Dona Cotinha e o Pavoroso
Foto: Wikipedia
Dona Cotinha e o Pavoroso
Por Paulo Heuser
Há segredos mais bem guardados do que o terceiro de Fátima. Um deles é a idade da Dona Cotinha. Sabe-se apenas que ela não era mais moçoila quando um cabo austríaco dava palestras nas cervejarias de Munique. Guerras vieram, guerras foram, e a Dona Cotinha manteve uma rotina de vida inabalável. Dela faz parte a ida à missa. Perdeu apenas sete, em toda a vida, nos dias dos nascimentos dos filhos. Mesmo assim, o padre deu uma passadinha pelo hospital, para não deixar a fiel número um desamparada espiritualmente. Chova sapos, canivetes, ou mesmo chuva, Dona Cotinha percorre diariamente o mesmo caminho entre a sua casa e a igreja. Todos a conhecem. Chama a atenção a exatidão com que mantém o percurso. Ela não se desvia um milímetro daquele caminho planejado em algum momento do passado. Nem mesmo depois da chegada do Pavoroso.
Por Paulo Heuser
Há segredos mais bem guardados do que o terceiro de Fátima. Um deles é a idade da Dona Cotinha. Sabe-se apenas que ela não era mais moçoila quando um cabo austríaco dava palestras nas cervejarias de Munique. Guerras vieram, guerras foram, e a Dona Cotinha manteve uma rotina de vida inabalável. Dela faz parte a ida à missa. Perdeu apenas sete, em toda a vida, nos dias dos nascimentos dos filhos. Mesmo assim, o padre deu uma passadinha pelo hospital, para não deixar a fiel número um desamparada espiritualmente. Chova sapos, canivetes, ou mesmo chuva, Dona Cotinha percorre diariamente o mesmo caminho entre a sua casa e a igreja. Todos a conhecem. Chama a atenção a exatidão com que mantém o percurso. Ela não se desvia um milímetro daquele caminho planejado em algum momento do passado. Nem mesmo depois da chegada do Pavoroso.
Foi numa terça-feira de sol. Dona Cotinha passava pelo sobrado do número 128 da rua em que mora, quando levou o maior susto da sua vida, até então. O Pavoroso jogou-se contra o portão emitindo rugidos pavorosos, no momento exato em que Dona Cotinha cruzava rumo à missa. Ela chegou a sentir o hálito quente da fera, um enorme Rottweiler com ares de mascote do demo. Dona Chiquinha do 142 veio em socorro e deu água de melissa à pobre fiel. Uma hora e cinco depois, novo susto. Era hora da volta. Apesar dos sustos, Dona Cotinha não alterou o percurso, concebido em outro século e outro milênio. Continuou passando defronte ao portão do 128, para o encanto do Pavoroso. Ele recebeu o nome na Apocalypse Beast, fornecedora de feras assassinas para segurança patrimonial. Os Souza não agüentaram mais a imensa socialização a qual foram submetidos, em sete ocasiões, e encomendaram o modelo mais avançado de fera assassina à disposição. Compraram o Pavoroso.
Os filhos da Dona Cotinha tentaram convencê-la a trocar o itinerário de casa até a missa, sem sucesso. Ela encarava o encontro com o Pavoroso como uma espécie de prova da fé. Mesmo sabendo que o susto ocorreria, Dona Cotinha assustava-se como da primeira vez. Os filhos da viúva tentaram falar com os Souza, que se mantiveram irredutíveis. Até o padre tentou convencer, tanto Dona Cotinha a alterar o percurso, como os Souza a prender o Pavoroso. Apesar das costas quentes, não obteve sucesso. Os sustos bidiários não passaram despercebidos nas consultas com o cardiologista que atende Dona Cotinha. Sem solução amigável à vista, os filhos dela entraram na justiça contra os Souza e o Pavoroso. Depois de subidas e descidas nas varas da lei, a demanda da Dona Cotinha não prosperou. Venceu a tese de que os Souza não poderiam ser culpados se as ondas sonoras emitidas pelo Pavoroso cruzassem o portão. Dona Cotinha que alterasse o itinerário.
Foi também numa terça-feira. Tudo começou igual. Dona Cotinha saiu de casa, amparada pela sombrinha preta, e passou defronte o portão da casa dos Souza. A meninada não interrompia mais as brincadeiras para assistir ao “cagaço da velha”. Pavoroso ouviu o som familiar dos saltos dos sapatos da fiel e arremessou-se na direção do portão. O que se seguiu, quebrou qualquer rotina imaginável. O pavoroso rugido do Pavoroso transformou-se em uivo dolorido - um profundo e desesperado ganido, daqueles que gelam a espinha de qualquer alma penada. Um lobisomem não faria melhor. Pavoroso não se limitou ao ganido, partindo numa louca carreira de destruição de tudo que encontrou pelo caminho. Estraçalhou a caixa do correio, atacou três anões de jardim – um escapou subindo na árvore, era o jardineiro -, rasgou o sofá novo dos Souza, arrancou parte do corrimão da escada e, finalmente, jogou-se de cabeça dentro do vaso sanitário. Seguindo o rastro de destruição, os Souza encontraram a fera ferida que não parava de ganir. Levado ao pronto socorro de feras, atenderam-no logo, antes que devorasse bichanos e cães em consulta. O veredito veio logo: jogaram substância irritante nos olhos do Pavoroso. – Foi a velha! – gritavam os moleques.
Dona Cotinha safou-se ilesa, depois de subidas e descidas nas varas da lei. Venceu a tese de que Dona Cotinha não poderia ser culpada se o vento levou o spray de pimenta para dentro do portão dos Souza, exatamente na direção dos olhos do Pavoroso. Onde ela conseguira aquele spray? – perguntavam-se os filhos. O padre dizia que, por vezes, são estranhos os esguicho... desígnios do Senhor. Há de se ter fé e um spray de pimenta, por via das dúvidas. Pavoroso passou a ganir quando ouve sons de sapatos de velhas, escondendo-se debaixo de uma mesa.
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