10.10.07

A ira



A ira

Por Paulo Heuser



O Zé nunca havia pensado em dormir em Kranjska Gora. Tampouco sabia que Kranjska Gora existia na face da Terra. Porém, essa linda cidadezinha dos Alpes Julianos eslovênios surgiu pelo seu caminho, num início de noite. O letreiro luminoso vermelho, que anunciava Supermarket, veio bem a calhar, pois era hora de reforçar o estoque de farofa. Além do pão, alimento aparentemente universal, o atum enlatado é o prato número um da farofa do Zé. O atum enlatado apresenta a mesma cara em qualquer lugar. É barato, não costuma causar problemas gástricos e é facilmente reconhecível, pois as latas não mudam. Chamado de atum, tono, tuna ou outras variações, é o refúgio dos viajantes que não conseguem ler os rótulos dos demais alimentos. Quem comeria grotsnya uhrbun, sem saber o que é? Viva o atum, portanto. Ou melhor, morra o atum. Em água ou em óleo.

Feliz por encontrar aquela fonte de farofa, Zé entrou meio sem jeito no mercado, por nada entender daquela língua cheia de jotas com som de is, como em alemão. Não tardou a achar as latas do salvador atum. Cheio de jotas, mas ainda assim, atum. Queijo, pão de jotas e o vinho italiano, sem jotas, completaram a farofa para o jantar. Ele nunca havia pensado com tantos jotas.

Como todo turista fora de época entrando no mercado de terras estranhas, Zé acabou fazendo as compras num ritmo que destoava daquele dos locais que sabiam de cor com quantos jotas se faz um jantar. Pegavam rapidamente suas coisas com jotas e dirigiam-se ao caixa. Zé ainda pegou alguns artigos de higiene, mais pelo formato revelador do que pelos estranhos dizeres das embalagens. Eventualmente atrapalhou algum morador local, na sua indecisão do vai e volta entre as prateleiras. Escolheu ainda uma sobremesa, que depois descobriu ser um sachê para perfumar o banheiro. Porém, pelo desenho na embalagem, parecia muito apetitoso. Algo como um qujndjm.

Satisfeito por constatar que os carrinhos de supermercado dos eslovenos funcionavam da mesma forma que os do resto do mundo – os rodízios também eram redondos -, Zé dirigiu-se ao caixa, com suas preciosas aquisições. A caixa era uma sorridente senhora de meia-idade e um quarto, roliça e exuberante, que, aparentemente, narrava tudo que passava pela tela do equipamento, em esloveno. Sem nada entender, Zé apenas observava. Pagou a conta sem problemas, pois foi apresentada em Euros. Enquanto empacotava suas compras, sentiu um calor na nuca. Virando-se, percebeu aquela mulher que o fitava com um olhar capaz de derreter a porta de um cofre de banco. Uma mulher elegante, num traje azul claro, cabelos pretos presos atrás e olhos azuis que deixavam transparecer uma enorme carga de ódio. Suas narinas estavam dilatadas como as de um touro enfurecido. Da sua boca partiam aparentes impropérios incompreensíveis, devido à barreira lingüística. Os jotas que recheavam suas imprecações apresentavam uma curva mais acentuada do que as dos jotas normais. Percebia-se ódio, ali. E, o pior, ela olhava diretamente para os olhos do Zé, enquanto jogava suas compras furiosamente dentro de uma sacola e o atropelava na saída.

Constrangido, Zé tentava entender o que acontecera, já que aquela mulher parecia a única pessoa incomodada com a sua presença. Arranhando em alemão, perguntou à mulher do caixa dos motivos da ira da morena dos olhos faiscantes. Ela respondeu-lhe algo sobre o Zé ter levado a última Paloma. Ela ficara sem Paloma. Paloma, pomba? – Já, já! – Sim, sim! – respondeu-lhe a senhora roliça, sempre sorrindo e carregando bem nos jotas com som de is.

Naquela noite, na pousada de nome impronunciável, o atum parecia não ter gosto. Seria carne de pomba enlatada? Não, parecia-se com atum e tinha cheiro de atum enlatado. Zé continuava preocupado com a história da Paloma. O que fizera ele, para gerar tanto ódio? Sentia-se mal com o ocorrido. Chamariam o atum de Paloma? Não, restaram muitas latas na prateleira de onde ele retirou aquela. O vinho, o pão? Não, também não. O lampejo veio no banheiro, enquanto, sentado no vaso, Zé olhava para o pacote onde havia uma pomba impressa sobre a inscrição: Soft toutch - Toaletni Papir – Toque macio – Papel Higiênico. O Zé sentiu-se ainda pior, pois enquanto experimentava o toque macio da Paloma, aquela pobre mulher experimentava o toque sabe lá do quê.

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