita sucessão de curvas fechadas, cada vez mais fechadas. Temi pela presença de outro carro. Não haveria espaço para dois naquela estrada extremamente estreita.

Convenci-me que estava perdido quando percebi que já deveria ter cruzado pela Linha Boa Vista há mais de hora. Continuava subindo e descendo, serpenteando em meio àquela estrada. Quase colidi com a vaca do Alirípio. Espalhei seixos de rio, que cobriam a estrada, para todos os lados, enquanto desviava da vaca estacionada. Vaca e Alirípio se espantaram igualmente, ao me ver. Apesar do susto, fiquei feliz ao encontrá-los, pois fazia muito que procurava, em vão, alguém para pedir informações sobre meu paradeiro. Repentinamente, todas as casas haviam sumido da beira da estrada. Apenas o rio parecia seguir seu curso, e o da estrada. Em meio à poeira levantada pela frenagem, desci do carro e cumprimentei o Alirípio, tão jovialmente quanto consegui, tento em vista as circunstâncias do encontro. Ele não sorriu, nem respondeu o cumprimento. Limitou-se a pedir meu passaporte.

- Passaporte? Não pode ser a Carteira de Habilitação? – perguntei-lhe, desconcertado.

- Não, ela só é aceita no Brasil. Aqui o senhor precisa apresentar o Passaporte e a Habilitação Internacional para dirigir, além de preencher o formulário da imigração.
Alirípio não apresentava aquele sotaque característico da colônia germânica, apesar do mugido da vaca soar definitivamente autêntico. Pensei, lá com os meus botões da camisa pólo, que era melhor não contrariar o homem, pois a vaca parecia ser ali o único sujeito dominante das plenas faculdades mentais. Assim, apenas perguntei-lhe sobre como poderia voltar a Santa Cruz ou, na pior das hipóteses, chegar até a Linha Boa Vista. A resposta dele foi um pouco desconcertante:

- Ora, volte pelo caminho que fez para chegar aqui!

Disse isso com uma naturalidade que não deixava margens à dúvida. Achei melhor confessar-lhe que estava perdido. Ele abanou a cabeça, e disse, em tom de triunfo:
- Eu sabia! Ninguém até hoje veio até aqui!

- Onde exatamente é aqui? – perguntei-lhe, temendo pela resposta.

- Aqui é a República Positivista do Paredão! – gritou ele, orgulhosamente.

A história do paredão me deixou apreensivo, a princípio, até que me lembrei que havia uma localidade com tal nome, além da Linha Boa Vista, meu destino original. Aceitei, a contragosto, acompanhar o Alirípio até sua casa, sede do governo da RPP. Lá havia uma bandeira desenhada com giz de cera, sobre a lareira. Seria o pavilhão nacional da RPP? Após uma longa conversa, Alirípio convenceu-se da minha situação de imigrante ilegal involuntário, sem dolo. Eu não trouxera meu passaporte por julgá-lo desnecessário. Concordou em deportar-me amigavelmente. Antes de me conduzirem à zona de fronteira, entre o Brasil e a RPP, pedi-lhe explicações sobre seu país, intestinado em meio ao território que eu julgava absolutamente brasileiro.

Alirípio explicou-me que havia sido brasileiro. Após algumas experiências traumatizantes, fundara o próprio país. Ele fora eleito para as mais altas câmaras da antiga pátria. Acreditando no positivismo jurídico, que se resume no Dura Lex Sed Lex – A Lei é dura, mas é a Lei – Alirípio estudou Engenharia Nuclear e acabou, por pressão dos colegas da universidade, candidatando-se aos cargos legislativos. Propôs inúmeros projetos de leis, que foram fulminados pelas teses do direito subjetivista romano-etrusco. Pudera, Alirípio propôs que os advogados da parte perdedora, nas causas judiciais, fossem solidários com aquela. Propôs também que os dirigentes de empresas acusadas de apropriar-se indevidamente das posses pecuniárias (dinheiro) dos seus clientes, fossem igualmente responsabilizados, criminalmente. Em pouco tempo, Alirípio foi visto como fauna exótica alienígena, em relação ao modus pensandi vigente. Coisas ainda mais estranhas saíram do saco jurídico que carregava, como uma lei que obrigaria os condenados à prisão a serem encarcerados. Derrotado pela situação, pela oposição e pelos outros, seja lá quem fossem, Alirípio exilou-se na recém fundada RPP. Como ministro da saúde interino, ele me garantiu que a vaca fornecia leite não-peróxido-alcalino. Leite de vaca mesmo, o legítimo.

Alirípio foi até gentil. Dispensou-me dos procedimentos alfandegários de saída. Nem precisei retirar o cinto e o relógio de pulso. Fez um mapa detalhado de como voltar a Santa Cruz. Por via das dúvidas, peguei um formulário para obtenção de visto. Não consegui esquecer aquelas subidas e descidas ao longo das curvas do Taquari-Mirim. Nem da proposta de emprego, para cuidar da vaca.


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