16.8.07

Araponga


Araponga

Por Paulo Heuser


A ascensorista capta partes das conversas de outrem, dificilmente uma inteira, do prólogo ao epílogo. Habitua-se a assistir pedaços de filmes. Agora percebo que os motoristas passam por situações semelhantes, nos semáforos de trânsito. Paramos, e nos permitimos pequenos intervalos de observação do que acontece ao redor. Alguém vem pedir esmola, crianças giram calotas, um pedestre hesita antes de iniciar a travessia da faixa, chega o assaltante, o motorista do ônibus faz sinal de luz, reclamando da demora do assalto e, finalmente, o araponga fotografa.

Talvez eu devesse escrever “a araponga”, já que a palavra designa uma ave. Mas, aquele não era ave, era humano, do sexo masculino. O termo passou a designá-los, graças à novela escrita por Dias Gomes et alii em 1990, na qual associou o nome da ave a um espião.

Pois ali, na esquina em frente à Estação Rodoviária, estava aquele sujeito, parado próximo à entrada do metrô. Chamava a atenção, pois apenas os loucos e os incautos atravessam a avenida por ali. Os bêbados não são tão afoitos. Porém, ele não tentava atravessar. Andava nervosamente, de um lado para o outro. Vestia longa capa de gabardine, com a lapela levantada na parte de trás. O guarda-chuva preto pendia ao lado do corpo, pendurado no cotovelo esquerdo. Da orelha esquerda pendia o fio do fone de ouvido que desaparecia roupa adentro. Ele proferia frases curtas, enquanto olhava furtivamente para os lados. Aflito, consultou o relógio.

O que estaria fazendo aquele sujeito ali? Ele não pertencia àquela paisagem, com certeza. O que estaria arapongando? Não havia nada de interessante à vista. A paisagem defronte dele se resumia a um viaduto, um caótico cruzamento de trânsito, sem mendigos – eles não se arriscam ali -, concreto e asfalto. Estaria esperando a passagem de alguém importante, alvo de uma investigação? Ou, talvez, poderia estar a serviço de uma das inúmeras CPIs em andamento. Eu já antevia as manchetes dos jornais do dia seguinte: - “Escândalo do Viaduto! – descobriram que os pichadores utilizaram tinta desviada da merenda escolar da escola de artes marciais mantida pela empresa do terceiro setor que recebe verbas parlamentares oriundas de um fundo internacional de financiamento habitacional da classe média norte-americana que só come perus orgânicos e importa boxeadores cubanos”. Faria parte da fábrica de novos escândalos para diminuir velhos escândalos.

Então ocorreram os dois eventos que fariam com que minha vida não fosse mais a mesma. O primeiro foi a foto. O araponga sacou a câmera e me fotografou. Não uma foto comum, de gente apagando velas de bolo. Uma foto da única coisa interessante que havia por ali: eu. O segundo evento foi a virada do semáforo. Ficou verde.

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