21.10.07

Dona Cotinha e o Pavoroso


Foto: Wikipedia
Dona Cotinha e o Pavoroso

Por Paulo Heuser


Há segredos mais bem guardados do que o terceiro de Fátima. Um deles é a idade da Dona Cotinha. Sabe-se apenas que ela não era mais moçoila quando um cabo austríaco dava palestras nas cervejarias de Munique. Guerras vieram, guerras foram, e a Dona Cotinha manteve uma rotina de vida inabalável. Dela faz parte a ida à missa. Perdeu apenas sete, em toda a vida, nos dias dos nascimentos dos filhos. Mesmo assim, o padre deu uma passadinha pelo hospital, para não deixar a fiel número um desamparada espiritualmente. Chova sapos, canivetes, ou mesmo chuva, Dona Cotinha percorre diariamente o mesmo caminho entre a sua casa e a igreja. Todos a conhecem. Chama a atenção a exatidão com que mantém o percurso. Ela não se desvia um milímetro daquele caminho planejado em algum momento do passado. Nem mesmo depois da chegada do Pavoroso.

Foi numa terça-feira de sol. Dona Cotinha passava pelo sobrado do número 128 da rua em que mora, quando levou o maior susto da sua vida, até então. O Pavoroso jogou-se contra o portão emitindo rugidos pavorosos, no momento exato em que Dona Cotinha cruzava rumo à missa. Ela chegou a sentir o hálito quente da fera, um enorme Rottweiler com ares de mascote do demo. Dona Chiquinha do 142 veio em socorro e deu água de melissa à pobre fiel. Uma hora e cinco depois, novo susto. Era hora da volta. Apesar dos sustos, Dona Cotinha não alterou o percurso, concebido em outro século e outro milênio. Continuou passando defronte ao portão do 128, para o encanto do Pavoroso. Ele recebeu o nome na Apocalypse Beast, fornecedora de feras assassinas para segurança patrimonial. Os Souza não agüentaram mais a imensa socialização a qual foram submetidos, em sete ocasiões, e encomendaram o modelo mais avançado de fera assassina à disposição. Compraram o Pavoroso.

Os filhos da Dona Cotinha tentaram convencê-la a trocar o itinerário de casa até a missa, sem sucesso. Ela encarava o encontro com o Pavoroso como uma espécie de prova da fé. Mesmo sabendo que o susto ocorreria, Dona Cotinha assustava-se como da primeira vez. Os filhos da viúva tentaram falar com os Souza, que se mantiveram irredutíveis. Até o padre tentou convencer, tanto Dona Cotinha a alterar o percurso, como os Souza a prender o Pavoroso. Apesar das costas quentes, não obteve sucesso. Os sustos bidiários não passaram despercebidos nas consultas com o cardiologista que atende Dona Cotinha. Sem solução amigável à vista, os filhos dela entraram na justiça contra os Souza e o Pavoroso. Depois de subidas e descidas nas varas da lei, a demanda da Dona Cotinha não prosperou. Venceu a tese de que os Souza não poderiam ser culpados se as ondas sonoras emitidas pelo Pavoroso cruzassem o portão. Dona Cotinha que alterasse o itinerário.

Foi também numa terça-feira. Tudo começou igual. Dona Cotinha saiu de casa, amparada pela sombrinha preta, e passou defronte o portão da casa dos Souza. A meninada não interrompia mais as brincadeiras para assistir ao “cagaço da velha”. Pavoroso ouviu o som familiar dos saltos dos sapatos da fiel e arremessou-se na direção do portão. O que se seguiu, quebrou qualquer rotina imaginável. O pavoroso rugido do Pavoroso transformou-se em uivo dolorido - um profundo e desesperado ganido, daqueles que gelam a espinha de qualquer alma penada. Um lobisomem não faria melhor. Pavoroso não se limitou ao ganido, partindo numa louca carreira de destruição de tudo que encontrou pelo caminho. Estraçalhou a caixa do correio, atacou três anões de jardim – um escapou subindo na árvore, era o jardineiro -, rasgou o sofá novo dos Souza, arrancou parte do corrimão da escada e, finalmente, jogou-se de cabeça dentro do vaso sanitário. Seguindo o rastro de destruição, os Souza encontraram a fera ferida que não parava de ganir. Levado ao pronto socorro de feras, atenderam-no logo, antes que devorasse bichanos e cães em consulta. O veredito veio logo: jogaram substância irritante nos olhos do Pavoroso. – Foi a velha! – gritavam os moleques.

Dona Cotinha safou-se ilesa, depois de subidas e descidas nas varas da lei. Venceu a tese de que Dona Cotinha não poderia ser culpada se o vento levou o spray de pimenta para dentro do portão dos Souza, exatamente na direção dos olhos do Pavoroso. Onde ela conseguira aquele spray? – perguntavam-se os filhos. O padre dizia que, por vezes, são estranhos os esguicho... desígnios do Senhor. Há de se ter fé e um spray de pimenta, por via das dúvidas. Pavoroso passou a ganir quando ouve sons de sapatos de velhas, escondendo-se debaixo de uma mesa.
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