4.10.07

O sofá do Prometeu



Foto: Paulo Heuser

O sofá do Prometeu


Por Paulo Heuser



Há dias em que fixamos o pensamento em coisas tão inúteis que não nos lembramos delas enquanto nelas pensamos. São pensamentos para matar o tempo. Ficamos tão absortos, que andamos automaticamente, apenas desviando dos obstáculos à frente, sem determos a atenção em nada especial. Nesse estado de catalepsia acordada, quase tropecei no sofá do Pometeu. As moscas me alertaram sobre a presença daquele improvável sofá de tecido xadrez preto e amarelo sobre o passeio. Um mosquedo consistente, estilo tornado, com insetos voando em círculos, formando um cone. Lembrei-me de ter estudado o Efeito Coriolis, que supostamente faria as moscas voarem em círculos de direções opostas, conforme o hemisfério em que se encontrariam. Lenda urbana, tão consistente cientificamente como a geodeterminação da direção em que as porcas torcem o rabo.

Eu não adivinhei que o nome daquele sujeito estarrado no sofá xadrez era Prometeu, o titã grego. Saberia, se houvesse estudado literatura, pois o homem adorado pelo mosquedo declamava trechos da poesia Prometheus de Goethe. Como não a estudei, fiquei sem sabê-lo. Isto pouco importava, pois as moscas pareciam saber com quem tratavam. Elas formavam um cone a partir seu pescoço, abrindo-o à medida que subiam. Esse sim, poderia ser chamado de Senhor das Moscas. Feita ou não a identificação do habitante do sofá xadrez, restou a questão primordial. Por que Prometeu estaria ali, deitado naquele sofá, tendo apenas o céu por teto, às 13h30 de uma terça-feira? Se eu estudasse mitologia grega, saberia que Zeus puniu Prometeu - porque este entregou o fogo aos homens -, amarrando-o no topo do Monte Cáucaso. Durante o dia, abutres comiam seu fígado. À noite, se regenerava. A entrega do fogo simbolizaria o ensino. O resto é aquilo que se aprende no ensino fundamental: Hércules, por não ter mais o que fazer, libertou Prometeu. Num supremo acesso de fúria, Zeus condenou Prometeu a ser professor, durante 30 mil anos, mesmo período da pena inicial no Monte Cáucaso.

Prometeu gostou, a princípio. Ensinar era seu destino. Contudo, não contava com a Reforma do Ensino, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a soberba dos pais deuses primordiais – ele é apenas um titã -, os alunos ciclópicos e a falta de verbas para a educação e os salários. Hércules já não mostrava a mesma disposição para libertá-lo do novo calvário, pois estava envolvido com a questão tributária. Conseguiu, afinal, mas o único lugar que restou a Prometeu foi o sofá xadrez. E a companhia do mosquedo. Apesar de abatido, ainda brada conselhos aos seus sucessores, nas palavras de Goethe:

“(...)
Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?
Pois não: aqui me tens
e homens farei segundo minha própria imagem:
homens que logo serão meus iguais
que irão padecer e chorar, gozar e sofrer
e, mesmo que forem parias,
não se renderão a ti como eu fiz"

Ainda bem que me esqueço do que penso, enquanto caminho pensando. Senão, me lembraria dos pensamentos doidos de quem não pensa nada em especial. Apenas desvio do sofá, deixando Prometeu e seu fiel mosquedo seguidor para trás. Espero que não chova, pelo menos nos próximos 30 mil anos.

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1 Comments:

At sábado, 10 novembro, 2007, Anonymous Anônimo said...

Muito bom !!! No dia de finados ( bem sugestivo) fiz uma crônica , ou mellhor um texto sobre Prometeus rssss . O Titã rende muito assunto.

Parabéns

L.V.H

 

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