3.9.07

O mundo sumiu

Poster: Disney / Pixar
O mundo sumiu

Por Paulo Heuser


O teu, o seu, o vosso, podem não ter sumido, mas o meu sumiu sob meus pés no domingo. Eu estava caminhando, em pé, por mais pleonásmico que isto possa parecer, quando algo reduziu repentinamente o coeficiente de atrito estático sob meus pés, transformando um movimento retilíneo uniforme (MRU) em um movimento caótico profundamente desordenado (MCPD). Não sei quanto tempo decorreu entre as atitudes vertical e horizontal. Horizontal dolorida, diga-se de passagem. Mas pareceu decorrer uma eternidade.

Um tombo é algo deselegante, desde o início até o fim. Perdemos a elegância, ao tentarmos inutilmente manter a verticalidade, cuja estrutura fica irremediavelmente abalada. Se apenas caíssemos, tipo estava em pé, está deitado, a coisa seria mais palatável, se é que se pode comer um tombo. O nome que se dá a esse processo é tombo. O tombo difere da queda simples pela alegoria. Quem apenas cai, não merece nota, pois realiza o ato com base em princípios físicos bem conhecidos. Nove vírgula oito por segundo ao quadrado, um quarto de volta e tapuf! Está deitado. Dá até para se estimar onde vai cair, em quanto tempo, etc. Se fosse um tombo, seria chamado de tombo linear de primeira ordem. Falta-lhe o estardalhaço. Para tê-lo, necessitamos acrescentar outras variáveis que conferem o caos ao movimento antes de queda. Aí entra a deselegância, pois tal improviso nos movimentos não pode ser elegante, nunca.

Creio que busquei inspiração num ex-proprietário e maitre de um ex-restaurante do Centro. O homem era um prodígio do desastre. Nunca caiu, sempre tombou com maestria e desenvoltura. Se houvesse júri para isso, levaria 10 em tudo, originalidade, alegoria, execução e sei lá o que mais pontuam num tombo. Antes de atingir o chão, ele era capaz de bater em mais de uma mesa, na tentativa de se equilibrar, o que alongava a cena e envolvia os clientes. O Francisco não se contentava em deixar cair uma garrafa de refrigerante, ao servi-la. Ele iniciava a performance quando retirava a garrafa de uma geladeira alta. Retirava apenas uma garrafa, as outras desabavam, sabe-se lá por quê. Em meio à tentativa de segurar todas as 27, ele perdia o equilíbrio e esbarrava nas mesas dos clientes, derrubando algumas, segurando-se na toalha de outras, enquanto as garrafas espatifavam-se no chão. Quem viu, nunca esqueceu. Assim, no passado, pois me parece que o Francisco mudou de ramo, agora anda trabalhando com demolições. A gota d’água foi o dia em que desceu a escada que levava da cozinha, no segundo piso, ao salão inferior. Não contente em descer a escada rolando, junto com uma panela cheia de molho vermelho, inovou, levando uma cliente de roldão, na carona. Esse tombo foi ouvido da Floresta ao Menino Deus. Francisco gostava de performances interativas, pois envolvia a platéia. Servia coca-cola no cinzeiro e pimenta no sagu. O pessoal voltava lá pela emoção. Nem se falava ainda em reality shows. Como a maioria destes, aquilo parecia encenação, coisa forçada. Mas não era. O homem era naturalmente desastrado. Sempre, em tudo.

Descobri ter superado o Francisco, no domingo. Escorreguei no piso de uma cozinha e levei um autêntico tombo, com tudo que tinha direito, o balé pré-tombo, um quase espacato, por mais inverossímil que pareça, e o longo desabamento. Superei o Francisco, ao manter a panela que eu carregava na posição vertical. Quem viu, não esquecerá, pois não passou fome.
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