Postagem no. 300: O Contrato
Foto: Paulo Heuser
Esta é a tricentésima postagem
O Contrato
Por Paulo Heuser
Raimundo preza sua intimidade e seus hábitos simples. Não é afeito a modismos. Prefere assistir às novelas B da Croácia, ou da Mauritânia, aos filmes AAA da indústria cinematográfica que distribui troféus para si mesma. Por isso, muito lhe incomodam os telefonemas de venda de qualquer coisa, especialmente enquanto assiste ao capítulo da novela das oito da Kabelska Televizja Kprivnika. No último telefonema, travou-se curioso diálogo:
- Alô!
- Boa noite, Sr. Raimundo, para sua segurança esta ligação esta sendo gravada.
Silêncio desanimado.
- Sr. Raimundo, o senhor poderia confirmar alguns dados, para sua segurança?
- Não.
- É necessário conformarmos alguns dados pessoais para podermos lhe disponibilizar seu cartão de crédito com limite ilimitado, limitado em 19 reais, apenas para sua segurança.
Mais silêncio desanimado.
- Sr. Raimundo, qual seria o motivo que o levaria a sonegar informações imprescindíveis para a validação da sua identidade como parte do contrato que estamos firmando?
- Não tenho interesse.
- Devo lembrá-lo que esta ligação está sendo gravada, para sua segurança. Qual seria a razão para o senhor não demonstrar interesse?
- Não tenho interesse.
- Essa não é uma resposta aceitável, conforme o kaput da cláusula 432 do contrato que estaremos firmando através desta ligação, que está sendo gravada, para sua segurança.
- Não tenho interesse em nenhum contrato.
- Devo preveni-lo que o parágrafo quarto da cláusula 745, do contrato supra, veda manifestações de desinteresse antes de decorridos 30 dias da comunicação por escrito do referido desinteresse, havendo anuência das partes. Naturalmente, sem prejuízo às salvaguardas do artigo 917 do contrato.
- Onde está esse contrato?
- Então, Sr. Raimundo. Para sua segurança, estaremos lhe enviando uma cópia do contrato tão logo o senhor confirme alguns dados pessoais.
- Não tenho interesse.
- Devo avisá-lo, enfaticamente, que estaremos mandando seu CPF para cadastramento nos órgãos competentes.
- Quais órgãos?
- Não estaremos disponibilizando essa informação sem que o senhor nos confirme alguns dados pessoais para autenticação da parte B do contrato.
- Não tenho interesse em nenhum contrato...
O telefone emudeceu, repentinamente. Mudo mesmo, nem chiado. Raimundo viu-se no escuro, sentado defronte à tv que se desligara. Ele resolveu tomar um chá, para se acalmar. Foi quando descobriu que não havia água nem gás. Não no apartamento dele, pelo menos. Pela janela, a vida parecia continuar. Tentou conseguir um pouco de água quente com a Dona Erothildes, vizinha do 34. Pode ouvir um cochicho abafado que avisava para ninguém abrir a porta, pois seria aquele que rompera O Contrato.
Raimundo pulou de susto na poltrona, quando o telefone mudo tocou, em volume surpreendentemente alto.
- Alô! – disse ele, em meio à escuridão.
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- Boa noite, Sr. Raimundo, para sua segurança esta ligação esta sendo gravada.
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